segunda-feira, 20 de maio de 2024

Linha



Linha
A linha do horizonte leve fina
é o começo de um limite. Dilata
o espaço que imaginamos. Mina
os destinos: salvam-se os de prata.
Para além do leve horizonte frio
fica um mundo desconhecido nosso:
para ele ascendemos como um rio
que arrastasse um sereno alvoroço.
Eugénio Lisboa, in  A matéria Intensa, Editora Peregrinação, Abril de 1985, p 48

domingo, 19 de maio de 2024

Ao Domingo Há Música

 

Tem misericórdia de mim, ó Deus,
por teu amor;
por tua grande compaixão
apaga as minhas transgressões.
                   Salmo 51

Há vozes que sabem ler as palavras e trazê-las inteiras. Palavras que nem sempre se esperam ,  mas que se enchem de beleza nos sons que vestem .

.  

Tenebrae em Misere mei, Deus , sob a direcção do Maestro  Nigel Short.
Miserere, também conhecido como Miserere mei, Deus, é uma versão musicada a cappella do Salmo 51,  feita pelo compositor italiano Gregorio Allegri, durante o papado de Urbano VIII, provavelmente durante a década de 1630.

sábado, 18 de maio de 2024

Uma questão infinita

A pergunta por Deus: uma questão infinita
por António Borges
“Tem-se frequentemente a ideia de que, à partida, o ateu, quando nega a existência de Deus ou quando afirma que, com a morte, acaba tudo, tem do seu lado a razão, ficando o crente sob a suspeita de não-racional, de tal modo que é a ele apenas que compete ter de apresentar razões da sua fé.
Ora, as coisas não são assim, de modo nenhum. Por paradoxal que pareça, também o ateu assenta a sua negação da existência de Deus ou da vida depois da morte num acto de fé, melhor, numa crença. “Em qualquer das suas formas, o ateísmo é uma crença e não uma evidência, escreveu o filósofo Pedro Laín Entralgo, um ‘creio que Deus não existe’ e não um ‘sei que Deus não existe’.”
O chamado crente e o ateu encontram-se exactamente no mesmo plano: o crente não pode demonstrar a existência de Deus, nem a vida eterna, exactamente como o ateu não pode demonstrar que Deus não existe ou que a morte é o termo definitivo da existência da pessoa. No que se refere a Deus ou à vida depois da morte, as posições do crente, do agnóstico ou do ateu assentam na crença.
Evidentemente, sendo humanos e, portanto, racionais, todos - o crente, o agnóstico, o ateu - têm de apresentar razões para a sua crença, pois esta, se quiser ser verdadeiramente humana, não pode ser cega. Sublinhe-se, porém, que se trata, para todos, de um acto de fé, certamente com razões, mas sempre de um acto de fé, e não da conclusão de uma demonstração.
Assim, o crente, o agnóstico, o ateu, em vez de se excluírem, devem encontrar-se e enriquecer-se mutuamente num conflito dialógico de razões, e, por paradoxal que pareça, num diálogo sincero e aberto, concluirão que há entre eles muito mais sintonias do que poderiam supor à primeira vista. Quantos crentes, por exemplo, não ficarão surpreendidos ao ler em Santo Tomás de Aquino que o saber da fé, não podendo ser evidente, convive com a opinião, a dúvida...
Fé religiosa e dúvida não se excluem. Pelo contrário, a fé está sempre acompanhada de perguntas. Estas perguntas humanizam a religião, pois impedem todo o tipo de fundamentalismo, abrem ao diálogo não só com os crentes de outras religiões, mas também com os ateus e agnósticos, obrigando a uma reformulação constante das fórmulas doutrinais, que ao mesmo tempo que tentam dizer o Mistério também o ocultam. Por outro lado, é bem possível que também ateus e agnósticos aceitem que há um Mistério inominável que a todos envolve...
Aprofundando a conhecida diferença entre problema e mistério, estabelecida por Blondel e sobretudo por Gabriel Marcel, Pedro Laín Entralgo distinguia entre problema, enigma e mistério.
Problemas são aquelas questões que, mais tarde ou mais cedo, o Homem pode resolver. Assim, concluiu-se que a Terra é redonda e que gira à volta do Sol, e pode encontrar-se solução para uma crise financeira...
O enigma está referido àquelas questões que nunca serão completamente resolvidas, mas de cuja solução racional o Homem se vai aproximando cada vez mais, ainda que apenas assintoticamente.
Enigmas são, por exemplo, a realidade da matéria ou o pensamento. Hoje, sabemos muito mais sobre o que é a matéria do que Aristóteles ou mesmo Galileu ou Newton, mas isso não significa que tenhamos uma intelecção plena ou que algum dia venhamos a possuí-la. Neste domínio, há um saber cumulativo, mas num horizonte assintótico, na medida em que, como escreveu H.-G. Gadamer, o horizonte não é uma fronteira fixa, mas algo para onde viajamos e que ao mesmo tempo se desloca connosco, de tal modo que o não alcançamos...
Finalmente, o mistério refere-se a uma realidade na qual se crê, mas cuja intelecção racional estará para sempre vedada ao Homem. O mistério refere-se às perguntas últimas, como: Qual o sentido último do universo e da existência? Por que é que existo precisamente eu? Por que é que há algo e não nada? A vida continua depois da morte? Deus existe?
Estas perguntas colocam-nos perante o que é, por si mesmo, misterioso, pois relacionam-se com a ultimidade, que não é objecto do saber de evidência, mas do saber de crença. Daí, um dos dramas maiores da existência, pois, como não se cansava de repetir P. Laín Entralgo, o objecto da ciência é penúltimo, mas o último é objecto de crença, seguindo-se daí que “o certo é penúltimo e não pode não ser penúltimo, será sempre penúltimo, e o último é incerto e não pode não ser incerto, será sempre incerto”.
Mas, por outro lado, repetindo, a crença, para ser autêntica e verdadeiramente humana, não pode ser cega, o que significa, portanto, que tem de ser argumentativa, isto é, tem de dar razões de si mesma. A fé não demonstra, mas tem de argumentar, de tal modo que mostre que é razoável. As razões que tem a capacidade e o dever de apresentar têm de mostrar a sua plausibilidade.
Concretamente quanto à questão de Deus e da vida depois da morte, isto é, com a morte, o Homem acaba definitivamente ou, pelo contrário, entrará na sua plena realização na Realidade Última e Primeira a que chamamos Deus? Quanto a esta questão, nem o não-crente nem o crente podem demonstrar a sua respectiva posição, pois é de uma crença que, em última análise, se trata. No entanto, um e outro apresentarão razões a que ambos serão sensíveis. Ser ser humano é levar consigo esta questão. Melhor: ser esta própria questão. E o que, em última instância, une os homens é esta procura sem fim e o diálogo à volta desta questão infinita.”
António Borges, Padre e Professor de Filosofia, em artigo de Opinião, publicado no DN, em 11 de Maio de 2024 

sexta-feira, 17 de maio de 2024

A Felicidade

Toda felicidade é uma obra-prima: o menor erro a distorce, a menor hesitação a altera, o menor peso a estraga, a menor estupidez a debilita.
Marguerite Yourcenar

Homem nenhum pode ser feliz sem um amigo, nem pode estar certo desse amigo  enquanto não for infeliz.
Thomas Fuller 

Não há nada de mais belo do que distribuir a felicidade  por muitas pessoas. 
Ludwig Beethoven

A única coisa  sem mistério é a felicidade porque ela se justifica por si só.
Jorge Luís Borges

O mais feliz dos felizes  é aquele  que faz outros felizes.
Alexandre Dumas

Não existe um caminho para a felicidade. A felicidade é o caminho.
Ghandi

Quanto mais se é feliz menos se presta atenção à felicidade.
Alberto Moravia

quinta-feira, 16 de maio de 2024

Diários e Confissões

Diários e Confissões
por Eugénio Lisboa
“Os homens (e as mulheres) sempre gostaram de falar de si e das suas façanhas. A confissão, dizia não sei quem, é uma tentação irresistível. Vem isto, repito, de muito longe. Júlio César, por exemplo, não deixou por mãos alheias o relato das suas campanhas na Gália: escreveu o seu próprio panegírico no famoso De Bello Gallico, para tormento dos alunos de latim dos liceus do meu tempo. Rousseau deliciou-se a falar de si e das suas misérias, nas sumarentas Confissões que nos legou. O mesmo fez Santo Agostinho e tantos outros depois dele. Magníficos diários não faltam, por exemplo, na grande literatura francesa: Delacroix, os Goncourt, André Gide, Jules Renard, Julien Green, por exemplo. O Diário de Gide é suavemente indiscreto e o de Julien Green foi-o também, até ter saído, há muito pouco tempo, a sua versão integral, isto é, não expurgada, na qual podemos ver o escritor a deliciar-se na descrição minuciosamente indiscreta e muito crua das suas orgias sexuais: não resistiu à tentação de contar tudo…
Falarmos de nós próprios, com maior ou menor indiscrição, é, repito, uma enorme tentação. Oscar Wilde era muito dado a isso. Conta-se que, estando ele, uma vez, num restaurante, em Londres, lhe apareceu um jovem admirador, que queria conhecê-lo pessoalmente. Wilde aproveitou logo a ocasião para falar de si com abundância e fê-lo durante uma boa meia hora. Por fim, deteve-se e, voltando-se para o jovem, disse-lhe mais ou menos isto (cito de memória): “Basta. Estive muito tempo a falar de mim. Basta. Agora é a sua vez de falar de mim.” O autor de O Retrato de Dorian Gray estava longe de ser um caso isolado, no seu tempo e no seu país. Tinha um bom rival, em egotismo e em espírito acerado, no pintor James Whistler. Quando, em certa altura, a célebre revista Punch publicou um elogio ditirâmbico dirigido à actriz Sarah Bernardt, atribuindo a autoria do texto a Oscar Wilde, este reagiu, enviando um telegrama a Whistler, nestes termos: “O Punch é demasiado ridículo. Quando eu e tu estamos juntos, nunca falamos de nada a não ser de nós próprios.” Whistler não perdeu tempo a responder-lhe: “Não, não, Oscar, estás a esquecer-te. Quando tu e eu estamos juntos, nunca falamos de nada a não ser de mim.” Wilde encerrou a conversa com um terceiro telegrama: “É verdade, Jimmy, que nós estávamos a falar de ti, mas eu estava a pensar em mim.”
O pendor confessional é, às vezes, tão forte, que o autor faz entrega de si, às mãos cheias: Gide, para além de um extenso  diário, ainda nos deixou uma substanciosa autobiografia intitulada Si le grain ne meurt. Julien Green também, além de um muito volumoso diário, igualmente nos deixou belíssimas páginas de memórias. E o nosso Miguel Torga somou aos dezasseis volumes do seu saboroso diário uma lomga autobiografia disfarçada, em cinco volumes: A Criação do Mundo. Sem falar no que, de confissão, pôs na sua poesia. Como se vê, o autor de Bichos, embora discreto, era obstinado a falar de si e da sua circunstância. E estava tão seguro  de si e do seu estatuto, que se não deixava facilmente abater, como o demonstra a seguinte anedota verdadeira. Estava o escritor a gozar as suas habituais férias, no Gerês, quando lhe apareceu um colega dos tempos da universidade, em Coimbra. O antigo companheiro de estudos fez-lhe uma grande festa: havia que tempos que não se viam e mais isto e mais aquilo, até que o inevitável aconteceu: tirando do bolso um manuscrito, explicou ao autor de Novos Contos da Montanha, que também ele tinha escrito uns Poemas Ibéricos. E, já agora, se o amigo os quisesse ler… Torga, sem uma palavra, meteu os papéis no bolso. E, poucos dias depois, devolveu-lhos, sem dizer uma palavra. O colega, afrontado, reagiu: que o Rocha era de força, que podia, ao menos, dizer se gostara ou não dos seus poemas e que até, por acaso, a sua mulher preferia os seus Poemas Ibéricos aos do Torga. Este respondeu-lhe curto e final: “Estime-a!”.»
                                                                                  20.10.2019
Eugénio Lisboa , em Crónica publicada na rubrica Ipsissima Verba, da Revista LER.

terça-feira, 14 de maio de 2024

Num compasso imperecível

 
Mitsuko Uchida interpreta e dirige a Camerata Salzburg ,  
em  Mozart's piano concerto K. 415 in C major.

Há tantos dias

 
Há tantos dias que não sei de ti.
Escrevias. Muito. 
Palavras douradas que cintilavam.
Esperava-as. Sempre.
Era a tua escrita que vinha acender
o dia. Que começava.

Compostas  num compasso imperecível
chegavam. De longe.
Palavras luminosas que  esplendiam
um brilho. Intenso.
E era na luz e no  som que traziam 
que te achava. Em mim.

Há tantos dias que se hauriram
de silêncio. Surdas.
Perderam-se  na forma e no sabor que 
lhes vestias.  Ausentes, 
os dias  deixaram de crescer  em mim. 
Aqui. Sem ti.
M. de Verrières, in "Dias de Poesia", Dezembro, 2016

segunda-feira, 13 de maio de 2024

As palavras de Manoel de Andrade


ECCE HOMO (*)

Levam ao Sinédrio o humilde nazareno
para que se julgue o amor e a inocência
e diante da judaica prepotência
o Mestre se mantém doce e sereno.

Por ser blasfemador é réu de morte
diz Caifás com desprezo ao acusado
e depois de cuspido e maltratado
aos romanos entregam a sua sorte.

No pátio do palácio a massa se aglutina
e um prenúncio sinistro percorre a multidão
traído e abandonado à própria provação
aguarda o prisioneiro a sua sina.

– É um visionário, um sonhador somente
– e me comove sua mansidão, sua pobreza...
diz Pilatos..., convicto da certeza
de estar frente a um homem inocente.

Diante da injustiça e do impasse
transfere a Antipas a sentença
mas o tetrarca devolve-lhe a presença
com os espinhos ensanguentando a face.

Coberto com o manto da ironia
e como cetro uma cana retorcida
nessa imagem de realeza escarnecida
trazem novamente o Rabi à pretoria.

Tenta Pilatos um último artifício
para acalmar a plebe alucinada
e espera que a espádua açoitada
salve o Galileu do sacrifício.

Rasga-lhe a carne o látego cruel
e nem um murmúrio de dor ante o flagelo
envilecido e ultrajado, invencível e belo
cumpre a Trágica Figura o seu papel.

Mas ainda assim a turba em desatino
exige que a condenação seja mantida
e Pilatos propõe à massa ensandecida
que delibere sobre o seu destino.

Diante do pretório e amotinado
o povo absolve Barrabás
e movido pelos asseclas de Caifás
exige o Galileu crucificado.

Ante a sentença e os gritos do estrupício
e entre a verdade e o interesse dos seus atos
lava as suas mãos Pôncio Pilatos
e entrega o Cordeiro ao sacrifício.

Na mais ingrata e suprema solidão
maltrapilho, descalço e abatido
para o meio da escória é conduzido
sob o escárnio cruel da multidão.

Passos cambaleantes, dor, delírio
toda a ignomínia no símbolo da cruz
o madeiro infame nos ombros de Jesus
e o lancinante caminho do martírio.

Ergue-se o holocausto ao amor crucificado
na dor que esmaga, na sede insaciável
no estóico silêncio, no deboche intolerável
no lento suplício de um homem sem pecado.

E na agonia do Calvário, rumo à glória
roga a Deus perdão para os algozes
por tanto amor recebe os golpes mais atrozes
e o julgamento mais iníquo da história.
                      Curitiba, 26.02.04
Manoel de Andrade, in Cantares, Escrituras Editora, São Paulo, Brasil, 2007, pp.94,95,96

(*) “Eis o homem” - Palavras de Pilatos ao apresentar Jesus aos judeus

Prece de gratidão

Eu te agradeço, Senhor,
ser filho do Teu amor
e herdeiro do Universo.
Ser cantor dessa beleza,
ter um lugar nessa mesa,
pelo sabor do meu verso.

Senhor, muito obrigado,
pelos pais bons e honrados
e pelas lições da pobreza.
Pelo café com farinha,
por tudo que eu não tinha
e que fez minha riqueza

Pelo meu corpo perfeito,
pela poesia em meu peito
e os anos da minha idade.
Por todo dever cumprido,
pelo amparo recebido
e o céu da imortalidade.

Eu Te agradeço também
pela semente do bem
plantada no meu pomar.
Pela doçura desse fruto
não ter me tornado um bruto 
e ter aprendido a amar.

Pela água da minha fonte,
pela linha do horizonte
e um sonho de marinheiro.
Pelo meu mar de criança
e o meu barco de esperança
percorrendo o mundo inteiro.

Pelo pão, pelo abrigo,
pelo abraço do amigo,
por Teu carinho invisível.
Agradeço-Te com veemência
esta paz na consciência
e a minha fé invencível.

Pela luz que me ilumina
desde a antiga Palestina
na alegria e na dor.
Por quem sou, pelo que sei,
por Moisés trazendo a Lei,
por Jesus trazendo o amor.

Senhor, eu Te agradeço
pela dor e o tropeço
quando ensinam uma lição.
Ninguém paga sem dever
e a Lei obriga a colher
o efeito da nossa ação.

Pela sapiência contida
no pergaminho da vida,
na magia e na razão.
Agradeço-Te a minha parte,
pela ciência, pela arte
e pela Grécia de Platão.

Por Cabral no rumo certo,
pelo Brasil descoberto,
pela pátria e o cidadão.
Pelo herói da Inconfidência,
o Grito da Independência
e a bênção da Abolição.

Pelas lições da História,
pelo povo e a sua glória
na busca da liberdade.
E pela Humanidade inteira,
quando erguer sua bandeira
pela paz e a verdade.

Grato sou por ter um sonho,
sonhar com um mundo risonho
numa paz contagiante.
Ver este Brasil fecundo,
como o coração do mundo,
em um porvir deslumbrante

Agradeço o bom combate,
e ter encarado esse embate,
com o coração despojado.
Com Tua luz nos meus passos,
a fraternidade em meus braços
e o meu sonho preservado.

Contigo, Senhor, sou forte,
tenho um fanal, tenho um norte:
amor, sensibilidade.
Eu moro na melodia,
na música, na poesia
e no farol da verdade.

Muito obrigado, Senhor
pelo trabalho e o suor,
pelo que dei e recebi.
Quando chegar meu momento,
se eu tiver merecimento,
me leva pra junto de Ti.
                                      Curitiba, Dezembro de 2002

Manoel de Andrade, in  As palavras no Espelho, Editora Escrituras, São Paulo, Brasil, 2018, pp. 255-258