segunda-feira, 6 de outubro de 2014

A Náusea

A Náusea
              
Nasceste moribundo
na gradual asfixia dessas horas...
a atmosfera atômica foi teu regalo
tua primavera deflorada.
Tiveste,
no caminho luminoso da aventura,
a inconsciência da angústia e do impasse.
Amaste adejadas crianças
com suas boquinhas de flauta
e em todos os seres  amaste a missão da poesia.

Agora  porém,
o tempo da pátria
é um mandato de silêncio
e tu,
vertiginosamente,
amadureces teu grito.

Cada dia,
mais e mais,
pesa-te o cansaço,
o viscoso cansaço de hospedar um coração calado,
de fingir diante do ultraje dos decretos,
de espiar-te como uma inalterável crisálida.
Em tuas  vísceras
borbulha um legítimo vômito,
pela condição de viveres num tempo de fezes
de cínica injustiça e maus pressentimentos.

Subitamente
conheces a própria definição:
um obelisco de náusea,
eis tua espantosa estrutura.

Tu te ergueste em náusea
contra a inconfessável cumplicidade dos homens,
tu herdaste a náusea
a nauseabunda náusea medieval deste século.
Tua tese será:
A náusea
cratera de pânico
na expressão poética do mundo.

A náusea
              enigma manso como um poste
a  náusea
              herança alarmante para os que estão nascendo
a  náusea
              pacto injusto do opressor contra o oprimido
a náusea
              contra o famélico cancro racista
a náusea
              contra os réus de  Nurembergue
a  náusea
              contra o delito de Hiroshima
a náusea
              contra o muro de Berlim
a náusea
             contra a retórica paz dos tratados
a  náusea   
              contra as tréguas violadas
a náusea
              contra a guerra fria
a náusea
              contra os gatilhos dessa  paz armada
a  náusea
              contra o polvo imperialista num tempo planetário
a náusea
              contra a invasão do Vietnam
a náusea
              contra o isolamento continental de um povo
a  náusea
              contra uma organização interamericana de fantoches
a  náusea
              contra o quartelaço sobre a pátria
a  náusea
              contra o desterro dos heróis
a  náusea
              contra os cárceres da neo-inquisição
a  náusea
              contra as acusações inquestionáveis
a  náusea
              contra a angústia  de um povo silenciado

Como uma ameaça  imprevisível
a náusea toma conta do país.
Sanciona um outro calendário para os nossos dias,
e ele marca o medo,
a desesperança
e o silêncio.
Agora o nosso sonho é uma opção mortal
e ante a  expectante  bússola do tempo
a liberdade treme em nosso gesto
quando o artefato da arte é fato
é cântico de protesto.

Eis a mensagem humana
e sem meiguice
de um tempo já sem templo.
E tu, entre tantos,
saberás conter essa indignação
somente no lirismo dos teus versos,
ou irás colar teu escarro no pátio sangrento dos quartéis?

Agora e mais que nunca
escava uma trincheira no teu peito e canta
canta, canta sempre
canta para saudar a vida
canta para hastear um sonho
e, como uma cigarra, canta até morrer.

A ti compete esgrimir o invencível gume do poema
e retalhar as forças mal-armadas.
Tu tens a panacéia da palavra
para aliviar as equimoses deste povo.

Com o arco luminoso do teu canto
lança tua flecha peregrina
buscando o arcano mundo dos iguais.
Fecundarás o tempo com a lírica semente da esperança
e mesmo solitário, silenciado ou esquecido
terás anunciado a primavera
porque ousaste sonhar a despeito da alienação e da descrença.

Eis o ar que tu respiras
teu mastro e o teu pendão.                                                             
E nas entrelinhas dos teus versos
recrutarás  o amor e a liberdade
para que possam,  os que virão,  pressentir essa beleza,
essa flor inadiável
desabrochando enfim no coração dos homens.

                                                                       Curitiba,Outubro de 1965
Manoel de Andrade, in “Poemas para a Liberdade “, Edição bilíngue, Editora Escrituras, S. Paulo, Brasil

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