sábado, 27 de fevereiro de 2016

Saborear a bela e fresca prosa de Eugénio Lisboa

Eugénio Lisboa – escrita lúcida, límpida e luminosa
Onésimo Teotónio Almeida
Por Onésimo Teotónio Almeida
“Entrei no vol. V de Acta Esta Fabula, de Eugénio Lisboa (Memórias – V – Regresso a Portugal: 1995-2015, Opera Omnia, 2015) com ânsias de o devorar num ápice, embalado que vinha pelos três anteriores (não errei nas contas; o 2º volume ainda não foi publicado). Para um apreciador de memórias e diários, esperava-me ali de novo uma festa. Além do mais, este vinha anunciado como misturando os dois géneros.
Controlei a vontade de uma leitura a eito, sem interrupções, optando por fazê-la a conta-gotas, antes de adormecer. Em regra, tive mesmo que decidir fechar o livro e enfronhar-me entre lençóis porque ficar horas seguidas acordado a virar páginas era o que verdadeiramente apetecia.
Isto bastará para que o leitor conclua do prazer que foi ter por companhia as memórias de Eugénio Lisboa nuns quantos serões de inverno, refastelando-me regaladamente com uma escrita lúcida, límpida e lumi­nosa, ouvindo a voz do autor relatar-nos dias cheios, variados,  preenchidos frequentemente com prolonga­das e proveitosas leituras nos intervalos de agitadas ocupações por esse mundo.
Nos já quatro volumes publicados, a viagem pelas décadas da vida de Eugénio, desde os seus impe­nitentemente lembrados com saudade de uma infân­cia e adolescência na antiga Lourenço Marques, somos expostos a uma voz que recua no tempo a limpar o pó da recordação e a recuperar do arquivo das suas memórias o que de mais salvável contêm. Eugénio conseguiu sempre recriar ambientes nítidos, retratan­do cenas e personagens da sua vida com uma vitalida­de e acutilância só possíveis graças a uma memória espantosamente fresca.
A maior novidade neste V volume é a abertura de janelas com vista para o seu apetitoso diário inédito. Sugerindo levemente no volume IV, aqui o espaço concedido ao diário é significativamente alargado. Se na escrita memorialista Eugénio Lisboa não deixa nunca a distância derrapar em sentimentalismos ou nostalgias românticas, na escrita diarística, traçada sobre o acontecimento, ele revela o seu agudo, fulmi­nante olhar sobre o quotidiano. Na verdade, a prosa de Eugénio é vigorosa porque enxuta, limpa de toda a adiposidade pegajosa. Ela salta em cima dos dias acompanhando penetrantes relances sobre o quotidia­no, oferecendo-lhe uma expressividade que cativa o leitor e o faz testemunha de cada acontecimento.
São magníficos certos retratos desenhados por este artista do verbo, alguns deles elaborados em sucessivas revisitações, como é o caso de Eduardo Prado Coelho. José Saramago, António Lobo Antunes também, tal como José Rodrigues dos Santos (e, entre as figuras políticas, Santana Lopes). Vergílio Ferreira surge como uma éminence grise que Eugénio Lisboa trata quase como sua nemesis, pelo menos um símbolo daquilo que ele não gostaria de ser (o autor destas linhas, amigo e admirador de Vergílio, consegue apreciar a perspectiva de Eugénio e o modo como a expressa, sem necessariamente concordar com tudo o que ele diz acerca do nosso ensaísta-romancista). Sobre Eduardo Prado Coelho, são-nos servidas várias entra­das captando ângulos da personalidade e obra do crítico literário que durante duas décadas imperou na cena cultural portuguesa. Espreite-se esta: “[…] o EPC vive numa agitação, num saltar, numa “acumu­lação”, numa ausência de sossego (necessário à nu­trição de um pensamento) – que não são o leito fecundador de algo que tenha solidez. Quer mostrar que está em todas, que tudo o interessa com minúcia, que vai a todas as exposições, a todo o teatro, a todos os concertos, conhece todas as divas, todos os actores, leu todos os livros, viu todos os filmes, papou todos os almoços importantes, sabe tudo de ciência, de filosofia, de lingerie, de cosmética, de psiquiatria, de casas de alterne, de psicopatologia, de sexo (de todas as orientações e mais que houvesse, ETC!”) (págs. 309s).  Entre os seus altamente estimáveis autores, reemergem, como habitualmente acontece nos escritos do autor, Montherlant, Camus (não Sartre) e José Régio; mas também António Sérgio e Ferreira de Castro, este desinibidamente elogiado por obras injustamente esquecidas, como por exemplo A Selva (“Os intelectuais da nossa praça farão boquinhas […] [p]referem acreditar que o Lobo Antunes é um génio e o Saramago outro. Quanto a mim, prefiro, folgada­mente, A Selva, […] que é, fora de qualquer dúvida, um grande livro.” pág. 302)
Transparece ao longo de todas estas páginas uma coerência de pensamento e intervenção cívicas nortea­dos por uma ética sólida e interiorizada, uma hombri­dade desenvolta e livre, mas consciente e responsável pelas posições que toma e os pontos de vista que defende e pratica na vida real, como o demonstra a obra deixada na empresa petrolífera em Lourenço Marques; na Embaixada de Portugal em Londes, onde foi Conselheiro Cultural; na presidência da Comissão Nacional da Unesco; na Universidade de Aveiro, onde foi Professor Convidado.
Tudo o acima mencionado é servido ao leitor em páginas de um português escorreito e directo, exacto e firme, lúcido e transparente, porque Eugénio ama a língua como meio de expressão que deve ser elegantemente cultivada, não para ofuscar ideias nem, na ficção, atrapalhar uma boa narrativa. Por isso Eugénio não tem rebuço em confessar abertamente as suas preferências romanescas: “A leitura dos bons romances ingleses e americanos leva-me a ter alguma impaciência com quase toda a ficção lusíada. Pergunto aos meus botões: “Esta gente terá vivido? Terá alguma coisa a dizer? E não me venham com o sempiterno trabalho de linguagem. A linguagem serve para, não se serve a si própria, por mais que possa e deva ser trabalhada. Não vive nem deve viver no puro reino da masturbação.” (p. 262)
A linguagem de Eugénio Lisboa é um exímio exem­plo de como pôr em prática esse seu sentir sobre o que deve ser o lugar da língua e como devemos usá-la para fazer arte romanesca e expressar ideias, dialogar cívica e democraticamente com os nossos interlo­cutores.
O título geral destes volumes memorialistas - Acta Est Fabula – revela um sentimento de estar feito aquilo que o autor tinha de fazer. Todavia falta-lhe ainda escrever muito. Não apenas mais esse 2º volume sobre o seu intenso e rico passado; os leitores seus fãs espe­ram também que possa por muitos anos continuar a  intervir na cena cultural e cívica lusitana, ajudando-nos a pensar e a ver claro, saboreando a sua bela e fresca prosa.” Onésimo Teotónio Almeida, artigo publicado em Portuguese Times - Crónicas

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