sexta-feira, 9 de agosto de 2024

Dos Diários de Eugénio Lisboa

Eugénio Lisboa, (Lourenço Marques ,25.05.1930- Lisboa, 09.04.2024)

Entre a vasta obra de Eugénio Lisboa, estão os diários que não deixou de escrever até à sua morte , em 9 de Abril deste malogrado ano de 2024. Diários a que deu o título "Aperto Libro " e dos quais estão, apenas, publicados  dois volumes , "Aperto Libro  , Páginas de Diário I - 1977-1990" e  "Aperto Libro II, Páginas de Diário II - 1991- 1994". Por se  tratar de uma obra riquíssima , um precioso documento  do último quartel de século XX e do primeiro do século XXI , torna-se urgente e imprescindível   a publicação integral da totalidade desta  obra diarística . Literatura, Pintura , Música , Teatro,  Arte e as grandes ideias definidoras desse tempo, tudo perpassa pela pena de Eugénio Lisboa,  num registo fecundo , de extraordinária lucidez,  de sóbria sensibilidade , de  grande rigor e clareza.  
Retirámos, do primeiro volume, alguns  verbetes que  são testemunhos eloquentes da diversidade  que  compõe a obra.
"Londres, 11.08.1989 – Ultimamente, tem-se-me tornado quase obsessiva a evidência de que estou a viver a última etapa da minha vida. Começo a olhar para as estantes e a notar, com melancolia, as obras que ainda não li e já não vou ter tempo de ler. As ideias que não vou conhecer e outras que não tive tempo de aprofundar. A música que já não vou ouvir e outra que não voltarei a ouvir. Dito assim, parece que tudo isto são apenas palavras. Mas, dentro de mim, tornou-se uma ferida profunda e muito sentida. É a consciência, ao vivo e a quente, de tudo quanto desperdicei. A felicidade que muitas vezes não tive e aquela que aos outros não dei. Ao lado da outra que tive, sem muito bem a saber retribuir. Percebo que não há muito de redentor no envelhecer. É uma época de balanços que nos dizem, quase sempre, que o saldo é dolorosamente negativo.
Dito o que, continuo a comprar livros e discos e objectos. O que diz muito sobre a lógica de ferro que rege a nossa vida… 
Acabo de ler, no Guardian, a lista de livros cuja publicação se anuncia para o Outono. Alguém cita o que disse Anthony Burgess, a propósito do 1º volume da biografia de Shaw, por Michael Holroyd: “Terminaremos o livro ficando a saber que vale a pena continuar a viver para podermos vir a ler os volumes 2 e 3.” Eis uma nova e bonita fórmula para nos prender à vida: ficarmos à espera da chegada de um bom e apetecido livro. Por que não?

Londres, 27.09.1989 – No regresso a Londres, vim encontrar, enviado pelo embaixador português no Maputo (Francisco Knopfli), um artigo sobre o que significa “ser moçambicano”. Trata-se de um comentário, em tom amistoso, à minha afirmação, feita numa entrevista,de que o melhor critério de avaliação de “moçambicanidade” ainda é por via do afecto (seria moçambicano quem lá viveu e ficou a amar a terra). O autor do artigo – Tomé Sengane – diz não estar inteiramente de acordo. Só é moçambicano quem conhece o país ou quem conheceu o cheiro da pólvora. Respondo-lhe que amar é conhecer e que grandes escritores em todo o mundo foram cidadãos dos seus países, mesmo sem conhecerem o cheiro da pólvora (de qualquer modo, só um número muito diminuto de cidadãos conhece o cheiro da pólvora…) Por outro lado, o autor do artigo, contrariando-me, afirmava que esta polémica era importante por durar havia muito tempo e nela estarem envolvidas pessoas de valor. Respondi-lhe que o mesmo se passou com a polémica em torno do sexo dos anjos: muita gente de valor se deixou enredar nela, durante muito tempo… Não sei se o meu interlocutor terá o sentido de humor suficiente para se não zangar comigo…

Londres, 05.10.1989 – Anteontem e ontem, com o Vasco Graça Moura, que veio a Londres fazer uma palestra sobre Camões, a meu pedido, para a Anglo-Portuguese Society. O seu inglês escrito é razoável e o falado aceitável (com alguns erros de pronúncia de quem não está habituado a falar a língua). A palestra foi sobretudo sobre os seus próprios trabalhos dedicados a Camões. As suas considerações sobre o número de ouro e a influência deste na estrutura do poema e seu relacionamento com a biografia pareceram interessar bastante o público. Curiosamente, o público nem era o que normalmente se vê naquelas sessões um pouco poeirentas. Era uma gente culta e interessada na história cultural portuguesa. A sessão foi agradável e instrutiva.
Falámos, em conversa, da sua (e da minha) recente visita a Moçambique. O Luis Bernardo Honwana teria feito esta espantosa declaração: “Os descobrimentos portugueses foram um facto negativo.” Mas, então, todo o evoluir histórico e científico foi um facto negativo. A pré-história seria a idade de ouro da história da humanidade.
O Vasco Graça Moura continua, é claro. A ser vítima da sua excepcional capacidade de fazer. Os que nada fazem não lhe perdoam nem a sua criatividade nem, sobretudo, a sua energia. Ao apresentá-lo na Anglo-Portuguese Society, disse dele o seguinte: “As an exceptinal doer, he is the obvious shooting target of the non doers.” O que resume, creio eu, a verdadeira situação do Vasco Graça Moura, no mesquinho “milieu” português. Um dos “métodos” usados para o embaraçarem é, de vez em quando, atribuírem-lhe o desejo de obter este ou aquele posto, assim criando uma tensão subtil entre ele e o detentor vigente desse posto.

Londres, 07.11.1989 – Acabei a leitura das Memórias Não Escritas, de Katia Mann, viúva de Thomas Mann (agora já falecida). Livro interessante e vivo. Conta, do “mágico” (Thomas Mann), coisas curiosas. Por exemplo: Mann documentava-se prodigiosamente para escrever os seus livros: estudou medicina a fundo, para escrever A Montanha Mágica, música para o Doutor Fausto, egiptologia e história das religiões, para a tetralogia José e Seus Irmãos. Porém, uma vez utilizados os conhecimentos adquiridos e concluído o livro, esquecia tudo completamente – nada ficava a atulhar-lhe a memória. Os conhecimentos tinham servido a sua função – podiam pois desatravancar a loja…
Katia Mann conta uma história prodigiosa acerca de Arnold Schönberg. O grande compositor tinha um pavor enorme dos dias treze, por estar convencido de que morreria num dia treze. Tinha 76 anos. No dia 13 de Julho de 1951, esteve inquieto o tempo todo, como era costume nessa data temida, olhando para o relógio da sala, a ver chegar, com angústia, a meia noite.Quando essa hora chegou, já aliviado, subiu ao quarto de cama, tendo, antes, pedido à mulher que lhe levasse para cima, como era costume, uma chávena de Bovril. A mulher foi à cozinha preparar a bebida e, quando entrou no quarto, deu com o marido caído no chão, morto. O relógio do quarto indicava que ainda não era meia noite. O da sala estava adiantado…

Encontros com a morte. Henry James, no momento de entregar o fantasma: “So this is it at last, the distinguished thing.”
Prefiro Ibsen que, à enfermeira que lhe dizia achá-lo muito melhor, respondeu: “Muito pelo contrário!” E morreu.
O mais bizarro “encontro” com a morte foi talvez este: o romancista inglês Thomas Hardy tinha planeado que, antes de lhe cremarem o corpo, lhe extraíssem o coração e o enterrassem em Stinsford, sua terra natal. Assim o fizeram, isto é, extraíram-lhe o venerável órgão, conforme pedido. Porém, enquanto este se encontrava em cima de uma mesa, na cozinha, o gato roubou-o e desapareceu com ele num bosque vizinho."
Eugénio Lisboa, in Aperto Libro, Páginas de Diário I - 1977-1990, Editora Opera Omnia, Novembro de 2018, pp.143, 160, 161, 164, 165,170,171.

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