segunda-feira, 3 de junho de 2024

No centenário da morte de Franz Kafka

Franz Kafka aos 34 anos
Nascido em Praga em 1883, capital do Reino da Boémia e então parte do Império Austro-Húngaro, o que era o senhor Kafka? Que nacionalidade tinha, ou tem em nossas mentes hoje? Talvez a ele se aplique de verdade o que disse Fernando Pessoa, seu contemporâneo, que  a sua pátria era a sua língua? Obedecendo ao desejo paterno, ele entrara em 1908 para uma companhia especializada em seguros de acidentes de trabalho. Segundo o seu biógrafo, Kafka era um advogado dedicado e bem-sucedido, um negociador temido pelo patronato, que vencia quase todas as causas assumidas. O seu sonho, contudo, era sair de Praga, libertar-se das garras da família e ir viver como escritor em Berlim, ao lado da noiva, Felice Bauer.   Ao morrer, em decorrência da tuberculose, com apenas 40 anos de idade, é já lendária a história de que pediu ao amigo Max Brod que queimasse os seus escritos, que considerava inacabados. O amigo não acatou o seu desejo, e a literatura jamais foi exactamente a mesma. Franz Kafka faleceu em 3 de Junho de 1924, de insuficiência cardíaca, após ter a saúde minada durante sete anos por uma dolorosa tuberculose da laringe.
Max  Brod foi o primeiro a ocupar-se da fascinante obra kafkiana, a qual continua longe de ser plenamente explorada. E permanece ainda hoje fonte inesgotável de novas descobertas e insights. Como descreve o biógrafo Reiner Stach: "Na sua cabeça corria sem parar um filme. Provavelmente como o que se vivencia sob o efeito de drogas, ou durante a puberdade."
Kafka com a noiva Felice Bauer
Crianças na estrada
por Franz Kafka
"Eu ouvia os carros a passar ao longo do gradeamento do jardim, por vezes via‑os também por entre os buracos da folhagem que oscilavam ao de leve. Como rangia a madeira dos seus raios e lanças ao Verão escaldante! Dos campos, vinham os trabalhadores, rindo‑se que era uma vergonha.
Estava sentado no nosso pequeno baloiço, descansando entre as árvores do jardim dos meus pais.
Em frente ao gradeamento, era um corrupio. Crianças em passo de corrida desapareciam num ápice; carroças de cereais com homens e mulheres sentados em cima dos feixes e à volta deles escureciam os canteiros de flores; à tardinha, vi um senhor de bengala a passear sem pressas e algumas raparigas que, de braço dado, se cruzaram com ele desviaram‑se, ao cumprimentar, para a erva da berma.
Depois, pássaros levantaram voo como salpicos, segui‑os com o olhar, vi‑os a ganhar altura de um só fôlego até já não acreditar que eram eles a ganhar altura, mas sim eu a cair, e, agarrando com firmeza nas cordas por me sentir fraco, comecei a baloiçar um pouco. Não tardei a baloiçar com mais força, numa altura em que o vento já soprava mais frio e, em vez dos pássaros a voar, apareceram estrelas tremeluzentes.
Serviram‑me o jantar à luz das velas. Estive quase sempre com ambos os braços pousados no tampo de madeira e foi já cansado que mordi a minha fatia de pão com manteiga. As cortinas, muito esburacadas, enfunavam ao vento quente e, por vezes, alguém que ia a passar lá fora segurava‑as com as mãos quando queria ver‑me melhor e falar comigo. Normalmente, a vela não tardava a apagar‑se e os mosquitos andavam ainda às voltas em grupo durante um certo tempo no fumo escuro dela. Se alguém me fizesse uma pergunta pela janela, eu mirava‑o como se estivesse a olhar para as montanhas ou só para o ar, e esse alguém também não estava muito interessado numa resposta.
Mas, se alguém saltava então por cima do parapeito da janela como anúncio de que os outros já estavam em frente da casa, eu punha‑me de pé com um suspiro.
“Mas que suspiros são esses? Afinal, que é que aconteceu? Foi uma desgraça especial, irreparável? Nunca poderemos recuperar dela? Está tudo realmente perdido?”
Nada estava perdido. Corríamos para diante da casa. “Graças a Deus que finalmente apareceis!” — “Vens sempre atrasado!” — “Mas eu o quê?” — “Tu, pois, fica em casa, se não queres vir connosco.” — “Sem quartel!” — “O quê? Sem quartel? Que estás para aí a dizer?”
Enfiámo‑nos de cabeça pelo fim do dia adentro. Não havia nem dia nem noite. Ora os botões dos nossos coletes roçavam uns nos outros como se fossem dentes, ora corríamos a uma distância uniforme, de boca esbraseada, como os animais nos Trópicos. Batendo com os pés como couraceiros em velhas guerras e dando saltos para o ar, empurrámo‑nos pela curta rua abaixo e, com este balanço nas pernas, outra vez pela estrada acima. Alguns metiam‑se pela valeta, mal desapareciam diante do aterro escuro, já estavam lá em cima no caminho dos campos, como pessoas estranhas, a olhar para baixo.
“Descei daí, vá lá!” — “Vinde primeiro cá acima!” — “Para nos atirardes para baixo, nem pensar, não somos assim tão burros.” — “Sois assim tão cobardes, é o que quereis dizer. Vinde, vinde!” — “Aisim? Vós? Vós é que ides atirar‑nos para baixo? Essa é que era boa!”
Lançámo‑nos ao assalto, apanhámos um encontrão no peito e deitámo‑nos na erva da valeta, caindo de livre vontade. Tudo estava uniformemente aquecido, estendidos na erva não sentíamos nem calor nem frio, ficava‑se só cansado.
Se nos virássemos para o lado direito, pondo a mão debaixo da orelha, era fácil adormecer. É certo que queríamos voltar ainda alevantar‑nos de queixo erguido, mas para cairmos numa valeta mais funda. Depois, com o braço estendido em cruz, as pernas entortadas, queríamos lançar‑nos contra o ar, na certeza de cairmos outra vez numa valeta ainda mais funda. E não queríamos de modo nenhum parar com isto.
Mal pensávamos ainda em como nos estiraríamos ao máximo na última valeta, sobretudo os joelhos, para dormirmos a sério, e estávamos estendidos de costas como se estivéssemos doentes, com vontade de chorar. Pestanejámos, quando aconteceu um rapaz, de cotovelos encostados aos quadris, saltar por cima de nós do aterro para a estrada com solas escuras.
Via‑se a Lua já bastante alta, passou um carro dos correios ao luar. Levantou‑se por todo o lado um vento ligeiro, mesmo na valeta se sentia, e, ali perto, o bosque começou a rumorejar. Agora, não estávamos muito interessados em estar sozinhos.
“Onde estais?” — “Vinde cá!” — “Todos juntos!” — “Que estás tu a esconder‑te, deixa‑te de parvoíces!” — “Não sabeis que o correio já passou?” — “Olha que esta! Já passou?” — “Claro, passou estavas tu a dormir.” — “Estive a dormir? Olha que essa!” — “Cala a boca, estás mesmo com ar disso.” — “Mas ouve lá.” — “Vinde!”
Corremos mais chegados uns aos outros, alguns davam‑se as mãos, não se conseguia erguer suficientemente a cabeça, porque o caminho era a descer. Alguém soltou um grito de guerra índio, deu‑nos um galope nas pernas como nunca, ao saltarmos, o vento levantava‑nos pelas ancas. Nada teria podido deter‑nos; íamos numa tal passada que mesmo ao fazermos ultrapassagens podíamos cruzar os braços e olhar tranquilamente em volta.
Na ponte do riacho, parámos; os que tinham continuado a correr voltaram para trás. A água lá em baixo batia nas pedras e nas raízes como se não fosse e já à noitinha. Não havia razão nenhuma para não se saltar para o parapeito da ponte.
De trás de umas moitas distantes, saiu um comboio, todos os compartimentos estavam iluminados, as janelas, de certeza, descidas. Um de nós começou a cantar uma cantiguinha da moda, mas todos queríamos cantar. Cantávamos muito mais depressa do que o comboio seguia, balançávamos os braços, porque a voz não bastava, metemo‑nos com as vozes numa confusão em que nos sentíamos bem. Quando misturamos a nossa voz com outras é como se tivéssemos sido apanhados num anzol.
Assim cantámos, com o bosque pelas costas, aos ouvidos dos viajantes lá ao longe. Os adultos ainda estavam acordados na aldeia, as mães estavam a abrir as camas para a noite.
Já eram horas. Dei um beijo ao que estava ao pé de mim, estendi as mãos por desfastio aos três mais próximos, pus‑me a correr para casa pelo mesmo caminho, ninguém chamou por mim. Na primeira encruzilhada, em que eles já não podiam ver‑me, mudei de direcção e corri pelos caminhos dos campos de volta ao bosque. A minha ideia era ir para a cidade que ficava ao sul e de que se dizia na nossa aldeia:
“As pessoas que ali há! Vejam lá, não dormem!”
“E porque não?”
“Porque não ficam cansadas.”
“E porque não?”
“Porque são uns tolos.”
“Mas então os tolos não se cansam?”
“Como é que os tolos podiam cansar‑se!”
Franz Kafka, in Contos, Parábolas, Fragmentos, Relógio D’Água Editores, pp.25-28
Franz Kafka, em 1924 , ano da sua morte

Sobre o Autor:
"Franz Kafka nasceu a 3 de Julho de 1883, no bairro judeu de Praga, filho de Julie Löwy e do comerciante Hermann Kafka. Teve cinco irmãos, dois rapazes desaparecidos na infância e três irmãs mortas em campos de concentração nazis.
Frequentou o ensino primário na escola alemã Deutsche Knabenschule, o que terá influenciado a escolha da língua em que irá escrever, apesar de saber checo e em diversas ocasiões ter estudado o iídiche.
Os estudos liceais foram no gymnasium alemão, em Praga. Estudou depois Filologia na Universidade Alemã de Praga e terminou uma licenciatura em Direito em Novembro de 1903. Aos 20 anos, escreve a novela “Crianças na Estrada”. Em 1906, exerce actividade como advogado e, dois anos depois, emprega-se na Repartição de Seguros de Acidentes de Trabalho para a Boémia.
Kafka vai escrever o essencial da sua obra entre 1908 e 3 de Junho de 1924 em Praga e Berlim.
Ao longo desses dezasseis anos, viajou por diversos países, por vezes em companhia de amigos, entre os quais Max Brod. Passou temporadas em sanatórios, sobretudo desde que lhe foi diagnosticada tuberculose em Setembro de 1917. Teve também relações amorosas com Felice Bauer, Milena Jesenská, Julie Wohryzek e Dora Diamant.
Mas, para ele, o essencial na vida foi a escrita, os seus três romances incompletos, os diários, os contos e as novelas.
O carácter singular do seu universo viria a ser sublinhado por Walter Benjamin, nos escritos que lhe dedicou e na correspondência que teve com Gerhard Scholem, por Maurice Blanchot, Jorge Luis Borges, Vladimir Nabokov e Giorgio Agamben, e por muitos outros escritores e ensaístas.
O seu universo ficcional foi marcado por uma concepção mística da tradição e pela experiência do homem na cidade moderna, dependente de um aparelho burocrático controlado por instâncias indiferentes, remotas e por isso cruéis.
Um tal poder discricionário encarnava nos chefes de família e foi isso que Kafka viu em Hermann, como mostra a sua Carta ao Pai. Instituições estatais e patriarcas uniam-se para inscrever labirintos de culpa em espíritos como o de Kafka.
Como escreveu Walter Benjamin, “Kafka vivia num mundo complementar”, que ele observava sem ter em conta o que cava para além dele.
Para Kafka, a realidade chegava na forma de um rumor das coisas autênticas e dessa espécie de loucura que era a essência das suas personagens.
Da vida de Kafka sabemos o que nos chegou através da correspondência, dos Diários e de Max Brod, que ele conheceu em 1902 e que viria a ser o seu primeiro biógrafo e depositário do testamento literário (recusou-se, no entanto, a cumprir a vontade de Kafka de que lhe queimasse os manuscritos após a morte).
Dos seus três romances, O Desaparecido é o menos kafkiano, e O Processo, o mais celebrado. Borges considerou não ter sido por acaso que nos romances faltam capítulos intermédios, pois “também no paradoxo de Zenão faltam os pontos infinitos que Aquiles e a tartaruga têm de percorrer”. A Metamorfose é uma novela quase perfeita que faz a ponte entre os romances e os volumes de contos que nos deixou, dos quais “Durante a Construção da Muralha da China”, Na Colónia Penal e o póstumo “Um Artista da Fome” são talvez os mais extraordinários. Deixou ainda aforismos e um extenso diário, que reduz a uma linha a notícia do início da Primeira Guerra Mundial.
Internado no sanatório de Kierling, perto de Viena, em 1924, na fase terminal da sua tuberculose, Kafka pediu ao seu amigo e médico Robert Klopstock que o ajudasse a morrer, quando verificou que estava a perder a fala."
Sobre o Livro:
Tradução (do alemão) e nota prévia de António Sousa Ribeiro.
"Este livro reúne todos os textos narrativos breves de Kafka. Isso abrange “não apenas a totalidade da prosa narrativa curta publicada em vida de Kafka, mas também uma selecção das publicações póstumas mais ampla do que a incluída em edições ou traduções correntes. […] O critério de selecção visou incluir, tanto quanto possível, todos os textos cuja forma ou cujo estado de desenvolvimento permite conferir-lhes um certo grau de autonomia, deixando de lado tão-somente tentativas de carácter embrionário ou interrompidas antes de uma suficiente definição da intenção textual. A selecção incidiu apenas sobre textos de carácter narrativo, não contemplando os fragmentos de natureza ensaística ou aforismática.”
[Da nota prévia de António Sousa Ribeiro]. 

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