quarta-feira, 8 de abril de 2015

As locomotivas dos comboios da Cassequel (Angola)


"Esse comboio malandro
passa
passa sempre com a força dele
        ué ué ué
        hii hii hii
te-quem-tem te-quem-tem  te-quem-tem"
António Jacinto (poeta angolano) , in "castigo pró comboio malandro- Poemas", Casa dos Estudantes do Império
Ponte do Rio Catumbela , Angola
APITA O COMBOIO
“Era muito pequena - oito anos franzinos, mas um ouvido bem treinado e atento aos barulhos que durante o dia rasgavam os céus da sanzala. Aquele tu ... tu... tu.u.u.u.. prolongado - um silvo inconfundível ao cair da tarde - anunciava a chegada do comboio da cana à margem norte do rio Cavaco. A partir dali a marcha abrandava porque o rio demarcava a linha de entrada no coração da cidade.
O eco do último "tu..." era o tiro de partida para a correria que, em período de férias, nos levaria (a mim e ao meu irmão) até junto da linha férrea. Primeiro, o fumo a romper por entre as acácias coloridas; depois, o corpo inteiro da lagarta, a estremecer os espaços onde se apoiavam os ganchos que separavam os vagões carregados de troncos de cana de açúcar.
Víamo-los negros, muito escuros, queimados. Nunca fiz perguntas. Acho que naquela época, entretida a viver a minha curta infância, não precisava de respostas. Não me interessava saber a razão por que faziam queimadas nas plantações da cana. Bastava-me aquele cheiro forte do açúcar em fermentação de cada vez que nos aproximávamos da Catumbela.
Na minha imaginação, a Catumbela fora sempre uma vila doce. De cada vez que ouvia a história dos irmãos Hansen e Gretel, não me assustava com a bruxa. Não ficava presa ao pormenor das migalhas de pão que eles deixavam cair no chão para assinalar a passagem pela floresta. Tudo no conto me passava ao lado, porque eu viajava directamente para a casinha de chocolate. E, para lá chegar, deixava-me guiar pela excitação das minhas marinas, exercitadas naquele cheiro adocicado a céu aberto. Fantasiava que a casinha teria que estar algures por aqueles lados. Só podia ser na Catumbela - um sítio mágico, onde das árvores pendiam folhas caramelizadas, das plantas floriam rebuçados coloridos e o rio, ali tão perto, se deixava arrastar num caudal de leite creme espelhado de açúcar queimado e crocante.
E tudo isto por causa da Cassequel, fábrica onde a cana era transformada em açúcar e depois transportado em grandes sacas de pano onde figuravam as letras da Companhia. O tecido das sacas era depois aproveitado para aventais e panos de cozinha. Na nossa casa, a palavra reciclagem começou a ser praticada muito antes de ser inventada, por mor de práticas que nos ensinavam a nada desperdiçar.
E nós corríamos para o comboio, de paus na mão, suficientemente compridos para encurtarem a distância que ia dos nossos curtos braços até aos vagões. E ficávamos ali postados a vê-lo deslizar sobre os carris, estudando a oportunidade de surripiar algum pedaço de cana que estivesse a espreitar para o lado do musseque. Claro que o meu irmão - nos seus tenros quatro anos - pouco mais fazia do que imitar-me. Dava pequenos saltos e investia com o pau, como quem espicaça um animal na ânsia de o ver aproximar-se.
Ainda hoje me interrogo como é que eu conseguia, mas recordo nitidamente que regressávamos a casa a chupar um pedaço de cana retirado do comboio. Podíamos obtê-la de outra maneira, mas não teria o mesmo significado nem o mesmo sabor - o gosto da vitória sobre uma aventura proibida, mas bem sucedida.Os meus pais nunca souberam o que nos fazia correr, assim que o comboio apitava do outro lado do rio. Talvez pensassem que nos movia uma mera curiosidade e nos quedássemos silenciosos a vê-lo passar.
Quando, muitos anos mais tarde, pisei o palco do Cinema Monumental para, integrada num grupo de jograis, dizer o "Trem de Alagoas" do brasileiro Ascenso Ferreira, não senti debaixo dos pés a madeira encerada do sobrado. Assim que uma colega começou: "O sino bate/ o condutor apita o apito/ solta o trem de ferro um grito,/ põe-se logo a caminhar...", eu estremeci por cima de dois carris do caminho de ferro de Benguela, deixei que a trepidação da linha se apoderasse do meu corpo e ganhei a velocidade do tempo.
Numa viagem de regresso ao passado, continuei pelas entranhas do poema, até me inebriar com o cheiro das estrofes "Cana-caiana/ cana-roxa/ cana-fita/cada qual a mais bonita/ todas boas de chupar..." e deixar o açúcar derreter-se na língua de areia onde estão gravadas as pegadas da minha infância.”
Aida Baptista, in “Passaporte Inconformado”, Ed. Minerva Coimbra
"Maria Aida Costa Baptista nasceu em Pinheiros, concelho de Tabuaço, distrito de Viseu. Com um ano de idade foi para Angola, tendo vivido sempre na cidade de Benguela, onde estudou, casou, teve dois filhos e iniciou a sua carreira docente.
De regresso a Portugal, em 1975, fez a Licenciatura em História e uma Pós-graduação em Estudos Europeus na Universidade de Coimbra e o Mestrado em Literatura e Cultura Portuguesas, na Universidade Nova de Lisboa. Em 1989, candidatou-se a Leitora de Português no estrangeiro e foi colocada pelo ICALP na Universidade de Helsínquia, Finlândia, onde cumpriu uma missão de 8 anos. Em 1998, foi seleccionada pelo Instituto Camões para uma segunda missão, na Universidade de Toronto, Canadá."
Fábrica da Companhia Agrícola de Cassequel, Catumbela , Angola
A vila da Catumbela, em Angola, entre as cidades do Lobito e de Benguela, tinha  em laboração uma grande fábrica de produção de açúcar, a  Companhia Agrícola de Cassequel, que já deixou  de funcionar. Por ela passaram muitos trabalhadores. Entre eles, o escritor Joaquim Soeiro Pereira Gomes,  célebre autor de “Esteiros”.
"Soeiro Pereira Gomes fez os primeiros estudos em Espinho e, a partir de 1920, entrou na Escola Nacional de Agricultura de Coimbra, de onde saiu diplomado em 1928. Não tendo conseguido um emprego compatível com o curso (como administrador de explorações rurais ou encarregado de empresas agrícolas) e querendo casar, parte para Catumbela, Angola, respondendo a um anúncio da Companhia Agrícola de Cassequel, em 1930. (Dois anos antes, havia também viajado para Angola o futuro escritor Alves Redol, procurando uma vida melhor.) Porém, o trabalho e os ares de África obrigaram-no a voltar, doente e debilitado, em meados de 1931. Casou ainda nesse ano - com Manuela Câncio Reis -, começando também a trabalhar nos escritórios da Fábrica Cimentos Tejo, em Alhandra, colocado pelo sogro."
Actualmente, a Vila de Catumbela exibe, junto à Estrada Nacional, estas locomotivas que puxavam os vagões carregados de cana-de-açúcar.















    TREM DE ALAGOAS    
        O sino bate,
        o condutor apita o apito,
        solta o trem de ferro um grito,
        põe-se logo a caminhar... 

                           
                            — Vou danado pra Catende, 
                            vou danado pra Catende,
                            vou danado pra Catende
                            com vontade de chegar... 


        Mergulham mocambos
        nos mangues molhados ,
        moleques mulatos,
        vem vê-lo passar. 

                     
                      — Adeus!
                      — Adeus! 


        Mangueiras, coqueiros,
        cajueiros em flor,
        cajueiros com frutos
        já bons de chupar... 

                 
                   — Adeus, morena do cabelo cacheado! 
                
                   — Vou danado pra Catende,
                    vou danado pra Catende,
                    vou danado pra Catende
                    com vontade de chegar... 


        Na boca da mata
        há furnas incríveis
        que em coisas terríveis
        nos fazem pensar: 

                   
                    — Ali mora o Pai-da-Mata!
                    — Ali é a casa das caiporas! 

                   
                    — Vou danado pra Catende,
                    vou danado pra Catende,
                    vou danado pra Catende
                    com vontade de chegar... 


        Meu Deus! Já deixamos
        a praia tão longe...
        No entanto avistamos
        bem perto outro mar... 


        Danou-se! Se move,
        parece uma onda...
        Que nada! É um partido
        já bom de cortar... 

                   
                     — Vou danado pra Catende,
                      vou danado pra Catende,
                      vou danado pra Catende
                      com vontade de chegar... 

        Cana-caiana
        cana-roxa
        cana-fita
        cada qual a mais bonita,
        todas boas de chupar... 

                   
                     — Adeus, morena do cabelo cacheado! 
                     — Ali dorme o Pai-da-Mata!
                     — Ali é a casa das caiporas! 

                 
                    — Vou danado pra Catende,
                     vou danado pra Catende,
                     vou danado pra Catende
                     com vontade de chegar.

          Ascenso Ferreira, in "Poemas de Ascenso Ferreira", Nordestal Editora, 1995, PE 

1 comentário:

  1. nao sao so comboios as imagens sao tambem maquinas agriculas e industriais mas deviam estar num museu ...joao branco


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