segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Brasil, terra de contrastes

                                      “Vamos pátria a caminhar, eu te acompanho”
                                                                                   Otto René Castillo

Manoel de Andrade, poeta brasileiro, residente em Curitiba, foi uma das muitas vítimas da Ditadura que durante 21 anos (1964-1985), dominou o Brasil sob o regime militar. A ameaça da perseguição e da tortura pendeu sobre todos aqueles que não comungavam as ideias repressoras desse regime. Muita gente valorosa foi impelida a exilar-se, foi perseguida, sofreu sevícias e tortura e outra foi brutalmente assassinada.Em 1969, Manoel de Andrade viu-se obrigado a abandonar o seu país e a viver a experiência do exílio na América Latina . Nessa época obscura e tenebrosa muitos intelectuais e gente valorosa empurrados para o exterior da sua pátria e, em nome da Liberdade e da Justiça social, ergueram as vozes juntamente com tantas outras vozes da América latina. Desse tempo, Manoel de Andrade guarda Memórias que está traduzindo em palavras numa extensa obra, ainda em construção, que será publicada oportunamente. Pelo interesse literário , pelo valor emocional, pela riqueza documental e pelo rigor histórico que esse registo memorialista detém, já publicámos alguns excertos dessa obra e outros se seguirão.
Manoel de Andrade nasceu no Sul do Brasil. Sendo o Brasil um pais multifacetado e de grande dimensão, as distâncias que separam o Norte do Sul permitem que diversas regiões tenham traços muito diferenciados e que, devido à sua extensão, a descoberta de novos horizontes se faça também entre muros. Em 1968, Manoel de Andrade foi descobrir o Nordeste brasileiro que não conhecia. Dessa viagem, incluida na Primeira Parte das Memórias, em curso, extraímos o seguinte registo:
Pôr-de-sol no Sertão
" (…) O ano de 1968 chegara ao seu último quartel respirando o pressentimento de uma surda e sinistra ameaça por trás dos biombos do poder. O país, desde o golpe militar de 64, seguia sua trajetória nebulosa e inquietante. Sentiam-se os agudos sintomas sociais de uma crise potencial que, dia a dia, vinha cavando as suas imperceptíveis trincheiras e radicalizando as suas posições para o enfrentamento. As palavras, no plano político, haviam perdido a sua opção pelo diálogo e os atos e os fatos iam desfigurando sempre mais a face institucional da nação.
Aquele ano foi um período marcante na história política do Brasil, na vida de muitos brasileiros com uma visão crítica do seu tempo e na minha própria vida de jovem cidadão recém formado em Direito e estudante de História. Na verdade, a década de 60, por inteira, foi uma fase de grande torvelinho político e cultural, de contestações e debates de valores. Um período marcado pela rebeldia da juventude no mundo inteiro e o explícito confronto de gerações. Foi o tempo das grandes revisões no ideário das esquerdas e onde foram lançadas as sementes das mais belas utopias.
Nesse amplo contexto, o enredo político de minha história pessoal em 68 começa no primeiro dia de março. Cada vez mais ansioso para entender a dimensão sócio-económica e política brasileira e amadurecido ideologicamente pela leitura dos grandes teóricos de esquerda, contudo ignorando muito da nossa realidade social, decidi, no início daquele ano, conhecer a região nordeste para complementar minha educação política. Queria ter um contato vivo com o povo nordestino, conhecer de perto sua sacrificada paisagem humana e geográfica, cuja miséria eu apenas conhecia pincelada nos quadros de Portinari, descrita nas páginas de Josué de Castro, de Graciliano Ramos e defendida pelas bandeiras das Ligas Camponesas, infelizmente arrancadas das mãos de Francisco Julião pelo golpe militar de 1964. Com esse propósito, em Março de 1968, tirei férias como funcionário público e parti para o nordeste.
(…)O nordeste brasileiro, em todos os sentidos, é uma região de contrastes. A estreita faixa costeira, que se estende da Bahia até o Pernambuco traz ainda o trauma ambiental do ciclo da cana-de-açúcar cuja monocultura, nos séculos XVI e XVII, devastou a Mata Atlântica transformando parte da região em grandes e áridas savanas. Mas sempre subindo, rumo ao norte, pude ver zonas de vegetação abundante, regadas por chuvas que caem durante todo o ano e constantemente refrescadas pela brisa acariciante dos ventos alísios. (…)Mas nem tudo era pitoresco nas paisagens que iam se abrindo naquele meu descobrimento do sertão. À medida que penetrava pelos caminhos daquele mundo estranho, quase mágico e dolorosamente verídico, os acontecimentos foram delineando, ante meu espanto, o rosto humano do Nordeste. As expressões visíveis da dor, da resignação e da impotência iam reescrevendo meus ingénuos conceitos de justiça social. O dantesco quadro ia da miséria e da exploração extremas até ao abuso e à arbitrariedade elevadas ao nível da violência física e moral, e não se tratava de pobreza, mas sim da miséria absoluta onde se extingue qualquer traço da dignidade humana. Contaram-me que as pessoas mais empobrecidas tinham de pagar durante toda a vida por um caixão e por um pedaço de terra para serem sepultadas. Que os agentes funerários traficavam com a superstição e atrocidade moral. Segundo eles, aquele que não tivesse sua sepultura seria, eternamente, uma alma penada e seu cadáver, deixado em campo aberto, seria – e era em muitos casos o banquete de certos animais e das aves da rapina.
Muitas dessas histórias e tantas outras estórias me contavam os vaqueiros, que estavam por todas as partes do sertão. Fiquei na região da caatinga uma semana, dormindo sempre no próprio carro. Com o passar dos dias conheci mais de perto a alma dos vaqueiros e, por isso, fui aprendendo a admirá-los. A sua palavra sincera e solidária chega a imantar o coração do viajante à vivência de um mundo onde o individuo não perdeu os valores reais da condição humana. Que diferença brutal entre esse mundo e o relacionamento humano na vida urbana onde, quase sempre, o egoísmo e a hipocrisia se mascaram em cada palavra e em cada gesto. Em sua praticidade e na sua maneira simples de interpretar as coisas, o vaqueiro do sertão nordestino é tão sábio como os próprios sábios. A vida solitária e itinerante e o trabalho duro, arriscado e aventureiro, forjaram sua alma com o aço e a poesia. Com sua pele castigada, seu porte viril e sua honra de homem imaculada; com seus gestos precisos e a rapidez com que toma uma decisão; pela altivez do seu caráter e ao vê-lo montado em seu alazão – cavalo e cavaleiro vestidos de couro – o vaqueiro é a figura escultural do interior nordestino. Conhece todos os segredos do sertão e, quando persegue as reses perdidas na caatinga, é mestre consumado nesse ofício. Suspenso num só estribo e agarrado com uma das mãos à crina do cavalo, pega com a outra a cauda do boi na disparada e, de um puxão, atira-o ao solo com as patas pra cima e, com incrível rapidez, pula do cavalo amarrando-lhe as patas.

Vaqueiros em barro de Vitalino Leila

Contam-se muitas fantasiosas histórias sobre certos vaqueiros. A aventura e o mistério envolvem a vida dos mais famosos. Ninguém sabe onde vivem, nem onde nasceram. Aparecem nas fazendas nas épocas de reunir o gado, participam das grandes vaquejadas e depois desaparecem. Alguns são aclamados pelo povo por suas façanhas e têm uma mulher em cada canto da região. Montam com uma incrível destreza, cruzando o sertão como relâmpagos, aparecendo e desaparecendo em instantes entre as matas da caatinga. O mestre Vitalino, um escultor popular pernambucano, gravou, magistralmente, a sua imagem equestre em seus bonecos de barro.
(…)O nordeste do jangadeiro do litoral e do vaqueiro do sertão foi o nordeste cuja paisagem ficou sentimentalmente retratada em meu coração. Aquele nordeste humanamente grande e desde sempre humilhado. Esse nordeste onde a carência alimentar leva à morte por inanição e que Josué de Castro denunciou, com todas as letras, em seu livro "Geografia da Fome". Um nordeste castigado implacavelmente pela natureza e escravizado pelo coronelismo e a cumplicidade dos governantes. O nordeste combativo e heroico, tantas vezes falsificado pelos historiadores de academias e simplificado pela gratuidade dos folcloristas. "
Manoel de Andrade, in “ O Bardo Errante”, (Livro de Memórias em construção), Brasil (Curitiba)

11 comentários:

  1. gostei muito, esta muito bem escrito

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  2. Quer o Brasil, quer Portugal têm um passado de obscurantismo político em que a liberdade era apenas uma utopia. Divulgar a luta de tantos herois e de tantas vítimas em prol da democracia é um projecto sempre nobre. A memória dos tempos violentos não pode ser esquecida para que os homens zelem pela manutenção das conquistas democráticas.
    Manoel de Andrade, brasileiro e sul americano, representa, aqui, todos os guerreiros que de maneiras diversas pugnaram por esse mundo fora.
    Fica a homenagem.

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  3. O Brasil é um país de grandes diferenças,mas um país audaz que está tentando diminuir as suas próprias assimetrias sociais. A descrição do Nordeste neste texto está brilhante e fidedigna com a época.
    Será possível saber para quando a publicação total dessas memórias? E onde serão editadas? No Brasil e em Portugal?

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  4. Brasil, amado Brasil, pátria de muitos, de tantos portugueses!... Lugar seguro para portugueses de toda e qualquer ideologia, que por alguns tempos tenham de se ausentar da sua terra, de procurar o exílio fora de Portugal!... E em termos de exílio, no verso das inúmeras vicissitudes que a vida nos traz, Portugal igualmente foi terra mãe de tantos Brasileiros que aqui nesta pontinha ocidental das Europa procuraram paz, procuraram o seu refúgio, o seu descanso, a sua casa "grande"!... A História de ambos os nossos países é testemunha do que escrevo. Obrigado Brasil!... Obrigado Portugal!... - Varela Pires

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  5. Esse grande poeta que já nos agraciou com seus belos poemas, agora nos promete em prosa suas memórias. Só nos resta esperar.

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  6. Parabéns Manoel. Gostaria de dizer que apesar de
    todas as dificuldades que sabemos existirem em nosso país,e penso que ninguém descreveu tão bem quanto Josué de Castro, em Geografia da Fome,bem como toda a corrupção que corre solta sem impunidade,esta terra continua abençoada por Deus.

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  7. Manoel de Andrade é um dos poucos grandes poetas brasileiros da atualidade. Seus livros de poesia repousam nas cabeceiras de milhares de leitores latinoamericanos. Sua poesia, livre ou engajada, estimula o leitor a pensar, refletir e "materializar" o poema. Agora ele nos oferece a promessa de nos relatar sua viagem por 16 países quando de seu exílio politico. Esta é uma "amostra" do quem vem por aí. Uma belíssima história de vida.

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  8. Manoel,

    Grande amigo.

    Iniciei a leitura do texto e que interessante, em cada palavra tão bem colocada, me transportei às terras do meu sogro, no interior do Rio Grande do Norte.

    Pela grande consideração que tenho ao meu amigo e pai da minha esposa Célia Vitória, João Baptista Cardozo, me emocionei quando cheguei em Natal, nos idos de 1980.

    Seu atual trabalho que em breve teremos às mãos, através desta amostra que hora me encntam, tenho a certeza vai trazer lembranças imorredouras e, por outro lado, ficará demonstrada a sua luta por um Brasil melhor e mais antêntico.

    Receba o meu abraço.

    Laércio Furlan

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  9. Caro Manoel:

    É saboroso o texto sobre o Nordeste, apesar da crueza dos cenários. Há vida na dor, na secura e até no sofrimento - e esta receita você prepara para o leitor-degustador com maestria. Fica o gosto de "quero mais". Quando teremos mais?

    Forte abraço,

    Fernando Bond

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  10. Sobre a poesia de Manoel de Andrade, colaborador dos mais bem-vindos no nosso blog (Füllgrafianas) já se disse quase tudo, mas eu não disse, por isso digo agora: ela é de altíssimo nivel. Ela é arbórea e úmida como as densas matas da Amazônia, sensual como o dorso de uma onça preta, e caminha com os pés das gentes daqui;às vezes descalça.

    E o que fez brotar essa exaltação da Vida nos versos de Manoel, creio terem sido suas andanças pelas terras e seus encontro com as gentes da Ameríca Hispânica. E dessa temos quase nenhum testemunho luso-brasileiro nestes últimos 50 anos, a não ser através desses causos e narrativas de Manoel, prestes a nos supreenderem com seu diário de bordo.

    Frederico Füllgraf - escritor e cineasta - Curitiba, Brasil

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  11. Considero-me um dos leitores privilegiados de Manoel de Andrade, pois acompanho de perto o seu esforço recordatório para ser fiel a uma passagem importante de sua vida, em que a paisagem e os cataclismos políticos latino-americanos inflamaram seu espírito de jovem idealista. Portanto, vejo na sua narrativa autobiográfica e, ao mesmo tempo, de biografia de uma fase critica do continente, um documento que irá enriquecer o estudo e a compreensão da história dos anos 60.

    Manoel se preocupa em aliar ao roteiro histórico-político uma bem cuidada análise de antecedentes da colonização continental, infelizmente povoada pela ganância dos primeiros europeus que para cá vieram, sem qualquer respeito aos povos que aqui encontraram. E o faz com os filtros visuais e emocionais do poeta que é, tornando a narrativa ainda mais bela, mesmo quando trata de desventuras.

    Coetâneos e, portanto, construídos pelo mesmo tempo, temos, entretanto – Manoel e eu – visões ideológicas distintas, o que não nos impede de nutrir uma sólida e fraterna amizade e mútuo respeito pelo que pensamos, seja no campo político, seja no religioso. Por isso, sei que sua obra atual – que tem até impedido partos de mais trabalhos poéticos do bardo de boa tramontana – será reconhecida não apenas como memórias do vate erradio das caminhadas continentais, mas como um documento fundamental para que as novas gerações percebam como se moldou a história recente desta região. Testemunhada por um jovem que fez da poesia a sua flâmula de guerreiro.

    Cleto de Assis

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