quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Bioética da Protecção



Bioética da Protecção: ferramenta válida para enfrentar problemas morais na era da globalização
Fermin Roland Schramm

Resumo
A Bioética da Protecção é um subconjunto da bioética, constituída por ferramentas teóricas e práticas que visam entender, descrever e resolver conflitos de interesses entre quem tem os meios que o capacitam para realizar sua vida e quem não os tem. Ao priorizar os "vulnerados" que não dispõem de tais meios, pretende respeitar concretamente o princípio de justiça, já que aplica a equidade como condição sine qua non da efectivação do próprio princípio de justiça para atingir a igualdade. Este é o sentido stricto sensu da Bioética da Protecção. Mas existe um sentido lato sensu, que aplica no contexto da globalização e visa proteger todos os seres vivos contra o sofrimento e a destruição evitáveis.
O artigo tenta mostrar como o conceito de protecção se situa no âmago da própria ética e como se relaciona com os conceitos de ethos, oikos, zoé, bíos, nomos e oikonómia, implícitos nos debates actuais acerca dos efeitos negativos sobre o ambiente natural, modos de vida e a própria saúde humana. Nesse sentido, a Bioética da Protecção pretende reflectir sobre a problemática da sobrevivência do mundo vital e da qualidade de vida de seus integrantes ou hóspedes.
Excerto do Artigo
(...)Em particular, a Bioética da Protecção pode ser aplicada à situação do mundo globalizado na medida em que esse está, cada vez mais, afectado por uma sinergia "catastrófica", de causas e efeitos, visto que: vivemos, daqui em diante, na sombra trazida por catástrofes futuras que, postas em sistema, provocarão, possivelmente, o desaparecimento de nossa espécie. Por isso, a nossa responsabilidade é enorme, pois somos a única causa daquilo que se passa connosco. Mas ao persuadirmo-nos que o bem-estar (salut) do mundo está nas nossas mãos e que a humanidade deve a si mesma a obrigação de ser a sua própria salvação arriscamos precipitar cada vez mais nesta corrida para a frente, neste grande movimento pânico com que se parece, cada dia mais, a história mundial. Existem, evidentemente, condições mais específicas da assim chamada parte em desenvolvimento (ou "subdesenvolvida") do mundo, como a pobreza extrema, que pode tornar as pessoas reféns e vítimas da violação de outras liberdades necessárias para realizar os seus projectos de vida, ou seja, condições que as privam da competência (capability) para ter uma vida objectiva e subjectivamente digna. Assim, a Bioética da Protecção tem o seu foco principal nos indivíduos e populações de afectados, vulnerados e excluídos do processo de globalização em curso. Mas existem também outros problemas globais, como parecem mostrar as práticas predatórias que afectam o planeta como um todo e a humanidade como espécie, e cujos efeitos presentes mais visíveis são a poluição generalizada; as mudanças climáticas; o desflorestamento insensato; a desertificação crescente; a redução da biodiversidade; a poluição e escassez de água, criando o imaginário da escassez. A palavra de ordem da Unesco fazendo as pazes com a Terra, propõe o resgate de conceitos já bastante antigos como "desenvolvimento sustentável", "conhecimento global" e "contrato natural", cuja sinergia se encontra entre os determinantes negativos da saúde e da complexidade de seus problemas e soluções . Com outras palavras – e de acordo com um pensamento ecologicamente correcto – devemos não só pensar globalmente e agir localmente (como admoestam os militantes ecologistas), mas também saber pensar nos problemas locais e agir com sabedoria tendo em vista uma estratégia global de sobrevivência, como pretendia o oncologista e bioeticista Potter. Aqui defende-se a pertinência e legitimidade da Bioética da Protecção, entendida como uma corrente da bioética mundial, a ser levada em consideração por estar, ao mesmo tempo, adaptada às contingências latino-americanas e atenta à moralidade dos problemas globais.
Sentido e contexto da Bioética da Protecção
A expressão Bioética da Protecção contém dois conceitos: 1) "bioética", com o significado genérico de "ética da vida", e 2) "protecção", que indica uma prática consistente em dar amparo a quem necessita e que se refere à função principal do ethos, que é, justamente, a de proteger os vulnerados (e não genericamente "vulneráveis"). Mas, bioética pode ter um significado mais restrito, pois é, literalmente, a ética aplicada ao bíos, à vida humana naquilo que ela teria de específico: a vida moral, isto é, a competência em distinguir entre o bem e o mal, que constituiria – de acordo com Montalcini – o mais alto grau da evolução darwiniana. Tais conceitos estão, por um lado, intimamente ligados, mas, por outro, também distintos. Ligados porque, com a emergência, cada vez mais patente, de amplos grupos de humanos indigentes, vulnerados e excluídos da globalização, e das questões ambientais percebidas e "sentidas" em termos catastróficos, a bioética parece instada a assumir tais questões como uma de suas preocupações específicas, e a dar soluções normativas e pragmáticas para tentar resolvê-las da maneira mais razoável e justa possível. Essa função permite aproximar os conceitos de bioética e protecção, tanto do ponto de vista etimológico – visto que o sentido de proteger está contido no próprio significado da palavra ethos – quanto do ponto de vista teórico-prático que reúne, desde sua origem, as funções de dar amparo e estabelecer normas de convivência. Em suma, a bioética pode ser pensada como meio prático para proteger seres e entes vivos contra ameaças que podem prejudicar de maneira irreversível suas existências, além de ser também um meio "de segunda ordem" para entender a moralidade e seus conflitos, imanentes ao próprio viver "juntos". Mas os termos bioética e protecção devem, também, ser distintos porque, apesar dos vínculos que se possa estabelecer entre eles (e que podem eventualmente corresponder a estados de coisas – ou fenómenos – que de facto acontecem), não se pode confundi-los.
De facto, o campo semântico de cada conceito não é idêntico. Os dois conceitos não podem ser sobrepostos como equivalentes, nem serem subsumidos um ao outro, pois nem toda bioética é bioética da protecção e nem todo meio de protecção é meio da bioética: existem aspectos da vida importantes e pertinentes para a bioética (como, por exemplo, o exercício da autonomia pessoal no que se refere ao "estilo" de vida que não afecta negativamente a vida alheia) que não podem ser subsumidos a algum tipo de protecção – que negaria a própria autonomia -, assim como existem meios de protecção que podem ser questionados do ponto de vista ético (como a medicalização dos comportamentos que não prejudiquem terceiros, mas que, mesmo assim, se tornam objecto de formas de estigmatização, controle e interdição, supostamente para proteger o agente moral contra si mesmo, mas indicam, sobretudo, um mal-estar colectivo frente a outros problemas globais). Parece, portanto, indispensável evitar que a Bioética da Protecção se torne passe-partout para qualquer problema moral que surja no mundo vital, ou seja, deve-se efectivamente evitar que essa perspectiva teórica se torne espécie de "solução mágica", supostamente capaz de responder a qualquer conflito ético no âmbito das práticas humanas que afectem de maneira significativa e irreversível o mundo vital. Tais soluções geralmente não funcionam ou tendem a ser ineficazes na prática, devido à diferenciação funcional, considerada necessária à gestão das sociedades complexas actuais. Se não se faz essa delimitação do campo de aplicação da Bioética da Protecção, a mesma poderia revelar-se mais uma fonte de frustração do que autêntica ferramenta de inteligibilidade e de actuação para a possível solução de conflitos morais no âmbito das práticas que envolvem seres vivos, sejam nossos semelhantes – próximos ou longínquos – ou outros seres vivos, inclusive o ambiente natural entendido como sistema dos sistemas vivos.
A expressão Bioética da Protecção denota uma realidade complexa, tanto do ponto de vista dos problemas reais que deve enfrentar como daquele das ferramentas conceptuais e pragmáticas dos quais deve lançar mão para tentar resolver tais problemas. Ela é, de facto, expressão-problema, no duplo sentido de apontar problemas e de ser, por sua vez, problemática devido às suas tensões internas e ao risco de ser considerada espécie de "chave mestra" (passe-partout), quando de facto não é.
O que é, então, a Bioética da Protecção?
Como vimos, a palavra bioética é composta pelo prefixo bíos e a palavra ethiké, ambos de origem grega. O prefixo bíos tem – pelo menos desde Aristóteles – o significado de vida prática humana por oposição à vida meramente orgânica, indicada pela palavra zoé. Por sua vez, ética vem de ethos, tradicionalmente concebido como sinónimo de moral, ou seja, como costume (aplicado aos hábitos vigentes e aceites na polis ou sociedade) ou carácter (aplicado ao cidadão). Mas deve-se distinguir ética e moral, pois ética tem o sentido geral de discurso sobre o ethos ou – nos termos propostos por Maliandi – de tematização do ethos . Historicamente, o termo ethos parece ser mais antigo que o termo ethiké, pois o primeiro já está atestado em época homérica com o significado de guarida com função, portanto, protectora; inicialmente reservada aos animais, para defendê-los contra seus eventuais predadores e, em seguida, aplicada aos humanos com sentido semelhante, tendo, assim, uma proximidade semântica com a palavra oikos, que tem os sentidos de casa e ambiente. Os antecedentes da Bioética da Protecção parecem confundir-se com a emergência da própria ética, no universo imaginário simbólico grego antigo em que surge a Filosofia, sempre acompanhada de algum nível de reflexão, embora não necessariamente crítica. Isso pode explicar, talvez, porque muitos pensem na bioética como uma ética da vida, estabelecendo, assim, intuitivamente, um nexo semântico entre ethos (guarida) e oikos (casa), mas que pode também ser "tematizado" pelos bioeticistas criando nexos prático-teóricos. Visto que a ética tem sempre alguma forma de pretensão normativa, aproxima-se semanticamente da palavra nomos (regra, norma), de tal forma que há, também, uma proximidade semântica entre ética e oikonómia (regras que regem a casa). Sendo assim, temos um conjunto de termos e conceitos que estão relacionados e formam uma série: ethos-oikos-ethiké-oikonómia, que nada mais é que o campo semântico ao qual se refere a actual problemática ecológica e a que podemos chamar de intuição e inteligência ecoética. Entretanto, há algo a mais, pois, embora Aristóteles fizesse a distinção entre biós e zoé, entre vida prática humana e orgânica, nunca os separou totalmente. Com efeito, na Política (1278b) afirmara que se não há um excesso de dificuldade quanto ao modo de viver [biós]... os homens apegam-se à vida [zoé] [e podem unir-se e manter] a comunidade política até mesmo tendo em vista o mero facto de viver [zen]. Dessa forma, temos a série (provisoriamente) completa oikos-zoé-ethos-bíos nomos-oikonómia- ethiké, com a qual se pode indicar algo que reaparece, explicitamente, na contemporaneidade e que a Bioética da Protecção deve assumir como uma de suas tarefas específicas: reflectir sobre a problemática da sobrevivência do mundo vital e da qualidade de vida de seus integrantes, presentes e futuros. É o que o senso comum, embora talvez só intuitiva e parcialmente, indica ao dizer que a bioética é a ética da vida.
Outra variante no senso comum consiste em pensar a bioética da vida como sendo uma bioética de minha vida, ou seja, introduzindo um sentido individual (ou "individualístico") no campo. Com certa razão essa acepção é vista com desconfiança, já que, apesar de poder existir uma ética totalmente centrada no indivíduo (como em algumas vertentes neo-aristotélicas ou no foucaultiano cuidar de si), não faz plenamente sentido, a rigor, pois só existe ética, propriamente dita, se for inscrita em uma estrutura relacional, do tipo eu-outro ou eu-tu. Não se pode esquecer que o "individualismo" é uma das conquistas do humanismo ocidental – simbolizada pela cultura dos direitos humanos – e faz parte da concepção moderna de cidadania, entendida em sua dupla dimensão individual e colectiva, que em muitos casos pode entrar em conflito. De facto, o individualismo pode ser visto, hoje, como o produto histórico de uma pluralidade de lógicas em interacção: a lógica económica do management capitalista, termo que Agamben traduz e actualiza, do termo grego oikonómia que gera a sociedade de consumidores; a lógica do individualismo democrático, que outorga ao indivíduo uma série de direitos e deveres; a dinâmica jurídica dos direitos individuais; e a lógica societária referente às transformações na esfera da família e da intimidade. Assim sendo, ambas as interpretações – ética da vida e ética de minha vida – não são inteiramente estranhas à problemática bioética actual, pois essa pode referir-se tanto às preocupações autênticas e legítimas de cada humano com seu sofrimento e finitude, mortalidade e sobrevivência pessoal, como à qualidade de vida de todos os outros seres vivos, humanos ou não. Entretanto, conceber a bioética – intuitivamente – como ética da vida pode ser insuficiente quando se pensa em termos menos imediatos e "imparciais", ou seja, quando se consegue entrar na dimensão crítica, que é aquela propriamente técnica da ética aplicada à moralidade; das consequências das acções humanas sobre o mundo da vida em geral e da vida humana em particular. Ela é criticável, em especial quando se pensa na dimensão complexa do fenómeno vida, mas, também, quando se procuram os meios mais adequados para avaliar a prática, pois para isso é preciso ter ferramentas racionais, capazes de conjecturar criticamente sobre a práxis transformadora do mundo vital. Este é certamente o caso das implicações das políticas biotecnocientíficas que afectam, directa ou indirectamente – para o bem ou para o mal – os indivíduos humanos, a sociedade, a humanidade, a cultura, as instituições e a própria natureza como um todo. Para dar conta dessa problemática a Bioética da Protecção pode ser pensada de duas maneiras: em stricto sensu e lato sensu. No sentido stricto, visa dar amparo aos sujeitos e populações que não possuem competência suficiente – ou "capacitação" (capability) – para realizar os seus projectos de vida razoáveis e justos, ou seja, capazes de alcançar uma vida digna no sentido preconizado pela assim chamada cultura dos direitos humanos; como aquilo que é moralmente correcto e necessário para o convívio humano. No sentido lato, e partindo da premissa de que existem interesses colectivos e ecológicos que não podem ser subsumidos a interesses de indivíduos ou de grupos humanos particulares, a Bioética da Protecção ocupa-se das condições necessárias à própria antropogenese (ou talvez a outra antropogenese), ou seja, da sobrevivência da espécie humana (ainda que essa possa ser transformada graças à biotecnociência, inclusive intervindo no próprio processo da evolução).
Resumindo, a Bioética da Protecção pode ser entendida como a parte da ética aplicada constituída por ferramentas teóricas e práticas que visam entender, descrever e resolver conflitos de interesses entre quem tem os meios que o "capacitam" (ou tornam competente) para realizar sua vida e quem, ao contrário, não os tem. Para isso, estabelecer a prioridade léxica de quem não dispõe de tais meios é primordial para respeitar concretamente o princípio de justiça, já que aplicar o valor da equidade como meio para atingir a igualdade é condição sine qua non da efectivação do próprio princípio de justiça. Os interesses conflituantes redundam em outro tipo de conflitos – chamados conflitos morais – e que só podem ser resolvidos dando suporte (protegendo) aos afectados para que possam desenvolver as suas potencialidades e deixem de precisar desta protecção ou – como se diz – de "passar necessidades". De facto, os grupos particularmente vulnerados, ou literalmente vulnerados (ou afectados), não são capazes, por alguma razão independente de suas vontades, de se defenderem sozinhos pelas condições desfavoráveis em que vivem ou devido ao abandono das instituições vigentes que não lhes oferecem o suporte necessário para enfrentar a sua condição de afectados e tentar sair dela. Nesse sentido, a Bioética da Protecção não se aplica, via de regra, aos indivíduos e às populações que – embora afectados negativamente ou susceptíveis de serem concretamente afectados – conseguem enfrentar essa condição existencial com seus próprios meios ou com os meios oferecidos pelas instituições vigentes e actuantes. Caso contrário, a protecção – considerada condição necessária para que a pessoa vulnerada saia de sua condição de vulneração e desenvolva a sua competência para ter uma vida pelo menos decente – poderia ser confundida, pertinentemente, com "paternalismo", porque proteger visa dar o suporte necessário para que o próprio indivíduo potencialize as suas capacidades e possa fazer as suas escolhas de forma competente, ao passo que o paternalismo pode, em nome do (suposto) bem-estar do outro, infantilizá-lo e sufocá-lo, impedindo sua capacitação para viver uma vida decente e livre, tornando-o, assim, sempre dependente das escolhas alheias. Em suma, proteger significa dar as condições de vida que cada qual julgue necessárias para capacitá-lo na tomada de suas próprias decisões enquanto ser racional e razoável. Se não for assim, a Bioética da Protecção contraditaria um dos valores básicos das sociedades seculares e democráticas modernas, que é o direito ao exercício da autonomia pessoal e, em alguns casos, o dever de exercê-la, sendo, portanto, responsável por seus actos. Com outras palavras, a Bioética da Protecção pode ser vista como a ferramenta que só se ocupa do "negativo" implicado pela práxis humana, tentando detectá-lo, examiná-lo e avaliá-lo de acordo com algum parâmetro moral que possa ser compartilhado por agentes racionais e razoáveis, os quais estejam dispostos a negociar seus pontos de vista respectivos; ou que compartilhem alguma cosmovisão (Weltanschauung) como no caso das assim chamadas comunidades morais. Mas existe também um objecto da bioética referente aos efeitos positivos de nossas práticas que poderia, eventualmente, ser chamada uma bioética "do bem".Nesse caso, parece intuitivamente evidente que os afectados não precisam de nenhuma protecção, por não serem desprotegidos contra o negativo, isto é, necessitados. Ademais, a Bioética da Protecção, stricto sensu não se aplica tampouco a quem – embora afectado negativamente ou susceptível de sê-lo – consegue fazer frente ao mal/negativo com seus próprios meios ou graças aos meios oferecidos pelas instituições vigentes e actuantes. Caso contrário redundaria, novamente, em paternalismo, desta vez mais preocupante, pois não visaria evitar um dano, mas, substancialmente, impor um bem a terceiros. (...)
Considerações finais
Sobre a Bioética da Protecção existe, evidentemente, uma série de questões críticas pertinentes. Uma primeira crítica que surge diz respeito à relação possível entre proteger alguém e a competência de cada um em se proteger a si mesmo, que é nada mais que o problema das liberdades e do exercício da autonomia individual numa comunidade ou sociedade determinada, regida por normas de convivência voltadas a evitar a hobbesiana guerra de todos contra todos. A questão é ao mesmo tempo teórica e prática. Teórica porque diz respeito à relação lógica que podemos estabelecer entre protecção e autonomia e à ponderação necessária quando tais categorias entram em conflito, visto que os dois conceitos parecem ser mutuamente excludentes. Prática porque se refere ao campo de sua aplicação; em particular, à pergunta se a Bioética da Protecção deve ser reservada aos casos evidentes de seres concretamente afectados (vulnerados) ou se pode ser aplicada também a seres susceptíveis e até aos seres genericamente vulneráveis, que somos todos pelo simples facto de sermos mortais e podermos ser atingidos. Historicamente, um princípio moral de protecção está implícito nas obrigações do Estado, que deve proteger seus cidadãos contra calamidades, guerras etc., chamado também de Estado mínimo. Entretanto, poderia muito bem ser chamado de Estado protector, pois parece intuitivamente compreensível que todos os cidadãos não se conseguem proteger sozinhos contra tudo e todos, podendo tornar-se susceptíveis e até vulnerados em determinadas circunstâncias. Mas, neste caso, devemos distinguir a mera vulnerabilidade – condição ontológica de qualquer ser vivo e, portanto, característica universal que não pode ser protegida – da susceptibilidade ou vulnerabilidade secundária (por oposição à vulnerabilidade primária ou vulnerabilidade em geral). Ademais, os susceptíveis podem tornar-se vulnerados, ou seja, directamente afectados, estando na condição existencial de não poderem exercer suas potencialidades (capabilities) para ter uma vida digna e de qualidade. Portanto, dever-se-ia distinguir graus de protecção de acordo com a condição existencial de vulnerabilidade, susceptibilidade e vulneração, o que pode ser objecto de discussões infindáveis sobre como quantificar e qualificar tais estados existenciais. Outra questão pertinente é saber quem são de facto os susceptíveis ou vulnerados, pois, como aponta Sen, ainda predomina a definição de uma pessoa a partir de seu pertencimento geográfico ou cultura a que está adstrita. Nesse caso, o risco de estigmatização e os riscos de paternalismo e autoritarismo são grandes e, sobretudo, há a possibilidade de desconsiderar indevidamente as diferenças, o multiculturalismo e a pluralidade moral das sociedades complexas contemporâneas. Em suma, surge a questão de como fazer para focalizar os indivíduos vulnerados e lhes fornecer a protecção necessária para desenvolver suas potencialidades e sair da condição de vulneração e, ao mesmo tempo, respeitar a diversidade de culturas, as visões de mundo, hábitos e moralidades diferentes e que fazem parte da vida em comum, complexificando- a e enriquecendo-a, como bem mostram países como o Brasil, graças à sua prática de antropofagia cultural?
Concluindo, a Bioética da Protecção, assim como a entendemos aqui, parece levantar mais problemas do que resolver. Pode ser, mas ao tentar levantar tais problemas e abordá-los de forma crítica e imparcial, tentando superar o olhar meramente antropocêntrico, indica as ferramentas para pensar a moralidade do agir humano de forma tal a responder à exigência moral humana de evitar sua autodestruição, inclusive nos protegendo contra nós mesmos. Em suma, ao se descentrar criticamente com relação ao antropocentrismo, mas sem recalcá-lo desconsideramente, a bioética aponta as condições para repensar outra antropogenese situada correctamente no paradigma oikos-zoé-ethos-bíos-nomos-polis-oikonómia- ethiké. Paradigma que é – ou pretende ser – simultaneamente local e global, mas sobretudo, evolutivo no sentido de aprimorar a "segunda natureza" humana, que inclui certamente a competência moral do indivíduo, cidadão de seus lugares e do mundo.

Artigo publicado na Revista Bioética , vol.16 de 2008

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