quinta-feira, 27 de julho de 2023

A mais bela respiração da vida


A mais bela respiração da vida
por Eugénio Lisboa
 
Pomos de lado cartas, para nunca mais as voltarmos a ler e,por fim,
destruímo-las, por razões, de discrição, e assim desaparece 
a mais bela, mais imediata respiração da vida, irrecuperavelmente, 
para nós e  para os outros.                           
                Goethe – As Afinidades Electivas
 
“Conheci, pessoalmente, José Régio, por puro acidente. Quero com isto dizer que o não conheci por me ter posto à procura de o conhecer. Nunca fui de andar a correr atrás de glórias, mesmo de glórias que eu admirasse. Nunca fui, por outras palavras, um caçador de troféus, com que me fizesse fotografar. Nunca manejei uma máquina fotográfica, com que fosse preparando uma fotobiografia-a-haver. Nunca acreditei em me dar um hipotético acréscimo de estatuto, por uma estratégia de proximidade fotográfica (ou outra) de outros de maior estatuto que o meu. Trata-se, digamos, de uma questão de pudor e, também, se quiserem, de sentido estético. No meu código de conduta, isso não se faz. É feio correr atrás da glória dos outros, para construir, com ela, um pouco da nossa própria. É, além do mais, grotesco. Nenhuma glória durará excessivamente, porque a aventura humana, neste planeta – e o próprio planeta – têm o seu fim garantido, a mais ou menos curto prazo. Nada ficará disto, nem sequer a memória disto. Acho pois bem que alguma coisa se preserve, para melhor instrução dos vindouros próximos, mas cabe aqui, ao pudor, uma função amaciadora. Nada de exageros de ambição: devemos estar conscientes de que trabalhamos para herdeiros de um futuro de duração limitada. Convém ser modesto, isto é, realista. Deixemos, com carinho, as nossas memórias, mas sabendo muito bem que não há, para elas, eternidade. Elas – com as nossas visões, emoções, pensamentos, descobertas – irão durar o que puderem durar e que não será, em termos galácticos, mais do que um instante. Tudo passa.
Conheci, pois, José Régio, por acidente. Se quiserem, por castigo. Fizera um curso para oficial miliciano, em Mafra, onde fui um cadete rebelde, desobediente e desrespeitador da disciplina militar. Acumulei castigos que me recusei a cumprir. Poderia ter pago uma factura pesada, mas não cheguei a pagá-la, porque o comandante da unidade era um homem benigno (encontrava-se, além do mais, seriamente doente). Tive boas (muito boas) classificações, nas disciplinas “técnicas”, mas fui atirado para o fim da lista, em matéria de “comportamento”. Resultado: em vez de ser colocado em Lisboa, como me convinha (e pedi), para concluir o último ano do curso de engenharia, mandaram-me para um Batalhão perto da fronteira alentejana, a cinco horas de combóio de Lisboa (o Batalhão de Caçadores nº1, em Portalegre). A notícia perturbou-me e, simultaneamente, acenou-me com uma possível compensação. Perturbou-me porque estar longe de Lisboa me iria dificultar muito as idas necessárias ao Instituto Superior Técnico, para trabalhos práticos, uma ou outra aula, exames, etc. O aceno de esperança compensatória tinha que ver com José Régio, que vivia, grande parte do ano, em Portalegre, como professor do liceu, e cuja obra eu admirava desde os meus dezasseis anos, em Lourenço Marques. A Velha Casa – o que dela já existia, nessa altura: os dois primeiros volumes – empolgara-me, pelo poder dramático, pela excelência e minúcia da análise psicológica, pelo estilo, pela promessa de uma longa aprendizagem... Afinal, talvez o castigo militar viesse a valer a pena e eu fosse ao Alentejo “faire un bon usage des maladies”, como recomendara o grande Pascal. E, com efeito, assim viria a ser.
Devido ao Carnaval, cheguei ao Batalhão com um ou dois dias de atraso. Recebeu-me o 2º Comandante, Major Azevedo Coutinho, homem de poucas falas, caçador de mérito, e, como vim depois a saber (e verificar), leitor aplicado dos clássicos portugueses, que gostava de citar. “Só agora? Andou a brincar ao Carnaval?”, perguntou-me, sério, mas sem aleijar... Aquilo até soava mais a ironia benigna de quem não alinha por aí além no empertigamento militar. Calhou-me. Não me apeteceu repontar com ele e disse-lhe que tivera coisas universitárias a alinhavar. Em breve, vim a verificar que, embora cumpridor, o Major Azevedo Coutinho era dotado de sentido de humor, deslocava-se devagar como um elefante pesado e bom, e não desgostava de, muito a propósito, citar uma passagem de clássico bem faisandé... A citação vinha sempre bem mastigada, com as sílabas bem separadas e impecavelmente debitadas, ao sabor de uma sonoridade muito bem emitida.
O comandante propriamente dito, isto é o Coronel Silveira e Lorena (descendente dos Távoras da Índia, dizia-se), não era o comandante de facto. Mais ou menos pusilânime e atrapalhado, tinha um medo de morte do segundo comandante, que até era, afinal, boa pessoa, apesar do ar severo e secreto, de caçador empenhado. Ironias.
Logo um ou dois dias depois de ter chegado a Portalegre e me ter acomodado na espelunca que era o Quartel de S. Francisco, antigo convento a cair aos bocados  e pertinho do cemitério e da casa do Régio (tudo aquilo, algo sinistro e ventoso, como no Monte dos Vendavais, da Emily Brontë), o meu colega de tropa Rui Serrão (a estudar Direito) veio, alvoroçado, perguntar-me: “Queres conhecer o Régio?” Fiquei logo a abanar. Claro que queria conhecer o Régio! Nem eu queria outra coisa! Como? Onde? Quando? Aquilo, realmente calhava-me: virem assim oferecer-me o Régio, numa bandeja...a mim que não era nada dado a andar a correr atrás das eminências! O Rui esclareceu: tinha estado no Café Central, depois do almoço, com outros aspirantes milicianos da nova fornada, eis se não quando se aproximara da mesa deles um Dr. Feliciano Falcão, simpático e sorridente, que lhes perguntara se, por acaso, quereriam conhecer o José Régio. O Rui dissera logo que sim e que tinha um outro colega (eu), que, por certo, desejaria o mesmo. Combinámos, pois, a seguir ao jantar desse dia, darmos um salto ao Café Central, mais ou menos a meio da Rua Direita.
O Dr. Falcão, como vim a verificar, com o convívio, era um médico analista de grande mérito (galardoado com um prémio de investigação), bastante culto, melómano, possuidor de uma magnífica biblioteca e de uma não menos magnífica discoteca, e um homem de uma extrema bondade. Como poucos anos antes, estivera ali um aspirante miliciano, de nome David Mourão-Ferreira, que rendera para tertúlias, literaturas, convívios e amizades, o Dr. Falcão, ao ver, agora, ali no Café, uns oficiais de conversa menos boçal, pensou que se pudessem renovar os anos de ouro do David ou algo de mais ou menos semelhante. De aí a simpática aproximação. Feliciano Falcão era um alentejano profundo, que se lhe via na fala, e tinha um ar de entrega generosa e desajeitada. Era, por convicção, comunista (não o proclamava nem se lhe via nos modos nem no débito da conversa), mas admirava sem reservas a obra do Régio, embora ele e o poeta já tivessem estado de relações cortadas. Tinha uma inteligência aberta e gostos eclécticos e gostava de convívio e de o alargar generosamente a outros. Fiquei logo a gostar dele e considero-o um dos mais raros exemplares de ser humano com quem me cruzei na vida. Em grupo, a sua candura e quase “inocência” (no melhor sentido) chegavam a irritar e provocar os demónios assanhados do Régio, que, uma ou outra vez, lhe enviesou umas farpas besuntadas de veneno. Confesso que não gostei. (Os jogos de cabra cega não tinham, pelos vistos, acabado na Coimbra dos anos vinte e os dias de trovoada, no Alentejo, traziam demasiado à tona os demónios interiores do autor de A Velha Casa...)
Seja como for, depois do jantar, eu e o Rui Serrão dirigimo-nos para o Café. Era inverno e o Régio já lá estava, sentado, de sobretudo, presidindo, com bonomia, à tertúlia, enrolando vagarosamente o cigarro, enquanto respondia às perguntas daquela assembleia visivelmente suspensa das suas palavras: o Dr. Falcão, o pintor Arsénio Ressurreição, o educadíssimo Sr. Pombeiro e outros. Em noites subsequentes, apareceria também, com frequência, o excelente capitão Saraiva e a sua simpática mulher, Luísa, que fora aluna do Régio, no liceu de Portalegre. Não foi também infrequente a presença do meu colega (e hoje amigo) de Batalhão, Mário Carrinho (apesar de um namoro intercidades, que lhe comia o melhor do tempo livre, ao telefone...) Feitas as apresentações, sentámo-nos, entrando com dificuldade naquele círculo já bastante apertado, eu, intimidado que baste, por ter à minha frente, aquele monumento da literatura, que me dera tantas horas de deslumbramento e descoberta. O Régio ia-nos deitando, à sorrelfa, um olhar perscrutador, às vezes disparado, de soslaio, a partir daqueles “olhos sulfúricos, esfíngicos e belos”, que narcisicamente cantara no primeiro poema dos Poemas de Deus e do Diabo. Aquilo, caramba, intimidava! De tal maneira, que, à moda dos do jogo da cabra cega, entornei, para começar, uma chávena de café! Bonito, disse eu, com os meus botões: começas bem! Nunca me esquecerei dessa noite: embora nervoso, lá procurei escorvar a conversa, dirigindo ao grande escritor perguntas aos baldes. Ele era um conversador estimulante, extremamente articulado e procurando, visivelmente, formular, diante de nós, um pensamento, que ia construindo, com cuidado mas sem pretensões de brilho (que, aliás, detestava) ou de originalidade rebuscada. Aquilo cheirava mesmo a seriedade, sem vestígios de trapaça. O Régio que ali nos falava ficava igualzinho ao personagem que a obra inculcava. Vi logo que a minha estadia em Portalegre, com todos os seus inconvenientes (e eram de monta!) ia muito valer a pena.
Falar-lhe n’A Velha Casa, com o pormenor e a paixão com que lhe falei, obviamente agradou-lhe. Sentia-se, como ficcionista, um mal-amado da crítica. E com mais do que alguma razão.
Conversámos pela noite dentro e eu fui metendo a minha colher em minúcias da obra poética, ficcional, teatral e ensaística, que tanto me tinha cativado, perturbado e ensinado. Régio não se fazia rogado ao assalto da minha curiosidade e percebia-se que era sensível à minúcia e ao cuidado das minhas leituras. À saída, eu, ele e o Rui Serrão fomos juntos: íamos, Rua Direita acima, na mesma direcção, visto que, como já disse, o quartel de S. Francisco ficava a dois passos da casa do Régio.
De aí em diante, as reuniões no Central tornaram-se diárias. Tirante os dias em que eu ia a Lisboa ou aqueles em que Régio ia , de férias, a Vila do Conde, ou os que estive em Santa Margarida, para manobras militares, o resto foi dedicado à conversa, à mesa do Central, a qual, por vezes, se prolongava, madrugada dentro, à boleia de uns copos e umas rodelas de chouriço, numa tasca, perto da Rua Direita.
Falámos abundantemente de poesia, de teatro, de ficção, de filosofia... Régio andava a afastar-se, cada vez mais, da literatura francesa e, sobretudo, da Nouvelle Revue Française, que lhe parecia, na sua fase posterior à segunda guerra mundial, dominada por uns peralvilhos brilhantes, superficiais e irresponsáveis... Pendia mais para o romance inglês e russo e menos para o francês (ressalvando, é claro, gigantes como Stendhal e Proust). O “brilho” e a “facilidade” francesas incomodavam-no. A rapidez com que faziam extrapolações e punham de pé, como dogma, uma teoria com pés de barro encrespava-o. E o meio literário lisboeta, vastamente amamentado nas leviandades gaulesas, ia ser, no quarto volume de A Velha Casa, submetido, por Lelito, a uma análise de uma crueldade implacável e demolidora.
Em Portugal, dos nomes mais recentes, admirava enormemente Irene Lisboa, considerava Miguel Torga “um grande escritor de curto fôlego”, estimava muito (mas com reservas) Adolfo Casais Monteiro, admirava francamente António Sérgio, respeitava Ferreira de Castro, tinha pena de que Gaspar Simões se tivesse ido enterrar no atoleiro do jornalismo lisboeta, não levando, por outro lado, nada a bem a (ressentida) avaliação crítica, cheia de reticências, que Simões dedicara aos volumes da Velha Casa... Não estimava Miguéis, cujo brilho inegável tinha por superficial e cujo discurso crítico normativo em relação à “arte que se devia fazer no nosso tempo” Régio totalmente desvalorizava e desprezava. Branquinho da Fonseca era excelente, mas preguiçoso – Lisboa dera cabo dele. Não podia deixar de admirar o virtuosismo linguístico de Nemésio, a sua erudição, mas desconfiava do homem e da verdadeira espessura da obra. Aquilino era grande (enorme), mas começara, a partir de certa altura, a “profissionalizar-se”, isto é, a aproveitar-se demasiado do “treino de escrever”, ou seja, da “velocidade adquirida”, o que, num pequeno país como Portugal, pode levar a uma forma de prostituição... Admirava Pascoaes, genial bardo nocturno (como o viu Sérgio), apesar das passagens delirantes e dos desarrumos que nele abundavam. Mais para trás, mas ainda próximos, preferia claramente Oliveira Martins e Camilo a Eça de Queirós. Pessoa era um “grande homem de letras”, um virtuoso de causar vertigens, mas tinha sérias dúvidas quanto à natureza do poeta que nele houvesse. Tinha profunda e amistosa admiração por Raul Brandão. Admirava António Botto, cuja obra estudara e corajosamente defendera, embora não tivesse ilusões quanto à vaidade e megalomania do homem. E adorava cinema, de que não perdia um filme que lhe passasse à mão de semear.
Régio deixou, de um modo geral, fama mal fundamentada, de bicho soturno e fugido ao convívio. Nada mais falso. Sabia preservar as horas necessárias ao trabalho de professor (rigoroso) e de escritor, sem falar na abundante correspondência que, a partir de certa altura, devido à celebridade crescente, teve que manter. Mas era-lhe indispensável a tertúlia regular, com os amigos. E era, não raro, divertido e brincalhão. Para dar só um exemplo, uma noite, no Café, (estava eu, o Rui Serrão, o capitão Saraiva e a mulher, o Dr. Falcão e mais alguém que agora me não ocorre), desafiou-nos para irmos a sua casa (o casarão...), para ali fazermos uma leitura “dramática” da sua peça em um acto, As Três Máscaras. Cada um de nós “interpretaria” um dos personagens, embora nós fôssemos em maior número do que os personagens (a Luisa, claro,  foi a Columbina). Assim fizemos, lendo o texto, com a ênfase que conseguimos municiar, para grande gáudio colectivo e do próprio Régio, que se comportou como anfitrião aplicado. No final do exercício, perguntou-nos se queríamos um copinho para aquecermos. Ao toque de um uníssono “sim”, dirigiu-se a um enorme baú onde armazenava dezenas de Cristos de madeira e desenterrou, de entre toda aquela tralha sagrada, uma profaníssima e bruta garrafa de Pedro Domecq, cujo néctar agressivo nos serviu em copinhos adequados... O sagrado e o profano, ali, no seu máximo esplendor! O “teatro” veio abaixo, com aplausos!
Embora cada vez mais à vontade connosco (eu, o Rui Serrão, o capitão Saraiva), à medida que o tempo passava, Régio , homem de pudor, no contacto social (nunca se lhe ouvia um palavrão ou, simplesmente, uma palavra um pouco mais grosseira), chegava a ficar embaraçado, indo mesmo ao ponto de corar, com certas saídas espalhafatosas e brejeiras do Rui Serrão. Uma noite, no Central, a reunião prolongou-se. À meia noite, o relógio de parede começou a badalar a mudança de dia. Olhando, fixa e dramaticamente, o relógio, de olhos muito arregalados, o Rui estendeu os braços, pedindo o nosso silêncio, e pronunciou, em tom solene  e tribunício, dirigindo-se directamente ao poeta: “Régio! Meia noite! A hora pornográfica por excelência!” Visivelmente intrigado e embaraçado, Régio balbuciou, corando muito: “Ó Rui Serrão, francamente... Pornográfica porquê?...” E logo o Rui: “Então não vê um dos ponteiros em cima do outro?” Rimos todos, mas quem riu mais, fazendo as despesas da casa, foi o Rui Serrão.
Nem sempre estávamos de acordo, eu e o Régio, como, por exemplo, quando ele torcia o nariz ao Gide e ao Valéry, que eu admirava e a quem muito devia. Concedia-lhes, ele, a fina inteligência, mas achava-os “estéreis”. Eu ia aos arames, civilizadamente, claro, para o não magoar. Ele era mais pela poesia espontânea e menos pela arte cerebral e triturada de Valéry ou Mallarmé (ou Pessoa ou Sena). O “desarrumo” de Brandão ou Dostoiewsky não o incomodava, pelo contrário (o que não deixava de ser irónico, quando nos lembramos das acusações de excesso de “formalismo” e de “esteticismo” que os neo-realistas lhe assacaram a ele e aos da presença...)
Em suma, noite dentro, noite fora, cruzávamos ideias, paixões e desafectos e pouco ficava por escavar. No Verão, Régio partiu para férias, em Vila do Conde e eu parti para Santa Margarida, para manobras militares, poeira e pouca água para o banho. Santa Margarida serviu para eu aprofundar, com baldes de argumentos, a minha aversão à vida militar. Naquela palhaçada poeirenta e sem propósito, consolava-me apenas com a contemplação da esbelteza dos cavalos: lindos animais! Uma carga de infantaria, com fogo real, deu-me uma ideia aproximada do inferno que é a guerra. E do crime que cometem os que a engendram.
Mas tive o prazer inesquecível de ver o Santos Costa – braço direito da repressão salazarista – a ser flagrantemente desobedecido e desautorizado pelo comandante militar do campo: o fascista mandão a proibir, em alta grita, que saíssemos do campo, para fim de semana prolongado, e o general-comandante, logo após a saída do energúmeno, a mandar entregar-nos os passes para o combóio que nos ia levar ao desejado interregno! Tive aí o primeiro vislumbre de que nem tudo era sossego e harmonia no casulo lusíada a que Salazar presidia. A paróquia começava a cansar-se do pároco e seus oficiantes.
No regresso a Portalegre – eu, vindo da poeira, da militança, do sujo e da má comida, o Régio, de umas apetecidas férias, em Vila do Conde - , retomámos a nossa conversa, no Café Central. Logo na primeira noite, quando saímos do Café, a caminho de casa, o Régio, com ares de quem tinha alguma coisa de importante a comunicar-me e gerindo, com malícia, algum saboreado “suspense”, disse-me, com ar sobriamente pimpão: “Ah, tenho uma novidade para si: arranjei-lhe um editor...”  Surpreendido e um pouco aterrado, respondi que ficava muito lisonjeado, mas que não precisava de editor porque não tinha nada para publicar. O que era verdade: não tinha na minha gaveta, nenhum livro de poemas clandestino, nenhum diário escondido, nenhuma novela secretamente congeminada... Não cometera ainda o pecado de escrever. Nada. “Não tem, mas vai ter”, respondeu ele, muito assertivo. Fiz-lhe notar que parecia saber mais sobre o meu futuro do que eu próprio. Acabou por abrir o jogo: um editor do Porto – Tavares Martins – iniciara, havia pouco, uma colecção de bolso, “Poetas de Ontem e de Hoje”, dirigida por João Gaspar Simões, na qual acabara de ser publicado o primeiro volume, dedicado à poesia de Garrett. O editor queria que o volume seguinte contemplasse a poesia de Régio. Pedia-lhe, para isso, aprovação e apoio: fotografias, sugestões, o que fosse. Régio ter-lhe-ia respondido que sim, mas com a condição de ser ele a escolher a pessoa que iria organizar o livro e a escrever a introdução e demais aparelhagem crítica. E logo acrescentou que essa pessoa era um aspirante miliciano, que acabara de conhecer em Portalegre e lhe parecia a pessoa adequada para a tarefa. Tavares Martins aceitou e logo comunicou a decisão a João Gaspar Simões, que não pôs objecções (apesar de estar, nessa altura, de relações cortadas com José Régio).
Fiquei, é claro, lisonjeado, mas sem vontade nenhuma de aceitar. Fiz-lhe, mais uma vez, ver que nunca tinha publicado uma linha que fosse, de artigo, crónica, crítica ou simples testemunho. Que lia muito, com atenção crítica e genuíno prazer. Mas não passava disso. Régio ripostou que, ao longo de todos aqueles meses de convívio apertado, em conversas longas e aquecidas, pudera avaliar o meu acúmen crítico, a minha sensibilidade e perspicácia e o conhecimento profundo que mostrava ter da sua obra. Quanto à arte de escrever, era simples: mergulhasse, e logo se via! Ele não tinha dúvidas quanto à valia do resultado. Dei bom, honesto e prolongado combate, mas não arredou pé. Acabei por me render, dizendo-lhe que ia arriscar, mas que o responsável pelo fiasco seria ele... Acho que sorriu em itálico. De aí a pouco terminaria o meu serviço militar e iria para Lisboa, onde faria os estágios que me faltavam para obter o diploma de engenheiro electrotécnico. Nesse período, a começar no início de Março de 1955, procuraria congeminar a introdução e demais aparelhagem crítica que sustentasse a antologia. Régio dava-me liberdade de escolha dos poemas, com uma condição: não incluísse o famoso “Cântico Negro” e até, preferivelmente, nenhum dos poemas que constituíam os Poemas de Deus e do Diabo (queria pôr um travão à demasiada popularidade do livro todo e daquele poema em particular). Não me resignei e disse-lhe que, popular ou não, aquele poema era uma bandeira da sua autonomia e feroz independência. Não podia ser eliminado. Com muito trabalho, acabei por convencê-lo.
Ia ser duro: estágios, relatórios dos ditos, e mais aquele exercício literário, ainda por cima, novo: um ensaio de sondagem original de uma obra vasta, rica e complexa, cheia de vivências religiosas e místicas, que me eram alheias, mas que me fascinavam, vividas por um ser excepcionalmente sensível e inteligente, que soubera moldá-las em arquitecturas eficazes e empolgantes. E o ensaio, num estilo que fosse meu e não traísse demasiado a teia de significados que           o autor d’Encruzilhadas tecera, ao longo de atormentados anos.
Instalado na simpática casa do Rui Serrão (inesquecível República, onde se aboletavam também, a Fernanda Simões, a Célia e o João Machado), à Rua Praia da Vitória, no Saldanha, trabalhei denodadamente, aproveitando as noites e os fins de semana. Aconteceu-me o que costuma acontecer aos que começam: quis pôr tudo quanto tinha a dizer – despejar o saco! – logo no primeiro parágrafo... Saber esperar, aguardar o momento próprio para fazer fulgurar a farpa iluminada, que tinha de reserva – não era comigo. Não poder mostrar logo as riquezas todas era um sofrimento! As ideias “boas” atropelavam-se umas nas outras, sôfregas de virem à luz da ribalta... Passei noites sem dormir, à custa de doses maciças de anfetaminas e, finalmente, em meados de Maio enviei ao Régio o manuscrito (mesmo manuscrito, escrito à mão, em letra muito bem desenhada, para evitar dificuldades de leitura: não podia pedir à Fernanda que mo dactilografasse, porque andava ocupada a dactilografar os relatórios dos estágios). E fiquei a aguardar, com grande nervosismo, o veredicto do autor de Benilde: ia-me valendo, como distracção para os nervos, o esforço com os estágios e a redacção, mais ou menos inepta, dos relatórios dos ditos. Ao fim de alguns dias, que me pareceram uma eternidade, recebi, com data de 22 de Maio, a carta dilacerantemente aguardada. Régio, eu sabia-o, não era dado a excessos histéricos, quando se tratava de avaliar e elogiar. Eu estava preparado para um juízo sóbrio e cauteloso. Por isso, mesmo lendo a carta, onde ele não traía este protocolo de alguma reserva, as suas palavras deixaram-me a tremer de emoção e prazer: “O que não pode ser louvar-me – é reconhecer eu a penetração, a densidade, o encadeamento lógico, visíveis (e creio que, felizmente, não só a mim!) em todo o estudo e que, aliás, eu já esperava de Você.”  E por aí fora. Fiquei literalmente eufórico. Tinha finalmente escrito um ensaio literário e o melhor juiz no assunto tinha-o aprovado e até elogiado! Era realmente demais! Andava pela rua a ter pena de toda a gente que andava por ali sem ter recebido uma carta como aquela...
O manuscrito foi devidamente encaminhado para o editor, depois de algumas correcções de pormenor, sugeridas, com justeza e justiça, por Régio, e, em 21 de Agosto,, depois de ter recusado um bom emprego, em Alverca, parti para Lourenço Marques, à la recherche du temps perdu.
Noutro lugar – o meu terceiro volume de memórias, há pouco publicado – conto o que foi esse reencontro com Moçambique e essa segunda (ou terceira) vivência africana, que duraria 21 anos. Fui mantendo, com Régio, um contacto epistolar não demasiado assíduo, mas, em todo o caso, continuado, acrescentado de duas visitas que lhe fiz, em idas minhas a Portugal, em 1963 e 1968. É esse acervo de cartas suas, a que junto as que lhe escrevi, que hoje aqui se fixa em livro, por me parecer de interesse humano e literário. Nele, Régio dá eminente testemunho da sua integridade, frontalidade, inteligência e sensibilidade. E da sua fidelidade, na amizade. A sua insistência amiga – e quase severa – para que eu levasse “mais a sério” a minha vocação de escritor ficar-me-á, para sempre, como um remorso. De facto, só comecei a sair de uma certa forma  - embora valiosa – de “amadorismo” literário, já depois da morte do escritor. E comecei a fazê-lo, pagando, assim, a sua insistência amiga e bem intencionada, com a redacção do meu volumoso José Régio – A Obra e o Homem. E foi uma factura pesada: a obra, minuciosamente documentada e meticulosamente pensada, foi escrita, em Lourenço Marques, num isolamento quase monacal, que me devorou  férias, noites, fins de semana e repeliu, por longo tempo, o contacto com amigos. Era este o livro que eu gostaria de ter oferecido, em vida sua, ao escritor que tanto deslumbrara e iluminara os meus anos adolescentes. E que não parei de ler e estudar, pela vida fora.
As correspondências de escritores podem ser – e são-no muitas vezes – um retrato penoso de egos não domesticados e de vaidadezinhas torpes. Esta, de Régio, não envergonha o homem que fez a obra, o qual é, em tudo, igual ao homem que a obra faz supor. Dá-nos um discurso límpido, originado numa alma atormentada e rica. Por isso, faço questão de o não deixar esquecido.”
Eugénio Lisboa
S.Pedro do Estoril, Outubro de 2013.

Sem comentários:

Enviar um comentário