sexta-feira, 17 de janeiro de 2025

Me alugo para sonhar

Me alugo para sonhar
por Gabriel Garcia Marquez
"Às nove, enquanto tomávamos o café da manhã no terraço do Habana Riviera, um tremendo golpe de mar em pleno sol levantou vários automóveis que passavam pela avenida à beira-mar, ou que estavam estacionados na calçada, e um deles ficou incrustado num flanco do hotel. Foi como uma explosão de dinamite que semeou pânico nos vinte andares do edifício e fez virar pó a vidraça do vestíbulo. Os numerosos turistas que se encontravam na sala de espera foram lançados pelos ares junto com os móveis, e alguns ficaram feridos pelo granizo de vidro. Deve ter sido uma vassourada colossal do mar, pois entre a muralha da avenida à beira-mar e o hotel há uma ampla avenida de ida e volta, de maneira que a onda saltou por cima dela e ainda teve força suficiente para esmigalhar a vidraça.
Os alegres voluntários cubanos, com a ajuda dos bombeiros, recolheram os destroços em menos de seis horas, trancaram a porta que dava para o mar e habilitaram outra, e tudo tornou a ficar em ordem. Pela manhã, ninguém ainda havia cuidado do automóvel pregado no muro, pois pensava-se que era um dos estacionados na calçada. Mas quando o reboque tirou-o da parede descobriram o cadáver de uma mulher preso no assento do motorista pelo cinto de segurança. O golpe foi tão brutal que não sobrou nenhum osso inteiro. Tinha o rosto desfigurado, os sapatos descosturados e a roupa em farrapos, e um anel de ouro em forma de serpente com olhos de esmeraldas. A polícia afirmou que era a governanta dos novos embaixadores de Portugal. Assim era: tinha chegado com eles a Havana quinze dias antes, e havia saído naquela manhã para fazer compras dirigindo um automóvel novo. Seu nome não me disse nada quando li a notícia nos jornais, mas fiquei intrigado por causa do anel em forma de serpente e com olhos de esmeraldas. Não consegui saber, porém, em que dedo o usava.
Era um detalhe decisivo, porque temi que fosse uma mulher inesquecível cujo verdadeiro nome não soube jamais, que usava um anel igual no indicador direito, o que era mais insólito ainda naquele tempo. Eu a havia conhecido 34 anos antes em Viena, comendo salsichas com batatas cozidas e bebendo cerveja de barril numa taberna de estudantes latinos. Eu havia chegado de Roma naquela manhã, e ainda recordo minha impressão imediata por seu imenso peito de soprano, suas lânguidas caudas de raposa na gola do casaco e aquele anel egípcio em forma de serpente. Achei que era a única austríaca ao longo daquela mesona de madeira, pelo castelhano primário que falava sem respirar com sotaque de bazar de quinquilharia. Mas não, havia nascido na Colômbia e tinha ido para a Áustria entre as duas guerras, quase menina, estudar música e canto. Naquele momento andava pelos trinta anos mal vividos, pois nunca deve ter sido bela e havia começado a envelhecer antes do tempo. Em compensação, era um ser humano encantador. E também um dos mais temíveis.
Viena ainda era uma antiga cidade imperial, cuja posição geográfica entre os dois mundos irreconciliáveis deixados pela Segunda Guerra Mundial havia terminado de convertê-la num paraíso do mercado negro e da espionagem mundial. Eu não teria conseguido imaginar um ambiente mais adequado para aquela compatriota fugitiva que continuava comendo na taberna de estudantes da esquina por pura fidelidade às suas origens, pois tinha recursos de sobra para comprá-la à vista, com clientela e tudo. Nunca disse o seu verdadeiro nome, pois sempre a conhecemos com o trava-língua germânico que os estudantes latinos de Viena inventaram para ela: Frau Frida. Eu tinha acabado de ser apresentado a ela quando cometi a impertinência feliz de perguntar como havia feito para implantar-se de tal modo naquele mundo tão distante e diferente de seus penhascos de ventos do Quindío, e ela me respondeu de chofre:
— Eu me alugo para sonhar.
Na realidade, era seu único ofício. Havia sido a terceira dos onze filhos de um próspero comerciante da antiga Caldas, e desde que aprendeu a falar instalou na casa o bom costume de contar os sonhos em jejum, que é a hora em que se conservam mais puras suas virtudes premonitórias. Aos sete anos sonhou que um de seus irmãos era arrastado por uma correnteza. A mãe, por pura superstição religiosa, proibiu o menino de fazer aquilo que ele mais gostava, tomar banho no riacho. Mas Frau Frida já tinha um sistema próprio de vaticínios.
— O que esse sonho significa — disse — não é que ele vai se afogar, mas que não deve comer doces.
A interpretação parecia uma infâmia, quando era relacionada a um menino de cinco anos que não podia viver sem suas guloseimas dominicais. A mãe, já convencida das virtudes adivinhatórias da filha, fez a advertência ser respeitada com mão de ferro. Mas ao seu primeiro descuido o menino engasgou com uma bolinha de caramelo que comia escondido, e não foi possível salvá-lo.
Frau Frida não havia pensado que aquela faculdade pudesse ser um ofício, até que a vida agarrou-a pelo pescoço nos cruéis invernos de Viena. Então, bateu para pedir emprego na primeira casa onde achou que viveria com prazer, e quando lhe perguntaram o que sabia fazer, ela disse apenas a verdade: "Sonho". Só precisou de uma breve explicação à dona da casa para ser aceita, com um salário que dava para as despesas miúdas, mas com um bom quarto e três refeições por dia. Principalmente o café da manhã, que era o momento em que a família sentava-se para conhecer o destino imediato de cada um de seus membros: o pai, que era um financista refinado; a mãe, uma mulher alegre e apaixonada por música romântica de câmara9 e duas crianças de onze e nove anos. Todos eram religiosos, e portanto propensos às superstições arcaicas, e receberam maravilhados Frau Frida com o compromisso único de decifrar o destino diário da família através dos sonhos.
Fez isso bem e por muito tempo, principalmente nos anos da guerra, quando a realidade foi mais sinistra que os pesadelos. Só ela podia decidir na hora do café da manhã o que cada um deveria fazer naquele dia, e como deveria fazê-lo, até que seus prognósticos acabaram sendo a única autoridade na casa. Seu domínio sobre a família foi absoluto: até mesmo o suspiro mais tênue dependia da sua ordem. Naqueles dias em que estive em Viena o dono da casa havia acabado de morrer, e tivera a elegância de legar a ela uma parte de suas rendas, com a única condição de que continuasse sonhando para a família até o fim de seus sonhos.
Fiquei em Viena mais de um mês, compartilhando os apertos dos estudantes, enquanto esperava um dinheiro que não chegou nunca. As visitas imprevistas e generosas de Frau Frida na taberna eram então como festas em nosso regime de penúrias. Numa daquelas noites, na euforia da cerveja, sussurrou ao meu ouvido com uma convicção que não permitia nenhuma perda de tempo.
— Vim só para te dizer que ontem à noite sonhei com você — disse ela. — Você tem que ir embora já e não voltar a Viena nos próximos cinco anos.
Sua convicção era tão real que naquela mesma noite ela me embarcou no último trem para Roma. Eu fiquei tão sugestionado que desde então me considerei sobrevivente de um desastre que nunca conheci. Ainda não voltei a Viena.
Antes do desastre de Havana havia visto Frau Frida em Barcelona, de maneira tão inesperada e casual que me pareceu misteriosa. Foi no dia em que Pablo Neruda pisou terra espanhola pela primeira vez desde a Guerra Civil, na escala de uma lenta viagem pelo mar até Valparaíso. Passou conosco uma manhã de caça nas livrarias de livros usados, e na Porter comprou um livro antigo, desencadernado e murcho, pelo qual pagou o que seria seu salário de dois meses no consulado de Rangum. Movia-se através das pessoas como um elefante inválido, com um interesse infantil pelo mecanismo interno de cada coisa, pois o mundo parecia, para ele, um imenso brinquedo de corda com o qual se inventava a vida.
Não conheci ninguém mais parecido à idéia que a gente tem de um papa renascentista: glutão e refinado. Mesmo contra a sua vontade, sempre presidia a mesa. Matilde, sua esposa, punha nele um babador que mais parecia de barbearia que de restaurante, mas era a única maneira de impedir que se banhasse nos molhos. Aquele dia, no Carvalleiras foi exemplar. Comeu três lagostas inteiras, esquartejando-as com mestria de cirurgião, e ao mesmo tempo devorava com os olhos os pratos de todos, e ia provando um pouco de cada um, com um deleite que contagiava o desejo de comer: as amêijoas da Galícia, os perceves do Cantábrico, os lagostins de Alicante, as espardenyas da Costa Brava. Enquanto isso, como os franceses, só falava de outras delícias da cozinha, e em especial dos mariscos pré-históricos do Chile que levava no coração. De repente parou de comer, afinou suas antenas de siri, e me disse em voz muito baixa:
— Tem alguém atrás de mim que não pára de me olhar.
Espiei por cima de seu ombro, e era verdade. Às suas costas, três mesas atrás, uma mulher impávida com um antiquado chapéu de feltro e um cachecol roxo, mastigava devagar com os olhos fixos nele. Eu a reconheci no ato. Estava envelhecida e gorda, mas era ela, com o anel de serpente no dedo indicador.
Viajava de Nápoles no mesmo barco que o casal Neruda, mas não tinham se visto a bordo. Convidamos para mulher a tomar café em nossa mesa, e a induzi a falar de seus sonhos para surpreender o poeta. Ele não deu confiança, pois insistiu desde o princípio que não acreditava em adivinhações de sonhos.
— Só a poesia é clarividente — disse.
Depois do almoço, no inevitável passeio pelas Ramblas, fiquei para trás de propósito, com Frau Frida, para poder refrescar nossas lembranças sem ouvidos alheios. Ela me contou que havia vendido suas propriedades na Áustria, e vivia aposentada no Porto, Portugal, numa casa que descreveu como sendo um castelo falso sobre uma colina de onde se via todo o oceano até as Américas. Mesmo sem que ela tenha dito, em sua conversa ficava claro que de sonho em sonho havia terminado por se apoderar da fortuna de seus inefáveis patrões de Viena. Não me impressionou, porém, pois sempre havia pensado que seus sonhos não eram nada além de uma artimanha para viver. E disse isso a ela.
Frau Frida soltou uma gargalhada irresistível. "Você continua o atrevido de sempre", disse. E não falou mais, porque o resto do grupo havia parado para esperar que Neruda acabasse de conversar em gíria chilena com os papagaios da Rambla dos Pássaros. Quando retomamos a conversa, Frau Frida havia mudado de assunto.
— Aliás — disse ela —, você já pode voltar para Viena.
Só então percebi que treze anos haviam transcorrido desde que nos conhecemos.
— Mesmo que seus sonhos sejam falsos, jamais voltarei — disse a ela. — Por via das dúvidas.
Às três, nos separamos dela para acompanhar Neruda à sua sesta sagrada. Foi feita em nossa casa, depois de uns preparativos solenes que de certa forma recordavam a cerimônia do chá no Japão. Era preciso abrir umas janelas e fechar outras para que houvesse o grau de calor exato e uma certa classe de luz em certa direção, e um silêncio absoluto. Neruda dormiu no ato, e despertou dez minutos depois, como as crianças, quando menos esperávamos. Apareceu na sala restaurado e com o monograma do travesseiro impresso na face.
— Sonhei com essa mulher que sonha — disse.
Matilde quis que ele contasse o sonho.
— Sonhei que ela estava sonhando comigo disse ele.
— Isso é coisa de Borges — comentei.
Ele me olhou desencantado.
— Está escrito?
— Se não estiver, ele vai escrever algum dia — respondi. — Será um de seus labirintos.
Assim que subiu a bordo, às seis da tarde, Neruda despediu-se de nós, sentou-se em uma mesa afastada, e começou a escrever versos fluidos com a caneta de tinta verde com que desenhava flores e peixes e pássaros nas dedicatórias de seus livros. À primeira advertência do navio buscamos Frau Frida, e enfim a encontramos no convés de turistas quando já íamos embora sem nos despedir. Também ela acabava de despertar da sesta.
— Sonhei com o poeta — nos disse.
Assombrado, pedi que me contasse o sonho.
— Sonhei que ele estava sonhando comigo disse, e minha cara de assombro a espantou.
— O que você quer? Às vezes, entre tantos sonhos, infiltra-se algum que não tem nada a ver com a vida real.
Não tornei a vê-la nem a me perguntar por ela até que soube do anel em forma de cobra da mulher que morreu no naufrágio do Hotel Riviera. Portanto não resisti à tentação de fazer algumas perguntas ao embaixador português quando coincidimos, meses depois, em uma recepção diplomática. O embaixador me falou dela com um grande entusiasmo e uma enorme admiração. "O senhor não imagina como ela era extraordinária", me disse. "O senhor não resistiria à tentação de escrever um conto sobre ela". E prosseguiu no mesmo tom, com detalhes surpreendentes, mas sem uma pista que me permitisse uma conclusão final.
— Em termos concretos — perguntei no fim —, o que ela fazia?
— Nada — respondeu ele, com certo desencanto. — Sonhava."
                                           Março de 1980
Gabriel Garcia Marquez, in Doze contos peregrinos, Editora Record, Brasil, 1992

Sobre o Livro:
"Doze contos peregrinos são histórias de latino-americanos na Europa, peregrinos que não deixam de sonhar com a terra natal. O mestre do realismo fantástico Gabriel García Marquez usa como pano de fundo Barcelona, Genebra, Roma e Paris para retratar a solidão através de histórias brilhantes de amor, poder e morte. Do homem que luta pela canonização de sua filha durante cinco papados à prostituta que decide acertar todos os detalhes de seu funeral, todos os contos são dotados da sensibilidade e do humor que são as marcas do grande mestre.
Me alugo para sonhar é um dos contos que melhor exemplifica o realismo mágico desta colectânea de contos. Aqui, García Márquez  apresenta uma mulher que literalmente vive de sonhar para os outros. A premissa, já absurdamente criativa, desenrola-se  com a naturalidade característica do autor, fazendo com que o leitor aceite o impossível sem qualquer questionamento. É um conto que fala sobre destino, sobre o poder dos sonhos e sobre como, às vezes, o inexplicável pode moldar  as nossas vidas de maneiras surpreendentes."
Sobre o Autor,   Gabriel Garcia Marquez:
Há alguns anos, , a propósito do seu 80 aniversário , registei  o seguinte :
Nunca mais esquecerei o deslumbramento, o encanto, a vontade de virar páginas de cada livro que tinha a assinatura de Gabriel Garcia Marquez. O fantástico, o onírico atingiam outras dimensões e a palavra escrita entregava-se-me em descoberta assombradora de uma nova arte poética. Era a poesia feita prosa, ou antes, era a inovação criadora que transformava um romance num hino luminoso de um mundo povoado por seres imperfeitos mas tão humanos quanto de universais. Uma galeria de gente habitando um Macondo fictício que reproduzia todas as verdades, todos os conflitos, todos os prodigios e toda a (im)perfeição humana numa nova linguagem que endeusava a escrita.
Descobrir Gabriel Garcia Márquez foi verificar que nada ainda tinha sido feito, que, com ele, nascia uma mágica e diferente narratividade literária que passava a dar visibilidade à sombra do invisível que povoava a memória de todos os tempos. E foi essa universalidade que faz dele o maior e mais lido escritor de sempre.
Alguns dados biográficos:
"Gabriel García Márquez nasceu em Aracataca, Colômbia, no dia 6 de Março de 1927. Era filho de Gabriel Elísio García e de Luisa Santiaga Márquez, que tiveram onze filhos. Gabriel passou os primeiros anos na casa dos avós maternos em Aracataca, enquanto a família se mudou para Barranquilla. Estudou no Liceu Nacional de Zipaquirá em Barranquilla.
Com 17 anos, decidiu se tornar escritor, segundo ele, após ler A Metamorfose de Franz Kafka descobriu que o alemão contava as coisas da mesma maneira que sua avó.
Em 1947 mudou-se para Bogotá para estudar Direito e Ciência Política na Universidade Nacional da Colômbia, porém não concluiu o curso.
Acusado de colaborar com a guerrilha colombiana, García Márquez exilou-se no México e nessa época escreveu aquele que seria seu romance mais popular e a sua obra-prima, “Cem Anos de Solidão” (1967).
O livro é um épico sobre uma família fictícia, Buendia, na imaginária cidade de Macondo. Nele, o escritor mescla lembranças pessoais com acontecimentos extraordinários.
Gabriel García Márquez faleceu na Cidade do México, no dia 17 de Abril de 2014."
Obras de Gabriel García Márquez
A Terceira Resignação (1947)
A Outra Costela da Morte (1948)
Amargura para Três Sonâmbulos (1949)
Diálogo do Espelho (1949)
A Mulher que Chegava às Seis (1950)
Nabo, o Negro que Fez Esperar os Anjos (1951)
Alguém Desarruma estas Rosas (1952)
Um Dia Depois do Sábado (1955)
A Revoada (O Enterro do Diabo) (1955)
Relato de Um Náufrago (1955)
Ninguém Escreve ao Coronel (1958)
Os Funerais da Mamãe Grande (1962
A Má Hora: o Veneno da Madrugada (1962)
Cem Anos de Solidão (1967)
Como Contar um Conto (1947-1972)
Todos os Contos (1975)
O Outono do Patriarca (1975)
Crônicas de Uma Morte Anunciada (1982)
O Amor nos Tempos do Cólera (1985)
Doze Contos Peregrinos (1992)
Do Amor e Outros Demônios (1994)
O Rastro do teu Sangue na Neve (1981)
O Verão Feliz da Senhora Forbes (1982)
A Aventura de Miguel Littin, Clandestino no Chile (1986)
O General em Seu Labirinto (1989)
Notícia de um Sequestro (1997)
Viver Para Contar (autobiografia. 2002)
Memórias de Minhas Putas Tristes (2004)
Eu não Venho Fazer um Discurso (2010)

quinta-feira, 16 de janeiro de 2025

Viajar pela Patagónia

Partir para um sítio é na maioria das vezes ir ao encontro dos lugares-comuns associados desde sempre ao destino eleito.(...) Entre o desejo de encontrar os lugares-comuns que habitam o nosso espírito e o de visitar uma terra absolutamente virgem existe um meio-termo.
Michel Onfray,  Teoria da Viagem – uma poética da geografia

  

Os fiordes da Patagónia são algumas das paisagens mais remotas, intocadas e imaculadas da Terra. Aproveite este filme de relaxamento panorâmico em 4K, com os fiordes da Patagónia do Chile. De glaciares  dramáticos a enseadas isoladas que poucas pessoas viram, os fiordes da Patagónia são  um dos lugares mais deslumbrantes da Terra. Este vídeo foi completamente filmado pelo incrivelmente talentoso ‪ViktorPosnov‬ que navegou de Punta Arenas até à Tierra del Fuego. Fez este vídeo magnífico para a Scenic Relaxation Film

quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

O Credo de Um Poeta

 

O Credo de um Poeta
por Jorge Luís Borges
"O meu objectivo era falar sobre o credo do poeta, mas, olhando para mim, descobri que tenho um tipo de credo vacilante , nada mais. Esse credo talvez possa ser útil para mim, mas dificilmente o será  para os outros.
Com efeito, penso em todas as teorias poéticas como meras ferramentas para a escrita de  um poema. Suponho que devia haver  tantos credos, tantas religiões, como há poetas. Embora no fim  diga qualquer coisa do que gosto e do que não gosto no que se refere  à escrita de poesia, acho que vou começar por algumas recordações não só de escritor, mas também de leitor.
Penso-me essencialmente como leitor. Como sabem, aventurei-me na escrita; mas penso que as coisas  que li  foram muito mais importantes do  queas  que escrevi. Porque lemos aquilo de que gostamos –mas não escrevemos o que gostaríamos  de escrever, apenas o que podemos  escrever.
(…)
Encontrei alegria em muitas coisas –  nadar, escrever,  contemplar um nascer do sol ou um pôr do sol, apaixonar—me etc.. Mas, de certo modo, o facto central de minha vida tem sido  a existência das palavras e a possibilidade de as  tecer em poesia. A princípio, por  certo,  era apenas um leitor. Mas penso  que a felicidade de um leitor vai além da de um escritor, pois o leitor não precisa de sentir a perturbação, a ansiedade: anda simplesmente à  procura da felicidade. E a felicidade, quando se é leitor, é frequente. Por isso , antes de passar a falar sobre minha produção literária, gostaria de dizer umas palavras a respeito dos livros que foram importantes para mim. Sei que essa lista abundará em omissões, tal como todas as listas. Com efeito , o perigo de fazer uma lista é que as omissões se destacam e as pessoas nos acham insensíveis .
Falei há momentos das Mil e um noites de Burton. Quando penso nas Mil e uma noites não penso naqueles vários volumes, pesados e pedantes (ou melhor , formais) volumes ,mas no que podemos  chamar as verdadeiras Mil e uma noites – as Mil e uma noites de Galland e, talvez, de Edward Willliam Lane.”
Jorge Luis Borges , in  Este Ofício de Poeta, Relógio D'Água, Lisboa 2017, p. 75, 77, 78

Nota: «Este Ofício de Poeta é uma introdução à literatura, ao gosto e ao próprio Borges. No contexto das suas obras completas, só tem comparação com Borges, oral (1979), que contém as cinco palestras — de âmbito um tanto mais estreito do que estas — que ele proferiu em maio-junho de 1978 na Universidade de Belgrano, em Buenos Aires. Estas Palestras Norton, anteriores em uma década a Borges, oral, são um tesouro de riquezas literárias que nos chegam sob formas ensaísticas, despretensiosas, muitas vezes irónicas, sempre estimulantes.»

«O Credo de um poeta» é desenvolvido na perspectiva de  leitor e  não  a  de   escritor. Um leitor atento , profundamente empenhado em aproveitar  e encontrar  a felicidade naquilo que vai lendo."

terça-feira, 14 de janeiro de 2025

Rodrigo Leão, "O rapaz da montanha"

 
RODRIGO LEÃO, em   O RAPAZ DA MONTANHA.
“O Rapaz da Montanha” conta a história de um rapaz que escala uma montanha – talvez a da vida – em busca de algo novo que o futuro promete. É o primeiro single do novo álbum de Rodrigo Leão, editado em 2025 pela Galileo. Rodrigo Leão entende esta canção – e o seu novo álbum- como um novo capítulo na aventura que gosta de denominar “Os Portugueses”, canções em que vai ensaiando diferentes aproximações à nossa língua. E conta que “há uma toada diferente, os arranjos trazem novidades, a inspiração vem de outro lugar”.
Neste novo registo, o compositor explora a música que o marcou no início da adolescência, na primeira metade da década de 70, quando artistas como José Mário Branco, José Afonso ou Sérgio Godinho davam voz a uma ideia de liberdade que estava ainda por cumprir.
Com música de Rodrigo Leão e letra de Ana Carolina Costa, o tema conta com o guitarrista José Peixoto como convidado especial e com a voz principal de Ana Vieira.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

Tempo irrecuperável

Tempo irrecuperável
por Irene Lisboa
“Hoje, em que tudo desapareceu da sua vida, e se vê aleijada, e não pode ter a mínima confiança em si própria, nem sequer nos outros, ainda se acha capaz de sorrir, que é o que está fazendo, às loucuras da sua incipiente imaginação.
A imaginação a consumiu e a perdeu, tem disso a certeza, a desencaminhou, talvez.
No entanto, ela sabe que escrevendo isto se contradiz interiormente. Que pensa o contrário em muitas outras ocasiões.
Mas que somos nós mais que uma contradição permanente?
A verdade espreita-nos, ora do seu avesso, ora do seu direito. A verdade, ai, ai...
Enfim, a imaginação ora nos socorre, ora nos desequilibra.
O doce fantasma de Maria Antónia, que tanto a excitava, também lhe tornaria patente, e amarga decerto, a inferioridade da sua posição.
Era filha de pais incógnitos, a velha lho dava a entender sempre que podia; não tinha direitos; os seus antigos direitos aquelas estranhas lhos tinham usurpado. A dona Felismina, que podia fazer a dona Felismina, tão acabadinha e sem vontade própria? Ela não tinha nada, já, nem ninguém.
* * *
Ia-se abeirando o Entrudo.
O Entrudo do campo, como ela o conheceu, enfadonho e estúpido. Andavam os cães com latas atadas ao rabo, cainhando, e os gaiatos atrás deles a fazer uma grande matinada. Os homens, esses punham-se dos altos a lançar pulhas, de mão – na boca para reforçar a voz:
– Lá vai mais esta... e é que vai e torna a ir...
Para remate saía uma achincalhada qualquer, dirigida especialmente às mulheres.
O Cocó perdia as suas noites nas brincadeiras, armadas num lugar e noutro.
Era trigueiro, de olhos pretos, grandes, ramalhudos. Parece que prendia as saloias mais ariscas.
Nestas brincadeiras, mesmo no pino do Inverno se morria de calar. As mulheres levavam os filhos com elas, até os de mama, e os homens não largavam o varapau, em que tão de uso ensarilhavam a perna. O Cocó, sobre duas ripas altas, que lhe armavam a um canto, tocava a fio. A dança, quando se armava, num círculo cada vez mais apertado, toda aos encontrões, era bem suada e pisada. Mas quem deixaria de correr léguas e léguas só para apanhar uma brincadeira?
A Delmira não as perdia. Nos dias que se lhes seguiam a velha escutava-a. Até a um bailarico da vila a rapariga desta vez foi. E lá calhou encontrar o filho de uns seus antigos patrões.
Que conversas teriam eles tido? E que peitas se seguiriam depois entre a velha, a Delmira e ele? O certo é que o rapaz, pouco tempo passado, se aventurou de bicicleta até à quinta para a ver, a ela...
– É para a menina, não no entende? – bichanava-lhe a Delmira. Eu sei, eu sei.
A mesma Delmira lhe meteu nas mãos uma carta dele, dias decorridos.
* * *
Este era o primeiro homem que ela via andar para cima e para baixo à sua espreita; desmontar-se da bicicleta e levá-la docemente à mão...
Já fizera os catorze anos havia dois meses. E ele tinha vinte e um.
Um homem, quanto a ela, que por isso a amedrontava. O Antoninho da Varosa, em sua mente, é que estava numa idade juvenil e luminosa, ideal, uma idade que os acompanhara sempre, desde a mais tenra infância, e os identificava.
Aquele não passava de um homem; até usava uma capa de estudante, sem o ser.
Também tinha o cabelo encaracolado e quase loiro: defeitos, insuficiências... para ela, decepções. A cor morena é que era a bonita!
Bagatelas... mas só vistas à distância de uma vida, como agora.
Mas para que as há-de escamotear, anular, se lhe ocorrem? Não faz um romance, entretém-se. E hoje, afinal, que lhe interessa, que procura ela? Entender, melhor que há perto de cinquenta anos, talvez, a importância de tais bagatelas, das coisas mínimas. Arrimando-se à memória, à insuficiente, infiel memória. De que se tiram farrapos de coisas, tão cheia de luzeiros como de trevas... Que sacará ela da incrível poeirada que poisou sobre a sua recuada infância e adolescência? Oh! nada afinal que se compare com o claro, vivo miado do seu actual gato; esse, sim, que é incisivo, verdadeiro. O bicho mia-lhe à porta e ela sabe que lha há-de abrir.
Porém, antes de dar os precisos passos para a porta já o está vendo, perfeito.
Ou perfeitamente.
Quanto às outras coisas...
* * *
Têm-lhe dito que o seu gato é arraçado de gineto. E será.
De facto, ele mostra-se bravio, brincando arranha e os seus belos olhos deitam por vezes chispas ferinas. Mas de tão presente que é, de tão integrado na sua vida actual, ela entende-o, desconfunde-o até de qualquer outro pelo simples miado.
É certo que o amor que lhe tem e a graça que lhe acha se tornam especialmente actuantes, lho afirmam.
Afirmam! Palavra própria ou imprópria?
As palavras, ai, as palavras... e dá-lhe vontade de esfregar as mãos, como a dona Mariquinhas, ou de dar uma volta com a direita no ar... as palavras são o que nós queremos que elas sejam, falam à nossa moda, à moda de cada um de nós; a gramática delas é sempre muitíssimo pessoal.
Aquela dona Mariquinhas, dos seus vinte anos, ser encantador! Bom, bom, vê que já está misturando alhos com bugalhos... Que se desmanda, que se precipita.
E poisa a pena. Retoma-a enfim, para assentar:
Aquela idade perdida, aquela gente, aquele tempo à força de os querer fazer reviver mata-os, matá-los-á, sem dúvida. Não há lá palavras para eles, nem gramática válida. Perderam-se.
A capa, a cor do cabelo de um homem, que é, que são? e como lembrá-los? dar-lhes o tom?
* * *
Júlio Brás era o nome do seu namorado. Feio nome.
Ela não engraçava com o nome, nem nunca gostou dele. Das suas feições mal se lembra. Aliás não são as feições em conjunto nem em separado o que melhor assinala uma criatura. É o jeito do cabelo, o olhar, qualquer coisa da boca, o riso, a seriedade, o andar e até o som da voz.
Mas dele que lhe ficou, em suma? Quase só uma espécie de repugnância. Não física, em especial, mas total. Hoje morta...
Lembra-se de correr pela quinta fora até o mirante da estrada, quando o ouvia passar de bicicleta. A velha ou a Delmira a preveniam, ou ela mesmo o sentia.
Chegava ao tal poiso e sentava-se no murinho, de lado; ele parava na estrada, em baixo. E nada tinham que se dizer... Ela dava-lhe então, atirava-lhe uma rosinha de toucar ou um martírio do caramanchão.
Tão estranhos se sentiam um ao outro que ainda hoje pensa que a pura imaginação é que alimenta o amor dos adolescentes, e que o pobre Júlio não tinha o poder de lhe despertar a sua.
De outras vezes falavam-se por entre as grades de um portão do meio da quinta. Ele beijava-a na boca e ela permitia-o, sem o mínimo interesse nem efusão. Cerebralmente considerava aquilo próprio do amor. Todos os romances dos caixotes de Esperancinha descreviam o beijo como a mais fina substância do amor.
Mas quando o namorado, um dia, sob a larga capa, lhe segurou a mão e a puxou ao seu corpo, ela teve uma sensação inqualificável. Nunca, nunca a revelou a ninguém. Pensa que são coisas que toda a vida se guardam, se reservam. Foi uma sensação aflitiva, afrontada, de ofensa e de repugnância. O amor, aquele que lhe andava na cabeça, pelo menos, era de uma outra natureza.
* * *
Entretanto o pai, desconfiado ou prevenido, tentava surpreendê-los. E uma bela tarde, destas do começo da Primavera em que já se estava (encontravam-se ambos ao portão fechado), mostra-se-lhes o velho, de cima. Não explodiu imediatamente, mas a ela o seu aspecto aterrou-a e deu-lhe asas.
O portão de dois batentes, a que se encostavam, abrangia e terminava, entre altos muros, uma bela rua que atravessava a quinta quase a pique e a dividia em dois largos lençóis de vinha.
Correr por aquela rua acima como uma lebre, foi o que fez.
O pai, com a verdasca atrás das costas – o seu braço torcido o demonstrava – seguia-a andando. Mas não a apanhou nem capaz foi de dar com o seu esconderijo: uma arvorezinha nova ou anã, de ramos a rojar pelo chão, sob que se agachou. Ali passou o resto do dia e parte da noite. Não tinha medo.
Deu-lhe a ternura, a excitação aplacada, para pensar na árvore, que havia de amar toda a vida...
Tanto pensou nela, ou nela se incorporou com a sua paixão romanesca, própria da idade, ou do temperamento, que a arvorezinha lhe ficou gravada em mente. A árvore e o sítio. Julga que se à quinta tornasse os identificaria.
Tola! A árvore estará velha, como ela... De uma outra velhice, é certo.
O sítio era o das cerejeiras, que apenas ali havia. Por entre carreiros pouco pisados partia-se de lá para um canavial basto, um canavial que falava. Que gemia e tinha outros dons do seu conhecimento, suspeitos ou reais. Mais adiante, nos braços de uma árvore terrivelmente esgalhada, de folha dura, uma árvore sem trato e até hostil, bem podia o pobre Absalão ter sido colhido pelos cabelos. Sempre que os passos a levavam para aqueles lados assim pensava. A fatal fuga do Absalão, tão formoso! A má árvore...
* * *
Procuraram-na. Andava a dona Adélia, acompanhada pelo Luís das Canas com uma laterna acesa, a espreitar por entre as cepas, já enfolhadinhas de novo, as moitas e os esconsos dos muros. Ela saiu do seu esconderijo, mas a velha atemorizou-a:
– Cala-te, cala-te... Foi lá um dia de juízo... Se não fosse a dona Esperancinha!
Ela é que deitou água naquela fervura toda...
Entraram as duas pela porta da cozinha, e pé ante pé seguiram pelo corredor, virando a uma escada, que a meio dele se abria e dava para o sótão, grande e dividido como um casa.
– Tu agora dormes aqui, mas não podes fazer bulha, vê lá! A Delmira cá te vem com a comida.
* * *
Naquele sótão, tão seu conhecido, se guardava a fruta, os antigos caixões largos e fundos, carunchosos, de grandes fechos arrombados, dados ao desprezo, os baús encoirados e pregueados, recheados de velharias, e até uma dobadoira nunca servida desde que ela se entendia! Uma dobadoira cuja derradeira serventia era a de encorpar ou materializar histórias muito antigas, vagamente poéticas, que lhe contavam umas senhoras pobres de Vila Franca. Duas irmãs acanhadas, destas visitas que se perpetuam nas casas, toleradas pelas famílias de certa abastança; artistas de mãos, especiosas, acomodatícias.
Aquelas histórias, as figuras unidas das duas irmãs, uma mais alta e outra mais baixa, de fato escuro e de cara macilenta, – bem como uma espécie de flor, uma dália, que elas faziam e desfaziam de um lenço, como os prestidigitadores, – na hora presente, assomadas assim de súbito à sua memória, só lhe parece surdirem dela como um graça, uma partida, um gracejo furtivo do tempo morto. Enfim, uma negaça do tempo irrecuperável.”
Irene Lisboa,  in Voltar Atrás para Quê?, Editorial Presença, 1994

domingo, 12 de janeiro de 2025

Ao Domingo Há Música

With this love, we are all related
In love, give me strength
In this love, we are all related
In love, give me strength in this love


Ser marcado pela força do amor é talvez a melhor marca que cada um pode ter. Se isso puder ligar todo o mundo neste ano de 2025 , talvez seja uma utopia.  E porque não pode deixar de ser um  tenaz   e veemente  desejo, talvez seja o remédio para um novo e diferente mundo . 
É nessa direcção  que  se apresenta uma belíssima e também  diferente melodia:
All Related por Nessi Gomes e o   Hackney Harmony Choir,  sob a direcção da Maestrina  Sophia   Efthimiou ,  na  St. Matthias Church, London 10/12/2024.
A produção é de Myles Eastwood . O   Director de  fotografia  Will Hazell e os operadores de câmara Oli Robertshaw & Carl Youri .

quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

Trasladação de Eça de Queirós para o Panteão

A trasladação dos restos mortais de Eça de Queirós efectiva-se hoje, após um processo  longo de alguma controvérsia.  
Eugénio Lisboa discordou dessa trasladação, tendo escrito  vários textos , onde vertia essa opinião.
Republicamos quatro desses textos que , juntamente com outros sobre o mesmo assunto, publicámos em 2023.
 

EÇA NO PANTEÃO NÃO TEM ADESÃO
por Eugénio Lisboa
“Somos um país de modas mais ou menos efémeras. De vez em quando, descobrimos uma moda nova e pomo-la de serviço, sem rei nem roque.
Durante décadas e décadas, nunca ninguém se preocupou com o Panteão, nem sequer se lembrou de que ele existia. Mas quando alguém se lembrou dele, já nem sei a propósito de quê ou de quem, o Panteão passou a ser o prato de arroz doce de todos os banquetes culturais. Estar ou não estar no Panteão, eis a questão. Quando uma personalidade de algum destaque cultural, científico, desportivo, militar ou político morria, aqui d’El-Rei que deve ir para o Panteão. À falta de melhor manjar, a comunicação social pegava neste e os opinantes ganhavam o dia. Tema qualquer serve, como diria a grande Irene Lisboa.
Propunha-se levianamente despachar para aquele sítio feioso e pouco acolhedor os restos mortais de alguém, sem realmente se ter em conta se esse teria de facto sido um desejo do falecido ou dos seus próximos, em representação dele. Ora não é difícil supor que um Pascoais preferiria, de longe, ficar no Marão, um Régio, em Vila do Conde, um Ferreira de Castro, em Ossela ou Sintra, um Camilo, em S. Miguel de Seide ou Porto, um Torga, em São Martinho da Anta  e um Eça, em Tormes. Isto, para dar só alguns exemplos. Se a autorização final deve caber ao Parlamento, a iniciativa da trasladação deve competir aos familiares, em consulta com os conhecedores profundos da obra e das idiossincrasias do falecido.
Pensar que o Panteão é o desejo ardente dos notáveis é ignorar o enorme poder de atracção que outros locais, carregados de magnetismo emocional, possam ter tido para o ilustre falecido. Por exemplo, ser enterrado na terra natal, ou na terra em que se foi feliz ou junto do companheiro ou companheira de toda uma vida. Tais sítios são polos de atracção muito mais poderosos do que um Panteão álgido, hostil e escassamente visitado. Um Panteão, perdoem-me a franqueza rude, é mais um depósito pouco atraente do que um lugar aprazível, para final de percurso.
A grande maioria dos grandes de França não se encontram sepultados no Panteão, estão no Père Lachaise ou noutros cemitérios onde preferiram ficar sepultados.
Esta gritaria recente, para se enviar Eusébio, Amália, Sophia, para o Panteão, faz parte do nosso irredimível provincianismo, que não é capaz de ver para além de falsos cenários.
Em Portugal, quando verificamos TODAS as personalidades de alto relevo, que nunca tiveram lugar no Panteão Nacional, apetece mesmo lá não estar.
A anunciada e próxima futura trasladação dos restos mortais de Eça de Queirós para o Panteão Nacional é uma perfeita aberração e, ao que sei, não obteve a devida aprovação de quem de direito. Foi uma ideia oportunista e provinciana de alguém que é hoje ministro e que provavelmente conhece mal a obra e a personalidade do autor de O CRIME DO PADRE AMARO, mas conhece bem a arte de se tornar visível, à boleia de uma péssima ideia.
No Panteão de Paris, estão apenas os restos mortais de 75 personalidades, e a esmagadora
maioria dos grandes escritores franceses não está lá. Dos escritores do século XX está lá só UM, André Malraux, e não estão lá Anatole France, André Gide, Marcel Proust, Henry de Montherlant, Romain Rolland, Paul Valéry, Paul Claudel, Colette, Georges Duhamel, Roger Martin du Gard, François Mauriac, Julien Green, Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Albert Camus, Aragon, Jean Giraudoux, Marcel Aymé, Maurice Barrès, Antoine de Saint-Exupéry, Jean Anouilh, Raymond Queneau, Jacques Prévert, Jules Supervielle, Saint-John Perse, Jean Giono, Georges Simenon, etc.
NÃO ESTAR no Panteão está portanto longe de ser uma humilhação ou apenas razão de melancolia. Digamos que a melhor companhia até está cá fora e é cá fora, em Tormes, que Eça deve ficar. E ficará muito bem: estou certo de que assim o diria, se pudesse falar.”
Eugénio Lisboa, 27.04.2023
O PANTEÃO
por Eugénio Lisboa
O Panteão de um escritor são os seus leitores. Se estes não continuarem a existir, não há Panteão que os salve. Eça está, há muito e para sempre, no seu feliz Panteão: os leitores que o admiram e, na sua afiada e inovadora língua, se banham.
Uma das grandes forças da visão e da estilística de Eça foi sempre uma elegante e nobre distanciação da pompa, que considerava cómica e apenas bom material para uma desenfastiada chacota. Quem leu as inesquecíveis e contundentes páginas de UMA CAMPANHA ALEGRE, se tiver alguma sensibilidade e algum pudor, ficará assustado ao antecipar o que vão ser as palavras eriçadas que as “entidades” de colarinho engomado lhe vão fazer chover em cima (caso isso aconteça…), no próximo dia 27. Eça vai ter de dar muitas voltas, no túmulo, a tentar destemidamente evitar que lhe remexam nos ossos. E não vale a pena invocar a autoridade de eminências académicas, para justificar o injustificável: os textos e a vida do escritor falam por si. Deixemo-nos de hesitações eruditas e de talvez mas contudo: Eça abominaria ir para o Panteão. Bolas, leiam-lhe a obra com olhos de ver e ler! E deixem-se de pedir a opinião de “autoridades” académicas: consultem os textos! Arre!
 
P. S. – Entrou, ontem, em tribunal. uma Providência Cautelar, para travar esta idiota trasladação. Vamos ver se a festa se azeda.
Eugénio Lisboa, 20.09.2023
Eça de Queirós não era “pessoa de bem”
por Eugénio Lisboa
“Meter Eça no  Panteão, para o amaciar, é o mesmo que ter metido Santana Lopes no governo para o calar. Aos reguilas, é costume querer domesticá-los, dando-lhes presentes, sinecuras, ministérios, academias e penduricalhos. Meter o Eça no Panteão é querer fazer crer que ele não escreveu A RELÍQUIA ou A CAPITAL (talvez a obra-prima do “roman noir”, em Portugal). Panteonizar Eça é intrujar as pessoas, fingindo que o Eça não é o Eça. É querer enterrá-lo, definitivamente, numa falsa “respeitabilidade”, que ele nunca teve nem quis ter (não me perguntem onde ele “diz” isso, toda a sua magnífica obra O DIZ por ele). Não concebo nem um Juvenal nem um Jonathan Swift, num Panteão romano ou inglês, caso estes existissem. Há escritores, músicos, pintores que não são misturáveis com a pompa solene dos Panteões. Não se trata de se não merecerem uns aos outros: trata-se tão só de não serem COMPATÍVEIS, tal como a água e o azeite não serem miscíveis, mesmo sem se discutirem os seus méritos). Eu não vejo o intemerato Swift a ser benzido por um cardeal aparatoso, como não vejo um gato a obedecer a um cão. E gosto muito de gatos e de cães. Molière nunca entrou na Academia e Stendhal também não. A “vieille guarde” de Napoleão disse “merda” ao general Wellington e preferiu ser trucidada a render-se. Eça, diplomata nunca vendido ao discurso suave, jamais se rendeu ao bempensismo. Querem capturá-lo agora, depois de morto. Querem fazer dele “pessoa de bem”, segundo os códigos de comportamento da gente de extrema-direita. A mesma gente a que Bertrand Russell chamava “nice people”, da qual fez o mais demolidor diagnóstico de que tive conhecimento. Eça não era “pessoa de bem”, selon Ventura, como não eram “pessoas de bem” Aristófanes, Juvenal, Voltaire, Molière (sobretudo o de TARTUFO), Bocage, António Vieira, entre outros.
O que um escritor “diz” não é só ou não é, sobretudo, o que ele diz explicitamente. O que ele realmente diz é o que toda a sua obra inculca. Eça não diz ostensivamente que não quer ir para o Panteão, mas toda a sua obra o grita. Isto, que não tem validade jurídica, devia tê-la para os seus herdeiros, se, improvavelmente, tivessem lido, com mão diurna e nocturna, a obra do seu antepassado. Conversei um dia com um descendente de Eça, que tinha Eça de Queirós no seu apelido, o qual descendente me confessou, com toda a candura, não ter lido um único livro do seu ilustre antepassado. Não seria interessante fazer um miúdo escrutínio às leituras dos dezasseis bisnetos favoráveis à trasladação? Aqui fica, grátis, a sugestão.”
Eugénio Lisboa, 26.09.2023
TRASLADAÇÃO DOS RESTOS MORTAIS
DE EÇA DE QUEIROZ PARA O PANTEÃO
por Eugénio Lisboa
“O Supremo Tribunal Administrativo decidiu a favor dos herdeiros de Eça de Queiroz, que desejam a trasladação dos seus restos mortais para o Panteão Nacional. A lei, bem ou mal interpretada por esse tribunal, deu-lhes razão. A razão dos herdeiros, apoiada na lei jurídica, ganhou. A justiça à memória do escritor, não. A lei escrita obriga, muitas vezes, à injustiça. Não é a primeira vez que lei e justiça se opõem. E não será a última. E já vem, pelo menos, dos tempos remotos de Antígona.
O funeral do autor de O CRIME DO PADRE AMARO vai, provavelmente, ter os ritos da trasladação abençoados, com a aprovação comovida dos que herdaram o nome, mas não o espírito, do grande escritor, por um qualquer dignitário da Igreja. E o criador do Conselheiro Acácio vai ter de ouvir, lá no assento etéreo, onde se encontra, as beatas e conselheirais palavras de um qualquer orador que ali vai buscar os seus quinze minutos de glória. Espero que, na urna onde os seus ossos se encontrarem, haja espaço suficiente para ecoar o som da inconfundível gargalhada que ali se vai percutir.
É bem verdade: os grandes homens nem sempre têm os herdeiros que os conhecem e os merecem. Por isso, o grande George Steiner propunha que as viúvas desses grandes homens – no sentido muito lato de “viúvas” – deviam, à cautela, ser lançadas à pira, para evitar desacatos. É uma proposta que merece a mais séria consideração das mentes legislativas.”
Eugénio Lisboa, 20.10.2023 

domingo, 5 de janeiro de 2025

Ao Domingo Há Música


Silêncio

É o silêncio que pedes, 
E é silêncio que peço.
Mas o poema é o som dos leves passos
De uma aventura.
Se nada ouves,
Se nada ouço, 
É que não há Poesia.
E, então, 
Ai de nós 
E da nossa harmonia!
Miguel Torga, Diário V


Neste primeiro domingo de 2025, as canções que se apresentam têm apenas em comum a partilha de belíssimas  vozes, em duetos   singulares.
Tudo as diferencia  quer na melodia  quer  no ritmo quer  na sonoridade quer na própria construção harmónica das peças. São   belas e distintas.  Trazem-nos a doce  alma longínqua de terras desconhecidas e o pulsar de um coração que mora em qualquer um de nós. 

Jacob Collier , em A Rock Somewhere [feat. Anoushka Shankar & Varijashree Venugopal] num espectáculo em Amesterdão.
-Para celebrar a nomeação do A Rock Somewhere para o Grammy de Melhor Performance Musical Global, aqui está a nossa  primeira apresentação ao vivo da música juntos em Amesterdão, informa Jacob Collier.
Jacob Collier – Piano & Vocals. Anoushka Shankar – Sitar. Varijashree Venugopal – Vocals Audio mix by: Jacob Collier & Ben Bloomberg.Video editing & grading by: Jacob Collier & Doddsy. Filmed by: Doddsy, Lina Holt, Mateusz Szymankiewicz & Jeroen Zondag Artist Management / Creative:Francesca Haincourt. 
 
Sara Bareilles  e Rufus Wainwright interpretam  She Used to Be Mine , junto ao   Kennedy Center. 
Sara Bareilles, cantora "pop icon" ,  artista multi-facetada e activista,  juntou-se ao famoso tenor Rufus Wainwright e à National Symphony Orchestra para uma magnífica interpretação da muito aclamada peça do teatro musical “She Used to Be Mine” , no esgotado Concert Corredor do Kennedy Center. Neste concerto de retrospectiva de carreira, Sara viaja pela sua vida e carreira como artista, partilhando emoções e muitas vezes histórias cómicas de experiências que moldaram o seu caminho.