quinta-feira, 3 de novembro de 2016

A fuga à realidade é idêntica em toda a parte

No início do  Ensaio   " Diante do Nariz" ,  George Orwell  propõe-se , através de alguns exemplos, mostrar  a estranha capacidade do Homem em acreditar ao mesmo tempo em duas coisas que se anulam uma à outra. Estreitamente ligado a isto está a capacidade de ignorar factos óbvios e imutáveis, e que terão de ser encarados  mais cedo ou mais tarde. É sobretudo  no pensamento político que estes vícios prosperam.
Escrito em 1946, este Ensaio revela uma actualidade surpreendente que nos apraz registar. Transcreve-se um excerto da parte final deste interessante texto.
" Não vale a pena multiplicar os exemplos. O ponto em questão é que todos nós somos capazes de acreditar em coisas que sabemos serem falsas e depois, quando se torna claro que estávamos errados , somos capazes  de torcer descaradamente  os factos para tentar mostrar  que tínhamos razão. Do ponto de vista  intelectual, é possível prolongar este processo indefinidamente: o seu único obstáculo é que mais tarde ou mais cedo uma crença falsa  esbarra de frente com a sólida realidade, normalmente num campo de batalha.
Quando consideramos toda a esquizofrenia que prevalece nas sociedades democráticas , as mentiras que é preciso dizer para captar votos, o silêncio a propósito dos assuntos, as distorções da imprensa, é tentador acreditar que nos estados totalitários há menos impostura, maior capacidade para encarar os factos.  Ali, pelo menos, a classe dirigente  não está dependente  do favor  popular e pode dizer a verdade de forma crua  e brutal. Goering pôde dizer  " Quereis canhões ou manteiga?", ao passo que os seus homólogos  democráticos  tiveram  de embrulhar a mesma ideia em centenas de palavras hipócritas.
Na verdade, porém, a fuga à realidade é muito idêntica em toda a parte e tem consequências  muito similares. Ao povo  russo foi inculcada durante anos a ideia de que vivia melhor  que qualquer outro e os cartazes  de propaganda mostravam as famílias  russas diante de mesas cheias de comida e o proletariado dos outros países  ocidentais  eram tão superiores  às dos  russos  que evitar qualquer contacto  entre os cidadãos soviéticos  e os estrangeiros  se tornou um princípio político de base. Depois, como resultado  da guerra , milhões de russos comuns  entraram na Europa; e  quando regressaram a casa,  a anterior fuga á realidade  será forçosamente expiada  com toda a sorte  de atritos. Se os alemães  e os japoneses perderam a guerra, foi em grande parte porque os seus dirigentes foram incapazes de encarar factos que eram evidentes para qualquer olhar imparcial.
Ver o que está diante do nosso nariz exige uma luta constante. Algo que nos ajuda nesse sentido é manter um diário, ou pelo menos manter algum tipo de registo das nossas opiniões sobre acontecimentos importantes . Caso contrário, quando alguma ideia  particularmente absurda é destruída pelos acontecimentos , podemos simplesmente esquecer que acreditámos nela. Os prognósticos  políticos costumam estar errados, mas mesmo quando fazemos um que bate certo, descobrir por que acertámos  pode ser  um exercício muito esclarecedor . Em geral,  só acertamos  quando os nossos  desejos ou os nossos medos coincidem  com a realidade. Reconhecer  este facto não nos livra,  é claro, dos nossos  sentimentos  subjectivos, mas permite  que em certa medida  os isolemos da nossa razão e façamos  prognósticos isentos, segundo as regras da aritmética. na sua vida pessoal, a maior parte das pessoas  é bastante realista. quando estamos  a fazer  o nosso orçamento  semanal, dois mais dois  dá sempre quatro.  A política, em contrapartida, é uma espécie  de mundo subatómico ou não-euclidiano, onde é muito fácil que a parte  seja amior do que o todo ou que dois objectos estejam em dois sítios simultaneamente . daí as contradições e incongruências  que registei acima, todas elas derivadas , em última análise, duma secreta  convicção de que as nossas ideias políticas , ao contrário do nosso orçamento semanal, nunca serão postas à prova pela sólida realidade."
George Orwell, in  " Ensaios escolhidos" ,Relódio D'Água Editores, Abril de 2016,  pp 293,294,295

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