quinta-feira, 4 de março de 2010

O colapso da democracia corporativa


Seria uma comédia, não fosse uma tragédia. Corruptos, disfuncionais, apáticos, perigosos e poderosos. É assim que John Gillespie e David Zweig, ambos insiders do mundo empresarial norte-americano, apelidam a corporate governance na América, num livro recentemente lançado. Os bastidores dos conselhos de administração de algumas das maiores empresas do mundo revelados ao cidadão comum...
POR HELENA OLIVEIRA, publicado no Jornal de Negócios em 26/02/2010

Quem? O Lehman Brothers. Quando? Entre 2000 e 2007. O quê? O comité de risco reuniu-se, ao longo deste período de tempo, duas vezes por ano e todo o conselho de administração aprovou salários, acções, opções de compra e bónus para o CEO, Richard Fuld, que totalizaram 484 milhões de dólares. Para quê? Para este senhor vir anunciar, numa conferência de imprensa em 2008, que a sua firma tinha perdido 3,9 mil milhões de dólares no quarto trimestre e para declarar também: “tenho de admitir que o conselho de administração tem-me conferido um apoio fantástico”. Quatro dias mais tarde, o Lehman declarou falência, uma “brincadeira” que custou aos seus accionistas a módica quantia de 45 mil milhões de dólares”.
A história é uma entre muitas e é apresentada num livro cáustico - escrito por John Gillespie, ex-banqueiro de investimento no Lehman, Morgan Stanley e Bear Sterns e David Zweig, consultor e fundador do Salon.com - , intitulado “Money for Nothing: How the Failure of Corporate Boards Is Ruining American Business and Costing Us Trillions", e poderia ser uma obra cómica, caso não fosse tão trágica.
O livro começa com a história, infelizmente familiar para a grande maioria de nós, meros cidadãos do mundo, do colapso económico e corporativo originado por CEO ambiciosos, detalhando inúmeras histórias, muitas delas com contornos inacreditáveis, dos bastidores dos conselhos de administração norte-americanos, mas que não devem em muito divergir do que se passa na comunidade empresarial global.
Em termos editoriais, o livro não pode ser considerado como uma grande novidade. Desde o deflagrar da crise que têm sido vários os livros a apontar o dedo a firmas especificas e a certos executivos. Contudo, em Money for Nothing, os autores “esticam” a rede de responsáveis pela crise financeira, elegendo o colapso sistémico da democracia corporativa causado pelo fracasso de muitos dos mais importantes conselhos de administração (CA)da América.
“Os conselhos de administração deviam, supostamente, monitorizar os riscos, conferir espírito crítico e bom senso e supervisionar os gestores em nome dos accionistas”, escrevem os autores, acrescentando que os CA “no mínimo, deveriam ter agido no sentido clássico de um chefe de um engenho que avalia e regula a velocidade da máquina e que, caso seja necessário, a desligue antes que expluda”. Mas a verdade é que, apesar dos seus deveres fiduciários, são muitos os membros dos conselhos de administração que se limitam a aquecer as cadeiras onde se sentam – e às vezes nem isso – e a levantar a mão quando os líderes pedem o seu voto. Por causa de toda esta trabalheira, podem receber mais de meio milhão de dólares por ano, valor este que é multiplicado, muitas vezes, de acordo com o número de empresas onde têm assento. No fundo e em breves palavras o que os autores advogam é que é tempo de os conselhos de administração deixarem de ser os amigos dos CEO e, ao invés, adoptarem o papel de serem chefes destes.
Se existem soluções para este problema, elas não podem passar simplesmente por uma maior regulação. Uma outra acusação feita pelos autores é a de que os CA se concentram somente em evitar problemas legais em vez de contribuírem para a formulação da estratégia das empresas, identificarem os seus riscos e avaliarem a performance dos seus executivos.
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Assim e num livro que oferece um retrato incriminatório do estado actual dos conselhos de administração da América empresarial, a primeira questão era inevitável: o estado de “desgraça” dos conselhos de administração sempre foi este ou estamos perante novos desenvolvimentos? De acordo com Gillespie, os CA sempre foram disfuncionais desde a sua criação há algumas centenas de anos. E, apesar de terem inovado no mobiliário das suas salas de reuniões, não fizeram grandes progressos no que respeito a cumprir os seus deveres fiduciários. E dá um exemplo: em 1938, Sydney Weinberg, o lendário responsável pela Goldman Sachs e que tinha assento simultâneo em 31 CA (os bónus não eram o que são hoje), foi chamado para uma reunião de emergência de administradores de uma dessas empresas. O CEO desta tinha sido exposto como um vigarista que tinha roubado 21 milhões de dólares do dinheiro dos accionistas e tinha desaparecido. Quando, ao longo da reunião, se fez saber que o CEO se tinha suicidado, Weinberg levantou-se e disse: “Vá lá, meus senhores, vamos despedi-lo à mesma pelos pecados que cometeu”.
Um dos argumentos expressos neste livro é que uma negligência similar por parte dos executivos de topo foi uma das maiores e mais escondidas causas da recente recessão económica e que é muito possível que venha a ocorrer novamente se o sistema em colapso de corporate governance que vigora actualmente não sofrer reformas. No livro é igualmente mencionado que os conselhos de administração têm uma atracção incompreensível por celebridades, como é o caso de O.J. Simpson, que tinha assento no CA de uma empresa de facas (o que não deixa de ser irónico). Para o autor, alguns CEO gostam de ter celebridades do desporto ou do entretenimento nos seus CA, com pouca ou nenhuma experiência, porque estes adicionam à empresa algum prestígio, não colocam perguntas difíceis e estão sempre prontos a concordar com a equipa de gestão. Os exemplos preferidos dos autores do livro, para além de O.J. Simpson, centram-se na ex-mulher de Elvis Presley, a actriz e promotora de perfumes Priscilla Presley, que pertencia ao comité de compensações da MGM e Lance Armstrong, que abandonou o CA do Morgans Hotel Group em 2008, depois de ter faltado a todas as 11 reuniões que o Conselho marcou no ano precedente.
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Administradores que não administram
Servem estes (maus) exemplos para assegurar os argumentos expressos pelos dois autores em Money for nothing. Considerando os conselhos de administração como “insulares, apáticos e perigosos”, chamam ainda a atenção para o facto de, das 200 maiores economias do mundo, mais de metade destas não serem nações, mas empresas. Ou seja, o seu poder económico tem correspondência directa com os seus movimentos políticos e ambientais. Mais ainda, estes “monstros” exercem um grau mais do que significativo de poder no que respeita à saúde da economia e da segurança financeira dos cidadãos. E quando a sua capacidade de liderança falha, os fracassos repercutem-se nos mercados e na sociedade e ninguém fica a salvo.
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Estes conselhos de administração, descritos pelos autores como predominantemente compostos por homens brancos, na casa dos 60 anos, tomam as suas decisões “com base no facto de que o está em jogo não é o seu dinheiro”. O livro, apesar de relatar histórias sumarentas de escândalos e maus comportamentos, não se limita a apontar culpas e a descortinar episódios de bastidores. Os autores procuram igualmente expor a existência de um sistema de controlo corporativo que se perpetua incessantemente e que ignora, vezes demais, os accionistas que nele confiam. E a verdade é que no mais recente colapso económico, os dedos foram apontados à ambição e incompetência de muitos CEO, mas deixaram de fora a negligência destes CA, que deviam ser tanto ou mais responsabilizados pelos erros destes CEO que, teoricamente, trabalham para eles.
A exactidão com que relatam casos de empresas líderes da América empresarial confere força às páginas escritas por Gillespie e Zweig. No seguimento de um conjunto significativo de entrevistas feitas com administradores - alguns ainda em exercício, outros reformados – incluindo líderes da General Motors, do Bank of America, da Microsoft, da American Airlines, do Bear Stearns, entre outros, ouviram também consultores, investidores, accionistas e membros governamentais, tal como Eliot Spitzer (ex-governador de Nova Iorque), a antiga administradora executiva do Fannie Mae, Ann Korologos e até o antigo CEO da Tyco, Dennis Kozlowski, que foi entrevistado na prisão. Não satisfeitos com a pesquisa, examinam igualmente os conflitos de interesses existentes entre consultores, contabilistas, banqueiros de investimento, advogados, entre outros que, de acordo com as suas palavras, recolhem centenas de milhares de milhões dos dólares dos accionistas, muitas das vezes para esconderem a reputação dos administradores ou escudá-los de qualquer tipo de responsabilidade.
Os bons exemplos também têm lugar no livro. Empresas e conselhos de administração com provas dadas de boa governance , de que são exemplo a Target, a Warnaco ou a reestruturação da Tyco International, figuram também nas suas páginas, demonstrando que é possível ter uma governance saudável e ética.
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Segundo os autores, a paciência tem mesmo limites e sentimentos de revolta podem ser encontrados em todas as páginas deste novo livro. A par de uma excelente pesquisa antropológica, comportamental e económica sobre esta cultura de elite, demonstrando que os administradores são cada vez mais dominados pelos CEO e que ignoram os accionistas que, supostamente, deveriam representar.
O livro fecha com chave de ouro, com cerca de 24 recomendações para uma boa corporate governance.


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