quinta-feira, 23 de outubro de 2014

No choro do mar


Praia da Rocha, Algarve-Portugal

Sarça Ardente
(...)
          3
Lá por perdidas praias, onde o vento
Com as ondas trava intermináveis bulhas,
E se esponja na areia, e o seu tormento
Das areias faz látegos de agulhas,
Fui, quando do negror do firmamento
Os astros cospem lívidas fagulhas,
Fui, ao longo rolar do mar chorando
Sei lá que antigo caso miserando...

(...)
       12
Na voz do mar só me ouço a mim, que choro;
Nos lamentos do vento, a mim me escuto;
Sei ver o luto e a dor ..., mas que deploro
Na alheia dor, senão meu próprio luto?
Se mais me sondo e acuso, mais me adoro
Por esse heroísmo pérfido e corrupto;
E até nas fontes dum meu ser mais belo
Finco a pata bestial, teimo em não sê-lo...

(...)
José Régio, " Sarça Ardente - As encruzilhadas de Deus",1936, Obras completas, Poesia, Portugália Editora
Sagres (Costa Vicentina), Algarve - Portugal

Regresso

E contudo perdendo-te encontraste.
E nem deuses nem monstros nem tiranos
te puderam deter. A mim os oceanos.
E foste. E aproximaste.

Antes de ti o mar era mistério.
Tu mostraste que o mar era só mar.
Maior do que qualquer império
foi a aventura de partir e de chegar.

Mas já no mar quem fomos é estrangeiro
e já em Portugal estrangeiros somos.
Se em cada um de nós há ainda um marinheiro
vamos achar em Portugal quem nunca fomos.

De Calicute até Lisboa sobre o sal
e o Tempo. Porque é tempo de voltar
e de voltando achar em Portugal
esse país que se perdeu de mar em mar.
Manuel Alegre, in  "O Canto e as Armas - País de Abril, uma antologia", Publicações D.Quixote, 2014


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