domingo, 9 de junho de 2024

Ao Domingo Há Música


Celebram-se amanhã , dia 10 de Junho , quinhentos anos do nascimento de Luís Vaz de Camões. Muito se tem escrito sobre este grande poeta nacional. Seleccionamos um pequeno texto, escrito por Eugénio Lisboa, que não cessaremos  de celebrar ( deixou-nos no passado dia 9 de Abril), que, na sua  arguta ironia,  faz uma leitura ideológica   do célebre soneto de Camões, de acordo com os ditames deste dias que correm.
A Música deste domingo canta  Camões  e, com ela, nos despedimos para iniciar uma pausa.
Até sempre!
 
Uma interpretação ideológica de um soneto de Camões
por Eugénio Lisboa
“Todos conhecem aquele belíssimo soneto de Camões, que começa assim: “Alma minha gentil que te partiste”, seguindo-se-lhe treze versos, cada um mais belo do que o anterior.
Tem havido o mais variado leque de interpretações deste poema, que vale uma literatura, incluindo a inevitável “interpretação” biografista, que vê, na “alma minha” uma alusão à amante chinesa, morta afogada , no célebre naufrágio na foz do rio Mekong. Nesse naufrágio, cujas circunstâncias, em pormenor, se desconhecem, Camões teria salvo, a nado, OS LUSÍADAS, mas não conseguiu salvar da morte a sua Dinamene. Até aqui, tudo bem. As teses biografistas têm o interesse que têm, embora não sejam exactamente interpretações de um texto. Dizer que, sem o conhecimento biográfico deste episódio, o soneto ficaria incompreensível, é um rotundo disparate. O poema deve ser interpretado pelo que o poeta lá pôs e não pelas circunstâncias que estiveram na origem da sua escrita.
Mas, à luz de uma minha experiência recente, relacionada com o modo como alguns poemas meus têm sido “interpretados” por ideólogos superaquecidos, estranho que a mesma receita ideológica ainda não tenha sido aplicada ao imortal soneto de Camões. Uma coisa deste gosto: Camões era europeu, branco; Dinamene era chinesa, amarela. Amor, amor, raça aparte. Entre salvar uma inferior chinesa e OS LUSÍADAS, o bardo não hesitou, exibindo um conhecido preconceito racista: salve-se o manuscrito, pereça a chinesa. A partir daqui, o crítico ideológico esquecia os achados poéticos, as lindas metáforas, a linguagem poética de uma inventiva sem igual, e mergulhava, a fundo, nos malefícios das “descobertas”, do racismo, do colonialismo, da exploração do homem pelo homem, do capitalismo selvagem, dando Camões como um peão de forças malévolas e um precursor mal avisado do racismo do século XXI. Por que não? As redes sociais andam cheias deste tipo de sondagens. Vou terminar, contando uma história verdadeira, de que tomei conhecimento, no meu tempo de estudante de engenharia. Vivia na Av. Guerra Junqueiro, muito próxima do Instituto Superior Técnico. Frequentava então uma Pastelaria Mexicana, que ainda existe, a qual era também frequentada por um ideólogo da esquerda dura, obcecado com a ideologia e com Marx. Conta-se que, na sua primeira noite de núpcias, quando finalmente se libertou dos amigos e se fechou no quarto com a noiva, depois de se meter na cama com ela, debruçou-se carinhosamente sobre a amada e perguntou-lhe: “Você já leu O CAPITAL, de Karl Marx?” Consta que o casamento durou poucos dias e até se percebe porquê. Aquela pergunta cabia tanto naquela circunstância, como o racismo cabia no imortal soneto de Camões."
Eugénio Lisboa, em 14.08.2023

Amália Rodrigues, em Alma minha , soneto de Luís Vaz de Camões e Música  de Carlos Gonçalves. À  Guitarra Portuguesa: Carlos Gonçalves e Fontes Rocha ,  à  Viola: Jorge Fernando e à Viola Baixo: Joel Pina.
Com que voz chorarei meu triste fado, 
que em tão dura prisão [paixão] me sepultou,
 que mor não seja a dor que me deixou 
o tempo, de meu bem desenganado? 

 Mas chorar não se estima neste estado, 
onde suspirar nunca aproveitou;
 triste quero viver, pois se mudou 
em tristeza a alegria do passado. 

 [Assi a vida passo descontente,
 ao som nesta prisão do grilhão duro 
que lastima o pé que o sofre e sente!] 

 De tanto mal a causa é amor puro, 
devido a quem de mi tenho ausente
 por quem a vida, e bens dela, aventuro. 
Luís Vaz de Camões

Camané & Mário Laginha , em  Com Que Voz . Poema de Luís Vaz de Camões e Música de Alain Oulman.

 
LINA , em Desamor, com Poema de Luís Vaz de Camões e Música de José Francisco Cavalheiro Jr. Ao piano John Baggott e na Guitarra Portuguesa Pedro Viana.
 

sábado, 8 de junho de 2024

Há Viagens e Viagens


Veneza, Itália

Iguaçu


Há Viagens e Viagens
por Eugénio Lisboa
                                                     Heureux qui comme Ulysse,
                                                     a fait un bon voyage.
                                                                                            Du Bellay

«Quase ninguém é indiferente ao apelo à viagem. E quase toda a gente inveja Ulisses, que, se não fez, exactamente, uma boa viagem, como canta Du Bellay, perpetrou, pelo menos, uma longuíssima e acidentada odisseia de retorno.
Há gostos para tudo. Du Bellay invejava Ulisses. Gide torcia o nariz à odisseia do grego, porque, no fim da viagem, esperava-o Penépole, que, para sempre, o iria amarrar ao lar. Exaltava, em contrapartida, Sindbad, o das Mil e Uma Noites, por ser livre como um passarinho: no fim da viagem, esperava-o, não uma amarra, mas uma nova viagem. Para Gide, também, uma viagem era apenas o prefácio à viagem seguinte, em contraste com a de Ulisses, que não passou de uma obrigatória navegação de regresso. Gide tinha igualmente um lar à espera, em Cuverville, mas fazia de conta que não dava por isso, e traiu, tanto quanto pôde – e sem complacências – a sua fiel Penélope que, para o caso, se chamava Madeleine. O que ele queria, está-se a ver, era copiar, com “gusto” e mesmo frenesi, o fluir libérrimo do marinheiro Sindbad. 
Viajar tem boa e tem má imprensa. Há quem elogie, há quem diga mal e há quem, simplesmente, se aborreça. O actor e escritor Al Boliska propôs uma definição célebre que hoje anda citada por todo o lado: “Viajar de avião”, disse ele, “são horas de tédio interrompidas por puro terror.” Ainda assim, Boliska só critica o viajar de avião, não todo o viajar. Mas há quem demita qualquer espécie de viagem. O conhecido romancista Paul Theroux, com obra assinalável transposta para o cinema, observava que “viajar só é glamoroso em retrospecto”, isto é, só funciona depois de terminada a viagem, ao contá-la, ao serão, aos amigos. William Trevor dizia o mesmo, de outra maneira: “Ele só viajava para poder voltar para casa”, isto é, o melhor da viagem era o regresso. Nem Ulisses foi tão longe: suspeito que gostou mais da ida do que da volta
De entre os demolidores do mito da viagem, citarei o talvez mais antigo (será?): Sócrates, que disse, imaginem, esta barbaridade: “Vê um promontório, uma montanha, um mar, um rio e viste tudo.” Como se não houvesse rios e rios, promontórios e promontórios, cidades e cidades! Quem pode ser de opinião que o Amazonas é o mesmo que qualquer pífio afluente de um rio de trazer por casa… Quem pode afirmar que ver Leiria é o mesmo que ver Paris ou Veneza! Ou como se Florença fosse o mesmo que Alguidares de Baixo! Ou como se o Iguaçu não diferisse grande coisa das pindéricas “cascatas” da Namaacha, da minha saudosa infância africana!
Claro que é preciso saber viajar, saber ver e, sobretudo, gostar de ver. Viajar por viajar é inútil e fica caro. Como dizia o outro, não vale a pena dar a volta ao mundo só para contar o número de gatos que há em Zanzibar.(…)
Viajar – o convite à viagem! Há quem proteste em termos paradoxais: “É pena”, dizia Chesterton, “as pessoas viajarem por países estrangeiros; estreita-lhes de tal maneira o espírito.” Sterne, no seu imenso Tristram Shandy, não vai tão longe, mas faz uma recomendação: “Um homem deve também conhecer alguma coisa do seu próprio país, antes de ir para o estrangeiro.”(...)
“Viajar é quase como falar com homens de outros séculos”, dizia Descartes. (...).»
Eugénio Lisboa, em ensaio publicado no JL

sexta-feira, 7 de junho de 2024

Visitar Angola

Cataratas de Kalandula

Baía de Luanda, Angola

Porto Amboim, Angola

Angola recebe-nos, à chegada, em traje estival de grande sedução. Impossível não a sentir e dizer-lhe que é igual a tantas outras paragens que enchem a nossa memória. Não. Angola teima em marcar a diferença. Saúda-nos num jeito quente que invade e acaricia como a repetir que voltar é sempre um acontecimento inevitável. Angola tem-nos desde que nela nos descobrimos .Retomá-la é apenas um processo de renovada partilha.
Angola é um dos mais belos países africanos. Imensa , luxuriante, imponente e por vezes frágil e elegante oferece um manancial de paisagens inesquecível . Andar de olhos abertos. Descobrir. Absorver. Deixar entrar tudo o que se abarca numa diversidade desconcertante é o desassossego dos dias em África. Imparável, inebriante, imprevista, incómoda, infinda, inigualável, inquieta… importuna quem avista para se intrometer sem permissão. 
Em África, estar ou viver é sempre uma estimulante provocação, um inquieto fascínio. Escolher para onde ir, quando tudo se insinua ,em desconhecida volúpia paisagística, é o maior desafio para quem chega ou (re)torna a Angola.
Percorrer a longa costa de Angola é uma prodigiosa e festiva descoberta. Tudo se compôs em diversidade e beleza. Rochosa, verdejante, imponente, afável, em falésia ou em enseada nunca deixa de abraçar o mar . Ora opaco ora transparente, ora irado ora pacífico, o Mar de Angola bordeja a costa com arte e paixão. 
Mar de Angola. Mar de muitos mares . Mares que se alongam no horizonte. Distantes. Vastos na imensidão do Oceano. Mares que coabitam com a cidade e a molduram de maresia. Mares dos pescadores que neles labutam. Mares do sustento de laboriosa gente. Mares das praias encantadas. Mares que beijam e afagam. Mares que se espalham por vastos areais dourados. Mares que se desdobram em pregas de espuma e de dobras acetinadas. Mar azul que se enrola no olhar. Mar sublime que se insinua .Mar que sonha e faz sonhar . Mar de cálidas águas e doces sussurros .
Mar de Angola: Mar de fogo ao poente. Mar de esperança ao nascente. Mar de Angola. Um Mar de muitos mares .
Angola 4K - Scenic Relaxation Film With Inspiring Music 
Angola é um dos países mais bonitos e ainda pouco descobertos de África. Aproveite este filme panorâmico de relaxamento 4K apresentando as diversas paisagens de Angola. Das místicas formações rochosas de Pungo Andongo ao poder das Cataratas de Kalandula , antigas Quedas do Duque de Bragança, Angola irá deixá-lo maravilhado com a sua beleza sem fim.

quinta-feira, 6 de junho de 2024

Um Epílogo

Quando estes poemas pareceram velhos,
e for risível a esperança deles:
já foi atraiçoado então o mundo novo,
ansiosamente esperado e conseguido
- e são inevitáveis outros poemas novos,
sinal da nova gravidez da Vida
concebendo, alegre e aflita, mais um mundo novo,
só perfeito e belo aos olhos de seus pais.

E a Vida, prostituta ingénua,
terá, por momentos, olhos maternais.
                        5/junho/1942
Jorge de Sena, in Coroa da Terra, Lello & Irmão, Porto, 1946

A minha companheira Ísis

Cabias na palma da minha mão,
quando chegaste, naquela manhã
Ver-te, tão pequenina, que emoção:
tu, mínima e peluda castelã
!

Ficaste, logo ali, de mim cativa
e eu, cativo de ti, sem remédio,
ao ver-te tão pequena e já tão viva,
e tão arisca ao mais pequeno assédio!

Mínima promessa de tanta graça,
eras meiguice e eras travessura,
vendedora de doçura e de pirraça,

o negro e branco pelo à mistura!
És hoje um lindo tigre gracioso,
que é, embora mínimo, fogoso!
                        13.07.2020
Eugénio Lisboa,
que dedica este soneto à sua gatinha Ísis, em sinal de gratidão pela boa companhia que ela lhe tem feito, nestes dias sombrios.

Os usos da Literatura

Eugénio Lisboa
Os usos da Literatura
por Eugénio Lisboa
“A literatura instrui-nos, dá-nos prazer, educa-nos, abre-nos portas inesperadas para o mundo e para dentro de nós, torna-nos inquiridores e aventureiros, escuda-nos contra os pestilentos ratos de esgoto, mostra-nos que há tragédia mas, também, momentos de alegria sublime, expõe-nos aos mais diversos rostos do amor, desde a Assia, de Turguenev, por mim descoberta, na adolescência, passando pela Natasha ou pela Karenina, de Tolstoi, pela pequena Jane Eyre, frágil, mas firme, declarando, tremendo, a um portentoso Rochester: “We are equal!”, assim pisando, pela primeira vez, um feminismo forte, destemido e não perverso, ou pela inesquecível Gise, da grande saga francesa, de Martin du Gard, sem esquecer as imortais protagonistas de Stendhal, Mme de Rênal e a esplendorosa Sanseverina (e a Vanina Vanini?).
A literatura torna-nos fortes, quando, mergulhando-nos nos mais fundos abismos da condição humana, verificamos que, após tal mergulho, afinal, prevalecemos. Quando, com catorze ou quinze anos, verifiquei, pela pena do grande O’Neill, que a América triunfal e poderosa, se tornara herdeira dos grandes trágicos gregos e de um dilacerado Strindberg, percebi que atravessar tudo aquilo e continuar vivo era um milagre de força. Senti que valia a pena viver. O mesmo se passou com os grandes romances e novelas de Dostoiewsky. Fiodor Sologub iniciou-me, sem me destruir, nos mundos da loucura, por via do seu protagonista do perturbante romance O DEMÓNIO MESQUINHO (na tradução portuguesa, A LOUCURA DE PEREDONOV). Sally Salminen deu-me a vida inteira, num belo romance arrumado em ilhas escandinavas. Hemingway deu-nos heróis e heroínas inesquecíveis, os horrores da guerra e da guerra civil e a invencível fragilidade que se aninha nos peitos mais fortes. Mas tentou “salvar-nos”, com uma singular promessa: o homem pode ser destruído, mas não vencido.
Ler os trágicos gregos, a seguir à morte do meu irmão, purgou-me e salvou-me, em vez de me destruir. A tragédia lava e redime.
Os grandes cómicos, Molière ou Wodehouse, encheram-me de sol e de água fresca. O grande Pirandello fez-me rir, dilacerando-me e tornando-me desconfiado, isto é, prevenido.
Nesta altura do campeonato, estou a ouvir o sussurro de um qualquer rato de esgoto: “Este tipo quer-nos convencer de que leu tudo e mais alguma coisa.” Responderei, como respondeu D’Annunzio a Gide: sim, li tudo, na esperança de encontrar finalmente A OBRA-PRIMA.”
Eugénio Lisboa, em 17.07.2023

terça-feira, 4 de junho de 2024

Visitar Marrocos

  
Marrocos 4K pelo Scenic Relaxation  Film.
"Marrocos é um país com muita História  e de grande beleza. 
Aproveite este filme panorâmico de relaxamento 4k apresentando as maravilhas e paisagens de Marrocos. Das imponentes montanhas do Atlas à movimentada cidade de Marraquexe, Marrocos irá deixá-lo maravilhado com tudo o que tem para oferecer! Qual é o seu lugar favorito em Marrocos?"
 
Marrocos 8K HDR 60FPS (FUHD).
Marrocos em 8k acompanhe a nossa viagem por este país encantador. Explorando as ruas e mercados de Marrakech, Fez, a cidade azul de Chefchaouen, o deserto de Arfoud e a antiga cidade de Ouarzazate.

segunda-feira, 3 de junho de 2024

No centenário da morte de Franz Kafka

Franz Kafka aos 34 anos
Nascido em Praga em 1883, capital do Reino da Boémia e então parte do Império Austro-Húngaro, o que era o senhor Kafka? Que nacionalidade tinha, ou tem em nossas mentes hoje? Talvez a ele se aplique de verdade o que disse Fernando Pessoa, seu contemporâneo, que  a sua pátria era a sua língua? Obedecendo ao desejo paterno, ele entrara em 1908 para uma companhia especializada em seguros de acidentes de trabalho. Segundo o seu biógrafo, Kafka era um advogado dedicado e bem-sucedido, um negociador temido pelo patronato, que vencia quase todas as causas assumidas. O seu sonho, contudo, era sair de Praga, libertar-se das garras da família e ir viver como escritor em Berlim, ao lado da noiva, Felice Bauer.   Ao morrer, em decorrência da tuberculose, com apenas 40 anos de idade, é já lendária a história de que pediu ao amigo Max Brod que queimasse os seus escritos, que considerava inacabados. O amigo não acatou o seu desejo, e a literatura jamais foi exactamente a mesma. Franz Kafka faleceu em 3 de Junho de 1924, de insuficiência cardíaca, após ter a saúde minada durante sete anos por uma dolorosa tuberculose da laringe.
Max  Brod foi o primeiro a ocupar-se da fascinante obra kafkiana, a qual continua longe de ser plenamente explorada. E permanece ainda hoje fonte inesgotável de novas descobertas e insights. Como descreve o biógrafo Reiner Stach: "Na sua cabeça corria sem parar um filme. Provavelmente como o que se vivencia sob o efeito de drogas, ou durante a puberdade."
Kafka com a noiva Felice Bauer
Crianças na estrada
por Franz Kafka
"Eu ouvia os carros a passar ao longo do gradeamento do jardim, por vezes via‑os também por entre os buracos da folhagem que oscilavam ao de leve. Como rangia a madeira dos seus raios e lanças ao Verão escaldante! Dos campos, vinham os trabalhadores, rindo‑se que era uma vergonha.
Estava sentado no nosso pequeno baloiço, descansando entre as árvores do jardim dos meus pais.
Em frente ao gradeamento, era um corrupio. Crianças em passo de corrida desapareciam num ápice; carroças de cereais com homens e mulheres sentados em cima dos feixes e à volta deles escureciam os canteiros de flores; à tardinha, vi um senhor de bengala a passear sem pressas e algumas raparigas que, de braço dado, se cruzaram com ele desviaram‑se, ao cumprimentar, para a erva da berma.
Depois, pássaros levantaram voo como salpicos, segui‑os com o olhar, vi‑os a ganhar altura de um só fôlego até já não acreditar que eram eles a ganhar altura, mas sim eu a cair, e, agarrando com firmeza nas cordas por me sentir fraco, comecei a baloiçar um pouco. Não tardei a baloiçar com mais força, numa altura em que o vento já soprava mais frio e, em vez dos pássaros a voar, apareceram estrelas tremeluzentes.
Serviram‑me o jantar à luz das velas. Estive quase sempre com ambos os braços pousados no tampo de madeira e foi já cansado que mordi a minha fatia de pão com manteiga. As cortinas, muito esburacadas, enfunavam ao vento quente e, por vezes, alguém que ia a passar lá fora segurava‑as com as mãos quando queria ver‑me melhor e falar comigo. Normalmente, a vela não tardava a apagar‑se e os mosquitos andavam ainda às voltas em grupo durante um certo tempo no fumo escuro dela. Se alguém me fizesse uma pergunta pela janela, eu mirava‑o como se estivesse a olhar para as montanhas ou só para o ar, e esse alguém também não estava muito interessado numa resposta.
Mas, se alguém saltava então por cima do parapeito da janela como anúncio de que os outros já estavam em frente da casa, eu punha‑me de pé com um suspiro.
“Mas que suspiros são esses? Afinal, que é que aconteceu? Foi uma desgraça especial, irreparável? Nunca poderemos recuperar dela? Está tudo realmente perdido?”
Nada estava perdido. Corríamos para diante da casa. “Graças a Deus que finalmente apareceis!” — “Vens sempre atrasado!” — “Mas eu o quê?” — “Tu, pois, fica em casa, se não queres vir connosco.” — “Sem quartel!” — “O quê? Sem quartel? Que estás para aí a dizer?”
Enfiámo‑nos de cabeça pelo fim do dia adentro. Não havia nem dia nem noite. Ora os botões dos nossos coletes roçavam uns nos outros como se fossem dentes, ora corríamos a uma distância uniforme, de boca esbraseada, como os animais nos Trópicos. Batendo com os pés como couraceiros em velhas guerras e dando saltos para o ar, empurrámo‑nos pela curta rua abaixo e, com este balanço nas pernas, outra vez pela estrada acima. Alguns metiam‑se pela valeta, mal desapareciam diante do aterro escuro, já estavam lá em cima no caminho dos campos, como pessoas estranhas, a olhar para baixo.
“Descei daí, vá lá!” — “Vinde primeiro cá acima!” — “Para nos atirardes para baixo, nem pensar, não somos assim tão burros.” — “Sois assim tão cobardes, é o que quereis dizer. Vinde, vinde!” — “Aisim? Vós? Vós é que ides atirar‑nos para baixo? Essa é que era boa!”
Lançámo‑nos ao assalto, apanhámos um encontrão no peito e deitámo‑nos na erva da valeta, caindo de livre vontade. Tudo estava uniformemente aquecido, estendidos na erva não sentíamos nem calor nem frio, ficava‑se só cansado.
Se nos virássemos para o lado direito, pondo a mão debaixo da orelha, era fácil adormecer. É certo que queríamos voltar ainda alevantar‑nos de queixo erguido, mas para cairmos numa valeta mais funda. Depois, com o braço estendido em cruz, as pernas entortadas, queríamos lançar‑nos contra o ar, na certeza de cairmos outra vez numa valeta ainda mais funda. E não queríamos de modo nenhum parar com isto.
Mal pensávamos ainda em como nos estiraríamos ao máximo na última valeta, sobretudo os joelhos, para dormirmos a sério, e estávamos estendidos de costas como se estivéssemos doentes, com vontade de chorar. Pestanejámos, quando aconteceu um rapaz, de cotovelos encostados aos quadris, saltar por cima de nós do aterro para a estrada com solas escuras.
Via‑se a Lua já bastante alta, passou um carro dos correios ao luar. Levantou‑se por todo o lado um vento ligeiro, mesmo na valeta se sentia, e, ali perto, o bosque começou a rumorejar. Agora, não estávamos muito interessados em estar sozinhos.
“Onde estais?” — “Vinde cá!” — “Todos juntos!” — “Que estás tu a esconder‑te, deixa‑te de parvoíces!” — “Não sabeis que o correio já passou?” — “Olha que esta! Já passou?” — “Claro, passou estavas tu a dormir.” — “Estive a dormir? Olha que essa!” — “Cala a boca, estás mesmo com ar disso.” — “Mas ouve lá.” — “Vinde!”
Corremos mais chegados uns aos outros, alguns davam‑se as mãos, não se conseguia erguer suficientemente a cabeça, porque o caminho era a descer. Alguém soltou um grito de guerra índio, deu‑nos um galope nas pernas como nunca, ao saltarmos, o vento levantava‑nos pelas ancas. Nada teria podido deter‑nos; íamos numa tal passada que mesmo ao fazermos ultrapassagens podíamos cruzar os braços e olhar tranquilamente em volta.
Na ponte do riacho, parámos; os que tinham continuado a correr voltaram para trás. A água lá em baixo batia nas pedras e nas raízes como se não fosse e já à noitinha. Não havia razão nenhuma para não se saltar para o parapeito da ponte.
De trás de umas moitas distantes, saiu um comboio, todos os compartimentos estavam iluminados, as janelas, de certeza, descidas. Um de nós começou a cantar uma cantiguinha da moda, mas todos queríamos cantar. Cantávamos muito mais depressa do que o comboio seguia, balançávamos os braços, porque a voz não bastava, metemo‑nos com as vozes numa confusão em que nos sentíamos bem. Quando misturamos a nossa voz com outras é como se tivéssemos sido apanhados num anzol.
Assim cantámos, com o bosque pelas costas, aos ouvidos dos viajantes lá ao longe. Os adultos ainda estavam acordados na aldeia, as mães estavam a abrir as camas para a noite.
Já eram horas. Dei um beijo ao que estava ao pé de mim, estendi as mãos por desfastio aos três mais próximos, pus‑me a correr para casa pelo mesmo caminho, ninguém chamou por mim. Na primeira encruzilhada, em que eles já não podiam ver‑me, mudei de direcção e corri pelos caminhos dos campos de volta ao bosque. A minha ideia era ir para a cidade que ficava ao sul e de que se dizia na nossa aldeia:
“As pessoas que ali há! Vejam lá, não dormem!”
“E porque não?”
“Porque não ficam cansadas.”
“E porque não?”
“Porque são uns tolos.”
“Mas então os tolos não se cansam?”
“Como é que os tolos podiam cansar‑se!”
Franz Kafka, in Contos, Parábolas, Fragmentos, Relógio D’Água Editores, pp.25-28
Franz Kafka, em 1924 , ano da sua morte

Sobre o Autor:
"Franz Kafka nasceu a 3 de Julho de 1883, no bairro judeu de Praga, filho de Julie Löwy e do comerciante Hermann Kafka. Teve cinco irmãos, dois rapazes desaparecidos na infância e três irmãs mortas em campos de concentração nazis.
Frequentou o ensino primário na escola alemã Deutsche Knabenschule, o que terá influenciado a escolha da língua em que irá escrever, apesar de saber checo e em diversas ocasiões ter estudado o iídiche.
Os estudos liceais foram no gymnasium alemão, em Praga. Estudou depois Filologia na Universidade Alemã de Praga e terminou uma licenciatura em Direito em Novembro de 1903. Aos 20 anos, escreve a novela “Crianças na Estrada”. Em 1906, exerce actividade como advogado e, dois anos depois, emprega-se na Repartição de Seguros de Acidentes de Trabalho para a Boémia.
Kafka vai escrever o essencial da sua obra entre 1908 e 3 de Junho de 1924 em Praga e Berlim.
Ao longo desses dezasseis anos, viajou por diversos países, por vezes em companhia de amigos, entre os quais Max Brod. Passou temporadas em sanatórios, sobretudo desde que lhe foi diagnosticada tuberculose em Setembro de 1917. Teve também relações amorosas com Felice Bauer, Milena Jesenská, Julie Wohryzek e Dora Diamant.
Mas, para ele, o essencial na vida foi a escrita, os seus três romances incompletos, os diários, os contos e as novelas.
O carácter singular do seu universo viria a ser sublinhado por Walter Benjamin, nos escritos que lhe dedicou e na correspondência que teve com Gerhard Scholem, por Maurice Blanchot, Jorge Luis Borges, Vladimir Nabokov e Giorgio Agamben, e por muitos outros escritores e ensaístas.
O seu universo ficcional foi marcado por uma concepção mística da tradição e pela experiência do homem na cidade moderna, dependente de um aparelho burocrático controlado por instâncias indiferentes, remotas e por isso cruéis.
Um tal poder discricionário encarnava nos chefes de família e foi isso que Kafka viu em Hermann, como mostra a sua Carta ao Pai. Instituições estatais e patriarcas uniam-se para inscrever labirintos de culpa em espíritos como o de Kafka.
Como escreveu Walter Benjamin, “Kafka vivia num mundo complementar”, que ele observava sem ter em conta o que cava para além dele.
Para Kafka, a realidade chegava na forma de um rumor das coisas autênticas e dessa espécie de loucura que era a essência das suas personagens.
Da vida de Kafka sabemos o que nos chegou através da correspondência, dos Diários e de Max Brod, que ele conheceu em 1902 e que viria a ser o seu primeiro biógrafo e depositário do testamento literário (recusou-se, no entanto, a cumprir a vontade de Kafka de que lhe queimasse os manuscritos após a morte).
Dos seus três romances, O Desaparecido é o menos kafkiano, e O Processo, o mais celebrado. Borges considerou não ter sido por acaso que nos romances faltam capítulos intermédios, pois “também no paradoxo de Zenão faltam os pontos infinitos que Aquiles e a tartaruga têm de percorrer”. A Metamorfose é uma novela quase perfeita que faz a ponte entre os romances e os volumes de contos que nos deixou, dos quais “Durante a Construção da Muralha da China”, Na Colónia Penal e o póstumo “Um Artista da Fome” são talvez os mais extraordinários. Deixou ainda aforismos e um extenso diário, que reduz a uma linha a notícia do início da Primeira Guerra Mundial.
Internado no sanatório de Kierling, perto de Viena, em 1924, na fase terminal da sua tuberculose, Kafka pediu ao seu amigo e médico Robert Klopstock que o ajudasse a morrer, quando verificou que estava a perder a fala."
Sobre o Livro:
Tradução (do alemão) e nota prévia de António Sousa Ribeiro.
"Este livro reúne todos os textos narrativos breves de Kafka. Isso abrange “não apenas a totalidade da prosa narrativa curta publicada em vida de Kafka, mas também uma selecção das publicações póstumas mais ampla do que a incluída em edições ou traduções correntes. […] O critério de selecção visou incluir, tanto quanto possível, todos os textos cuja forma ou cujo estado de desenvolvimento permite conferir-lhes um certo grau de autonomia, deixando de lado tão-somente tentativas de carácter embrionário ou interrompidas antes de uma suficiente definição da intenção textual. A selecção incidiu apenas sobre textos de carácter narrativo, não contemplando os fragmentos de natureza ensaística ou aforismática.”
[Da nota prévia de António Sousa Ribeiro]. 

domingo, 2 de junho de 2024

Ao Domingo Há Música

 

E lucevan le stelle
Ed olezzava la terra
Stridea l'uscio dell'orto
E un passo sfiorava la rena
Entrava ella, fragrante
Mi cadea fra le braccia
Oh! dolci baci, o languide carezze
Mentr'io fremente le belle forme disciogliea dai veli!
Svanì per sempre il sogno mio d'amore...
L'ora è fuggita e muoio disperato!
E non ho amato mai tanto la vita!

Agora (ela) fugiu e eu morro desesperado!/ E nunca amei tanto a vida! ... Um dorido lamento perante a morte, quando o amor foi intenso.
Eis um grande tenor para dar voz a uma das mais belas árias de Puccini .
 
Jonas Kaufmann , em E lucevan le stelle, da Ópera Tosca, de Giacomo Puccin
   
 "A ária 'E Lucevan Le Stelle',(A Despedida Sob as Estrelas), composta por Giacomo Puccini, é uma das peças mais emocionantes da ópera 'Tosca', estreada em 1900. Esta música é cantada pela personagem Mario Cavaradossi, um pintor apaixonado, momentos antes de sua execução. As letras reflectem a intensidade de seus últimos pensamentos e a dor de uma despedida iminente. A letra começa descrevendo uma cena tranquila e bela onde as estrelas brilham e a terra exala seu aroma, contrastando profundamente com o tormento interno de Cavaradossi. Ele relembra o amor de sua amada Tosca, evocando memórias de encontros secretos e carícias suaves. Essa reminiscência serve como um escape momentâneo de sua realidade cruel, mas também intensifica a sua dor ao perceber que esses momentos não retornarão. O clímax da ária revela a agonia de Cavaradossi ao aceitar o seu destino fatal. As palavras 'E non ho amato mai tanto la vita!' traduzem a ironia trágica de seu apreço pela vida justamente quando está prestes a perdê-la. Esta linha não apenas resume a essência emocional da ária, mas também evidencia uma reflexão profunda sobre o valor da vida e do amor, especialmente sob a sombra da morte iminente."
 
Num diferente registo, Jonas Kaufmann, em Nella fantasia, do filme Mission. Música de Ennio Morricone , Letra de   Chiara Ferraù.

sábado, 1 de junho de 2024