sábado, 22 de junho de 2013

Sobre a Cultura

O poder e a cultura
Por Carlos Heitor Cony
"Dos 190 milhões de brasileiros, parece que sou o único a não ser ouvido ou cheirado pelos altos e baixos escalões da República. Não me dou ao respeito de usar cartão de visita, nunca precisei deles --pois nunca visito ninguém e não gosto de ser visitado-- mas, se tivesse de mandar imprimir esse tipo de apresentação formal, teria pelo menos um título igualmente único para ostentar: "o brasileiro que nunca foi convidado nem indicado para o Ministério da Cultura".
Diante da cultura, há duas atitudes típicas: a do militar de anedota, que quando ouvia falar em cultura puxava o revólver, e a do banqueiro, que quando tinha diante de si algum espécime da área da cultura, para adiantar o trabalho, puxava logo o talão de cheques.
Não parece, mas há razões para uma e outra atitude. O militante da cultura, reduzido à expressão mais simples, é um pedinte crônico, inarredável, tem sempre uma série de reivindicações a fazer, algumas de ordem pessoal, outras de âmbito geral, mas sempre reivindicações. Lembro um caso antigo que pode ilustrar esta mania intelectual de pedir pela cultura.
Uma tarde, estava saindo do cinema quando esbarrei com dois membros da pesada. Levaram-me para um canto e me forçaram a assinar um memorial ao ministro da Guerra --era da Guerra, então, o atual Ministro do Exército.
O Brasil mandara um pequeno contingente de soldados para integrar a força da ONU que tomava conta do Canal de Suez, e os intelectuais do Rio desejavam levar um grupo de bailarinos "para distrair as tropas brasileiras". Naquele tempo, eu assinava tudo, não por convicção, mas para ficar livre da maçada.
Dias depois, li nos jornais que o grupo de intelectuais fora recebido pelo ministro, o qual, na base da tradicional vaselina, ficara de estudar o assunto. Ignoro se os bailarinos patrícios foram ou não dançar no Suez --para a história do nosso século, o esforço artístico daquele abnegado grupo perdeu-se diante de fatos mais graves e menos dançantes.
Mas o episódio não deixa de ser uma boa ilustração das relações entre o poder e a cultura. Com pequenas variantes de gênero, grau e modo, o decantado diálogo entre governantes e intelectuais é mais ou menos esse. No fundo, todos ficam satisfeitos, porque os intelectuais sempre descolam uma boca livre, um cargo em comissão, o financiamento de um filme ou uma peça, tiram uma migalha qualquer das burras nacionais.
E os governantes, por sua vez, acreditam que obraram bem, alçaram-se às alturas do mecenato --dirão mais tarde, aos descendentes contritos: patrocinei as artes do meu tempo.
Bem, talvez seja impossível haver outro tipo de relação entre o poder e a cultura. Acredito que, quanto menos precisar do poder, melhor será a cultura de um povo. E dou outro exemplo, este mais recente: em apenas alguns anos de governo, um presidente já presidiu não só um congresso de escritores mas a duas exposições de gado zebu, em Uberlândia (ou Uberaba --sempre confundo o ponto geofísico desses eventos), e tinha na agenda uma reunião equivalente em Goiânia.
Houve discursos, placas comemorativas, comes e bebes de circunstâncias, enfim, ignoro piamente como andam os nossos zebus, nada sei de suas mazelas e de suas conquistas, mas acredito que estarão mais bem servidos do que os intelectuais.
Bem verdade que ambos --zebus e intelectuais-- serão sempre medalhados pelo poder, mas aposto muito mais na bovina saúde de um zebu do que na problemática vitalidade dos nossos intelectuais. Houve época em que ninguém seria poeta de respeito se não cultivasse, juntamente com as musas, uma respeitável dose de bacilos de Koch. Hoje, com os antibióticos, a tuberculose deixou de ser moléstia intelectual, virou o que é, moléstia de pobre mesmo. 
Quanto aos intelectuais, a situação melhorou um pouco, pois na pior das hipóteses, e genericamente, são todos ministeriáveis. Mas não só de poder viverá um intelectual. Para produzir um filme, um show, um curta-metragem, um estudo sobre a decadência da cultura do café ou a hora de investir em qualquer sustentabilidade, nada se fará sem os patrocínios que de alguma forma são sempre liberados pelo poder.”Carlos Heitor Cony , em Artigo de Opinião publicado, na Folha de S. Paulo de 14/06/2013

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