quinta-feira, 24 de março de 2016

Um mundo vertiginosamente pior

Retomo o último volume de "Acta est Fabula", o quinto tomo das Memórias de Eugénio Lisboa, publicado em Outubro de 2015, para retirar algumas páginas de uma   sábia e acutilante reflexão sobre o nosso mundo, sobre o tempo que passa. A clarividência  é um dos traços que marca obstinadamente esta  escrita.
" Acta est Fabula, Memórias-V-Regresso a Portugal (1995-2015)", Editora Opera Omnia,
"Aproveito este intervalo para deixar claro algo que tem vindo a aparecer nas entrelinhas e, às vezes, nalgumas das linhas deste diário: a minha cada vez maior impaciência com aquilo em que o mundo se tem estado a transformar e com a maioria das gentes que actualmente o povoam. Ia gradativamente sentindo que os meus valores pouco lhes diziam e, pelo meu lado, pouca ou quase nenhuma apetência sentia pelos valores que eles privilegiavam. Um fosso enorme começava a separar-nos. Não se tratava só, da minha parte, de não compreender esse mundo novo e os seus jovens e menos jovens habitantes: é que não me apetecia fazer um esforço por compreendê-los. Tinham valores e gostos que não me interessavam: tinham subitamente desatado a não me interessar. Impacientavam-me, irritavam-me, pareciam-me cópias baratas e mal amanhadas de modelos exteriores, já de si, maus modelos, mas grosseira e superficialmente copiados: fúteis, ruidosos, malsãos, pouco elegantes. As pessoas vestiam-se mal, falavam mal, comiam mal, amavam mal, conversavam mal, liam mal, escreviam mal. As suas proclamadas “inovações” começavam a interessar-me cada vez menos, gostava cada vez mais de reler e cada vez menos de ler. Via, em tantas das saudadas e promovidas “inovações” apenas uma confrangedora falta de conhecimentos básicos e uma anemia sintáctica de mau agoiro. Sintomas de envelhecimento? Possivelmente. Mas tenho que dizer o que sinto, porque este exercício de escrever memórias impõe um duro código de autenticidade. Não posso nem devo fazer batota. Dito isto, não creio que se trate apenas de envelhecimento. O mundo não está numa das suas finest hours. O mundo está a mudar vertiginosamente para pior. Eu diria que caminha a passos largos para o abismo. As televisões tornaram-se um universo pavorosamente degradado, visando cada vez mais baixo, a bem das audiências mais boçais e da publicidade que as paga. (...)
A palavra “moderno” tornou-se a maior prostituta do glossário nacional. As bancadas parlamentares bem comportadinhas e obedientes são uma ofensa à dignidade, à independência e à democracia. Os aparelhos partidários voltaram definitivamente costas aos interesses nacionais, para dividirem coutadas, como quem vende jóias roubadas. Os “donos” do aparelho são, para todos os efeitos, casos de polícia. As histórias de grossa corrupção tornaram-se deliciosamente quotidianas: todos os dias há uma melhor do que a do dia anterior. Nenhuma “imperfeição” do Primeiro Ministro é suficientemente grave para incomodar os ministros, seus colegas, nem os parlamentares da sua coligação, que estão ali, supostamente, para lhe escrutinar os actos. O “brio” é um conceito pré-histórico, obsoleto, escarnecido. Um Primeiro Ministro, em Portugal, nem à pedrada se demite. (...)
O mundo à nossa volta degrada-se a olhos vistos. Há uma liberdade de costumes que, bonita de início, breve se volveu libertinagem e grosseria. 
(...)O êxito passou a ser a Estrela Polar desta sociedade. Tudo se mede pelo “êxito”. O êxito de vendas (de livros, por exemplo) faz passes magnéticos até aos novos-ricos boçais que enchem as universidades. José Rodrigues dos Santos, o Dan Brown do Tejo, vai, por convite, a universidades respeitáveis, onde debita banalidades redondas e troça de autores que vendem menos do que ele. E é recebido como se o seu “produto” fosse coisa de levar a sério: não tarda muito, será alvo de uma dissertação de mestrado ou, mesmo, upa-upa!
Os clássicos vão sendo arredados das escolas e substituídos pela algaraviada chula dos jornais: sempre está mais à la page. É mais moderno, é “do nosso tempo”, meu! Mesmo homens inteligentes e de alguma qualidade, mesmo filósofos, mesmo gente que se supunha de algum “panache” não resistem ao canto da sereia das “Olás!” e das “Gentes”. Paga-se reverencioso tributo a quem é muito conhecido apenas por ser muito conhecido. Os bárbaros, afinal, não estão à porta para o saque previsto, porque foram apanhados pela globalização e fazem como toda a gente: abandalham-se e drenam a sua energia numa bacanal sem estilo nem propósito. Cercadores e cercados fazem parte do mesmo apocalipse. Os “chineses” invadem mas dissolvem-se no meio da chicana dos invadidos. As civilizações caem sem luta. E não há; à vista, civilização que substitua outra civilização.
Roger Martin du Gard – que Régio, muito injustamente “pretendia” não admirar – e André Gide, seu grande amigo, experimentaram -  e sobre isso escreveram -  isto mesmo, este sentir que o mundo em que, no final da vida, se encontravam a viver , já não era o deles. (Passo a traduzir:) “O meu tempo passou, estou a sobreviver-lhe. Assisto de longe à renovação, como espectador afastado e atento”, escrevia o autor de Les Thibault, no seu Journal, em 1944. Para eles (Martin du Gard e Gide) parte importante dos seus últimos anos passaram-nos no meio do grande e devastador conflito que foi a 2ª guerra mundial, com a França ocupada pelo inimigo. Depois deste sismo, nada ficaria na mesma. Num admirável artigo dedicado às duas obras-testamento de Gide e de Martin du Gard, respectivamente, Thésée e Maumort, André Alessandri escreve (eu traduzo): “Desmorona-se todo o mundo no qual eles acreditavam, no qual o seu gosto da independência e a sua paixão pelo individualismo se movimentavam à vontade.  A Segunda Guerra Mundial marca, para eles, o fim de todo um estado de coisas, de toda uma cultura, de que eles terão sido, de alguma maneira, os últimos representantes e que poderemos chamar humanista, no duplo sentido das humanidades da Renascença e do humanismo do século XIX. (…)  Ao ler Jean-Paul Sartre e os autores da nova geração, [Martin du Gard] experimenta, cada vez mais, a impressão de ser um anacronismo.”
De há um tempo a esta parte, tenho vindo a sentir o mesmo. E não foi preciso passar por uma guerra mundial. O que se passa por esse mundo fora, com a destruição de todo um tesouro arqueológico, por fanáticos religiosos de um certo “Islão”, sob a patética impotência de uma ONU-para-inglês-ver e de um mundo ocidental mais atento aos “mercados” do que aos verdadeiros valores – provoca, em mim, cada vez mais uma grande náusea de viver num mundo como este. A razão ou, antes, o uso dela é cada vez mais o apanágio de cada vez menos gente. Mesmo aqui, em Portugal, alguns “campeões” da desvalorização da razão – que qualificam estupidamente de “mito” – vão fazendo escola e afortunada clientela. No século XXI – no século XXI! – o fanático aderir a balelas coloridas e obviamente inverificáveis demonstra , de forma cristalina, que a humanidade, em média, progrediu, intelectualmente, muito pouco, da Idade Média para cá. Os métodos de escolha de quem nos governa são cada vez mais dominados por sinistras e poderosas máquinas financeiras e lobbies perigosos, que põem no pináculo do poder patetas desprezíveis como Ronald Reagan ou Bush Jr., e quase nos brindaram, para Vice-Presidente da nação mais poderosa do mundo, com uma analfabeta atrevida e primária, como é a Sra. Sarah Pallin. Que isto seja do domínio do possível – é simplesmente aterrador! Anda-se a brincar à beira do abismo – e sem rede.
A quantidade de gente nova, de todos os países, com um luxo de informação disponível, como nunca antes existiu, com dados de História, Ciência, Filosofia, ao alcance de uma tecla de computador, e que não vê, no contexto actual do mundo, melhor opção do que aderir a patetices delirantes e assassinas como o autoproclamado "Estado Islâmico", como se ali estivesse a salvação deles e da humanidade – causa arrepios. Para que serviram, afinal, Sócrates, Descartes, Galileu, Newton, Voltaire, Goethe, Bertrand Russell e outros semelhantes? Para que serviu, ao longo dos séculos, o exercício esforçado da razão, que conseguiu, por um lado, colocar homens na Lua e sondar, de perto, outros planetas, mas não consegue, por outro, evitar o fanatismo, aquecido ao rubro, de religiões assassinas?
Com o aproximar da velhice, estas questões deixam de ser pura especulação sem dor e tornam-se carne dilacerada e espírito em agonia. A náusea, de que falava Sartre, instala-se, para ficar. O desconforto é enorme: o mundo à nossa volta torna-se intoleravelmente estranho, verdadeiramente, um reino estrangeiro. Sentimo-nos de saída." Eugénio Lisboa , in " Acta est Fabula, Memórias-V-Regresso a Portugal (1995-2015)", Editora Opera Omnia, Outubro de 2015,pp.185-192

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