domingo, 25 de setembro de 2011

Ao Domingo há música

Num tempo em que Angola, a terra quente dos horizontes em fogo, tem sido notícia, fomos registando alguns apontamentos sobre este país. Angola, que foi terra sofrida  de destinos incertos , vai-se afirmando como terra de encontro e descoberta de novos horizontes.
Destacámos, em registos anteriores,   algumas das suas especificidades poéticas e musicais que  revelam a sua singularidade. E, para que se prossiga na descoberta dessa imensa Angola , a  rubrica de Domingo é -lhe também dedicada.

Poesia Africana

Lá no horizonte
o fogo
e as silhuetas escuras dos imbondeiros
de braços erguidos
No ar o cheiro verde das palmeiras queimadas
Poesia africana
Na estrada
a fila de carregadores bailundos
gemendo sob o peso da crueira
No quarto
a mulatinha dos olhos meigos
retocando o rosto com rouge e pó de arroz
A mulher debaixo dos panos fartos remexe as ancas
Na cama
o homem insone pensando
em comprar garfos e facas para comer à mesa
No céu o reflexo
do fogo
e as silhuetas dos negros batucando
de braços erguidos
No ar a melodia quente das marimbas
Poesia africana
E na estrada os carregadores
no quarto a mulatinha
na cama o homem insone
Os braseiros consumindo
consumindo
a terra quente dos horizontes em fogo.
Agostinho Neto, in “No reino de Caliban II -  antologia panorâmica de poesia africana de expressão portuguesa"


Canção para Luanda
A pergunta no ar
no mar
na boca de todos nos:
- Luanda onde está?

Silêncio nas ruas
Silêncio nas bocas
Silêncio nos olhos

- Xê
mana Rosa peixeira
responde?

- Mano
Não pode responder
tem de vender
correr a cidade
se quer comer!

"Ola almoço, ola almoçoéé
matona calapau
ji ferrera ji ferrerééé"

- E você
mana Maria quitandeira
vendendo maboque
os seios-maboque
gritando
saltando
os pés percorrendo
caminhos vermelhos
de todos os dias?
"maboque, m'boquinha boa
dóce dócinha"

- Mano
não pode responder
o tempo é pequeno
para vender!

Zefa mulata
o corpo vendido
batom nos lábios
os brincos de lata
sorri
abrindo o seu corpo
- seu corpo-cubata!
Seu corpo vendido
viajado
de noite e de dia.
- Luanda onde está?

Mana Zefa mulata
o corpo-cubata
os brincos de lata
vai-se deitar
com quem lhe pagar
- precisa comer!

- Mano dos jornais
Luanda onde está?
As casa antigas
o barro vermelho
as nossas cantigas
trator derrubou?

Meninos das ruas
caçambulas
quigosas
brincadeiras minhas e tuas
asfalto matou?

- Manos
Rosa peixeira
quitandeira Maria
você também
Zefa mulata
dos brincos de lata
- Luanda onde está?

Sorrindo
as quindas no chão
laranjas e peixe
maboque docinho
a esperança nos olhos
a certeza nas mãos
mana Rosa peixeira
quitandeira Maria
Zefa mulata
- os panos pintados
garridos
caídos
mostraram o coração:
- Luanda está aqui!
Luandino Vieira in,”No reino de Caliban II -  antologia panorâmica de poesia africana de expressão portuguesa”

O talento e  a voz  de Waldemar Bastos , acompanhados por The London Symphony Orchestra, celebrando a musicalidade angolana  na canção "M'Biri M'Biri" do álbum "Cânticos da minha alma".
Em "Cânticos da minha alma” Waldemar Bastos confirma o ambicioso projecto de internacionalização da música angolana, iniciado com o CD “Estamos juntos”, gravado no Brasil em 1984. Parcialmente gravado com a Orquestra Sinfónica de Londres, que teve participação nas canções “Velha Chica”, “Perto e longe”, “Mbiri-mbiri” e “Aurora”, Cânticos da minha alma absorve as raízes do cancioneiro angolano, num diálogo artístico de inclusão da música erudita com os clássicos da Música Popular Angolana, reutilizando, sobretudo nas teclas e na erudição das cordas, as vertentes mais ousadas da estética musical contemporânea."

3 comentários:

  1. ... Quotidiano de uma Angola ainda presente, cada dia mais no panorama interncional africano! Agostinho Neto, poeta, médico, um dos fundadores da sua pátria independente. Estudou Medicina em Lisboa, estagiou nos Hospital de Santa Marta, sempre "incomodado" pela polícia política portuguesa (de então...), mas apoiado por Carlos George, por Ludgero Pinto Basto, e por outros seus colegas de profissão e de ideologia. Imagino (e sei que assim se passou)Agostinho Neto, percorrendo de bata branca os corredores e as enfermarias de Santa Marta, já envolvido pela literatura, por essa arte de invenção, solitária, fábrica de destinos escondidos nas rugas do tempo, por esse ritual convocatório de espíritos e segredos, de enigmas e mistérios, de ilusões e possibilidades, por esse poder mágico de comandar o pouco ou o nada que podemos decretar nas nossas vidas. No palco da política, na penumbra da literatura, na medida de infinito que a poesia nos oferece. É oportuno recordar Agostinho Neto, e igualmente Valdemar Bastos, e a música angolana na cadência ritmada e quente, melancólica, soalheira, e também inundada de cacimba, de suor e luz. Parabéns pelas escolhas! - V. P.

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  2. E recordar, igualmente, Luandino Vieira (pseudónimo literário), carácter íntegro,total, genialidade na poesia e na novela, cidadão angolano, como ele gosta de ser destacado, mas a humildade, a discrição em pessoa, personalidade marcante na Literatura Angolana de ontem e de hoje... Lembrar também que por ter sido distinguido com o maior prémio da Sociedade Portuguesa de Escritores, esta mesma sofreu na pele, na destruição, o mais violento ataque físico à sua sede em Lisboa, perpetrado pela PIDE, bem como a agressão psicológica, os ignominiosos e humilhantes interrogatórios que os membros do Júri (e não só!...)foram sujeitos nas instalações policiescas da Rua António Maria Cardoso. Uma das últimas testemunhas sobreviventes desses dias, a escritora Matilde Rosa Araújo faleceu há pouco... Para Luandino Vieira, o aplauso de hoje, revivendo aquele que quiseram ensurdecer por esses tempos! - V.P.

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  3. Lembrado numa crónica e David Ferreira na Antena 1
    https://www.rtp.pt/play/p955/e195673/david-ferreira-a-contar

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