quinta-feira, 15 de agosto de 2024

O silêncio


O silêncio
Quando a ternura 
parece já do seu ofício fatigada,

e o sono , a mais incerta barca,
inda demora,

quando azuis irrompem 
os teus olhos

e procuram
nos meus navegação segura,

é que eu falo das palavras
desamparadas e desertas,

pelo silêncio fascinadas.
Eugénio de Andrade,
Trinta Poemas


Havasi , em Silence - The Concert Movie, composto e interpretado por HAVASI

  

HAVASI, em Out Of The Woods (SILENCE - The Concert Movie)

terça-feira, 13 de agosto de 2024

Visitar Paracas e Islas Ballescas no Perú, com Eugénio Lisboa

 

Regressamos às páginas de Diário de Eugénio Lisboa para , com ele, visitar  a Reserva Natural de Paracas e a Ilha Ballescas, no Perú.

"28.8.2005. Paracas – Partimos de Lima às 7.30 da manhã e chegámos a esta reserva natural  às 11.00.
(Antes de mais nada, registar aqui o caso singular da rapariga australiana que veio passar férias à Inglaterra. Estava no autocarro no qual rebentou uma bomba: escapou e resolveu ir acabar as férias aos Estados Unidos. Mudando de ideias, veio passá-las primeiro ao Peru. E estava entre os passageiros que encontraram aqui a morte, quando o avião em que viajavam se precipitou. Encontro em Samarra?)
Saímos perto do meio dia, para uma excursão de quatro horas ao longo da  reserva natural: deserto lunar, praias cinzentas e varridas por uma luz estranha – como se o sol estivesse morto ou irónico... – vento forte, gaivotas em terra. Num observatório de flamingos, pensámos ter visto quatro em voo. Museu arqueológico, almoço na baía de Lagunillas – de novo uma beleza estranha, um sol surrealista, quase inquietante, no seu retraimento, gaivotas em voo planado, rochedos cobertos de guano – e partida pelo deserto lunar até ao promontório terminando na “catedral”, formação rochosa a que a erosão do vento e do mar deu, ao fim de 34 milhões de anos, a forma estranha de uma catedral emergindo do mar.
Por todo o lado, aquele chão branco – às vezes amarelado – que já outrora esteve coberto pelo mar: rocha laminada, que o vento, no seu vigor contínuo, obstinado, tem trabalhado, dando-lhe aquela elegância desafiadora. Das mais estranhas paisagens que temos visitado.Deserto habitado apenas por pequenas criaturas com que o homem não entra em diálogo amistoso: escorpiões, serpentes, moscas...
 
29.8.2005.Paracas. Hoje, visita à ilha de Ballescas – uma espécie de mini-Galápagos ou, se preferirem, um antegosto de Galápagos. No percurso, por barco, passámos por uma das ilhas do arquipélago, que nos ofereceu um espectáculo surpreendente: esculpido no dorso deserto da ilha, pela acção do homem e durando há já 2000 anos, um gigantesco candelabro, visível a grande distância. Modo de identificação da ilha? Sinal simbólico? Oferta religiosa?
Ballescas: um prodígio do que o lento trabalho da erosão produz numa ilha rochosa no meio do oceano: um indescritível teor de arcos, grutas e cavernas dando-nos perspectivas estonteantes e quase vertiginosas de beleza natural, a um tempo inocente e provocante. Pinguins empoleirados na rocha, empertigados de pompa, no seu vestuário de cerimónia. Leões marinhos de andar desengonçado mas trepadoramente eficaz.
E focas, às centenas, mergulhando e cercando os barcos, refilando sonoramente connosco. Os optimistas dirão que eram palavras de acolhimento. Os cínicos que eram palavras com que nos mandavam ir à fava. Uma delas, sobretudo, destacava-se na virulência decibélica do discurso – quase apostaria que a tradução correcta do seu falar daria qualquer coisa como isto: “Futsek!”, como se usava dizer nos meus sítios africanos (Futsek!: vão-se foder, ponham-se na alheta, cavem daqui para fora, pirem-se, rua! Vão à berdamerda, etc. Curiosa a variedade de expressões que o homem congeminou para mandar o seu semelhante dar uma volta. Dir-se-ia que o seu modo de estar no mundo é não estar com os outros: enxotá-los, afastá-los, não conviver com eles.)
E pássaros: gaivotas, patos e outras variedades imensas – aos milhares, que enchem as ilhas de guano branco e do cheiro intenso que daqui deriva. Dir-se-ia que as focas e os leões marinhos (e os pinguins) já se habituaram ao cheiro – já não dão por nada, faz parte do habitat. Os pássaros, pelo seu lado, se calhar, até gostam do odor que os seus excrementos exalam – sabido como é incomensurável o narcisismo das espécies vivas (as crianças, enquanto as não inibem os protocolos dos adultos, brincam, encantadas e cheias de curiosidade, com os próprios excrementos.)
Olhando para aqueles milhares de sentinelas aladas, postadas em riste no topo da ilha, senti-me no filme do Hitchcock: The Birds. Se lhes desse alguma, pensei com os meus botões, e se, de repente, nos atacassem, das duas uma: ou saltávamos para a água e morríamos de frio, ou se precipitavam sobre nós e nos destruíam à bicada. Não tínhamos safa.
Com pensamentos destes e outros, fomos dando a volta à ilha maravilhosa e povoada por seres com perspectivas e opiniões diferentes das nossas. Os pinguins- poucos – olhavam-nos com altivez ou, talvez simplesmente, indiferença.
No regresso, fomos a uma praia aqui ao lado comprar bugigangas e almoçar: A A, com a sua curiosidade alimentícia, atirou-se a um peixe cru. Eu preferi uma portentosa corvina. Visitámos, depois do almoço, um pequeno museu do hotel, com cerâmicas de Paracas, cerâmicas nazcas e cerâmicas epigonais. Comprámos duas coisas para as macnetas e regressámos a Lima."
Eugénio Lisboa , em "O Perú Revisitado - Páginas de Diário"

domingo, 11 de agosto de 2024

Ao Domingo Há Música

Despertar
É um pássaro, é uma rosa,
é o mar que me acorda?
Pássaro ou rosa ou mar,
tudo é ardor , tudo é amor.
Acordar é ser rosa na rosa, 
canto na ave , água no mar.
Eugénio de Andrade, Trinta Poemas

Um poema que convida a um mundo diferente daquele tão convulsionado deste quente Agosto,  por  belicistas desavenças e tiranias intoleráveis, quando um  despertar harmonioso é a aspiração mais primária de qualquer ser humano. 
Que seja a música e a exortação do poeta a criá-lo neste hoje, de aqui e agora.

Lang Lang, em Concert de Paris 2024 : Concerto para Piano N°2 I. Moderato , de Serguei Rachmaninov, acompanhado pela Orchestre national de France, sob a direcção do Maestro Cristian Macelaru.

sexta-feira, 9 de agosto de 2024

Dos Diários de Eugénio Lisboa

Eugénio Lisboa, (Lourenço Marques ,25.05.1930- Lisboa, 09.04.2024)

Entre a vasta obra de Eugénio Lisboa, estão os diários que não deixou de escrever até à sua morte , em 9 de Abril deste malogrado ano de 2024. Diários a que deu o título "Aperto Libro " e dos quais estão, apenas, publicados  dois volumes , "Aperto Libro  , Páginas de Diário I - 1977-1990" e  "Aperto Libro II, Páginas de Diário II - 1991- 1994". Por se  tratar de uma obra riquíssima , um precioso documento  do último quartel de século XX e do primeiro do século XXI , torna-se urgente e imprescindível   a publicação integral da totalidade desta  obra diarística . Literatura, Pintura , Música , Teatro,  Arte e as grandes ideias definidoras desse tempo, tudo perpassa pela pena de Eugénio Lisboa,  num registo fecundo , de extraordinária lucidez,  de sóbria sensibilidade , de  grande rigor e clareza.  
Retirámos, do primeiro volume, alguns  verbetes que  são testemunhos eloquentes da diversidade  que  compõe a obra.
"Londres, 11.08.1989 – Ultimamente, tem-se-me tornado quase obsessiva a evidência de que estou a viver a última etapa da minha vida. Começo a olhar para as estantes e a notar, com melancolia, as obras que ainda não li e já não vou ter tempo de ler. As ideias que não vou conhecer e outras que não tive tempo de aprofundar. A música que já não vou ouvir e outra que não voltarei a ouvir. Dito assim, parece que tudo isto são apenas palavras. Mas, dentro de mim, tornou-se uma ferida profunda e muito sentida. É a consciência, ao vivo e a quente, de tudo quanto desperdicei. A felicidade que muitas vezes não tive e aquela que aos outros não dei. Ao lado da outra que tive, sem muito bem a saber retribuir. Percebo que não há muito de redentor no envelhecer. É uma época de balanços que nos dizem, quase sempre, que o saldo é dolorosamente negativo.
Dito o que, continuo a comprar livros e discos e objectos. O que diz muito sobre a lógica de ferro que rege a nossa vida… 
Acabo de ler, no Guardian, a lista de livros cuja publicação se anuncia para o Outono. Alguém cita o que disse Anthony Burgess, a propósito do 1º volume da biografia de Shaw, por Michael Holroyd: “Terminaremos o livro ficando a saber que vale a pena continuar a viver para podermos vir a ler os volumes 2 e 3.” Eis uma nova e bonita fórmula para nos prender à vida: ficarmos à espera da chegada de um bom e apetecido livro. Por que não?

Londres, 27.09.1989 – No regresso a Londres, vim encontrar, enviado pelo embaixador português no Maputo (Francisco Knopfli), um artigo sobre o que significa “ser moçambicano”. Trata-se de um comentário, em tom amistoso, à minha afirmação, feita numa entrevista,de que o melhor critério de avaliação de “moçambicanidade” ainda é por via do afecto (seria moçambicano quem lá viveu e ficou a amar a terra). O autor do artigo – Tomé Sengane – diz não estar inteiramente de acordo. Só é moçambicano quem conhece o país ou quem conheceu o cheiro da pólvora. Respondo-lhe que amar é conhecer e que grandes escritores em todo o mundo foram cidadãos dos seus países, mesmo sem conhecerem o cheiro da pólvora (de qualquer modo, só um número muito diminuto de cidadãos conhece o cheiro da pólvora…) Por outro lado, o autor do artigo, contrariando-me, afirmava que esta polémica era importante por durar havia muito tempo e nela estarem envolvidas pessoas de valor. Respondi-lhe que o mesmo se passou com a polémica em torno do sexo dos anjos: muita gente de valor se deixou enredar nela, durante muito tempo… Não sei se o meu interlocutor terá o sentido de humor suficiente para se não zangar comigo…

Londres, 05.10.1989 – Anteontem e ontem, com o Vasco Graça Moura, que veio a Londres fazer uma palestra sobre Camões, a meu pedido, para a Anglo-Portuguese Society. O seu inglês escrito é razoável e o falado aceitável (com alguns erros de pronúncia de quem não está habituado a falar a língua). A palestra foi sobretudo sobre os seus próprios trabalhos dedicados a Camões. As suas considerações sobre o número de ouro e a influência deste na estrutura do poema e seu relacionamento com a biografia pareceram interessar bastante o público. Curiosamente, o público nem era o que normalmente se vê naquelas sessões um pouco poeirentas. Era uma gente culta e interessada na história cultural portuguesa. A sessão foi agradável e instrutiva.
Falámos, em conversa, da sua (e da minha) recente visita a Moçambique. O Luis Bernardo Honwana teria feito esta espantosa declaração: “Os descobrimentos portugueses foram um facto negativo.” Mas, então, todo o evoluir histórico e científico foi um facto negativo. A pré-história seria a idade de ouro da história da humanidade.
O Vasco Graça Moura continua, é claro. A ser vítima da sua excepcional capacidade de fazer. Os que nada fazem não lhe perdoam nem a sua criatividade nem, sobretudo, a sua energia. Ao apresentá-lo na Anglo-Portuguese Society, disse dele o seguinte: “As an exceptinal doer, he is the obvious shooting target of the non doers.” O que resume, creio eu, a verdadeira situação do Vasco Graça Moura, no mesquinho “milieu” português. Um dos “métodos” usados para o embaraçarem é, de vez em quando, atribuírem-lhe o desejo de obter este ou aquele posto, assim criando uma tensão subtil entre ele e o detentor vigente desse posto.

Londres, 07.11.1989 – Acabei a leitura das Memórias Não Escritas, de Katia Mann, viúva de Thomas Mann (agora já falecida). Livro interessante e vivo. Conta, do “mágico” (Thomas Mann), coisas curiosas. Por exemplo: Mann documentava-se prodigiosamente para escrever os seus livros: estudou medicina a fundo, para escrever A Montanha Mágica, música para o Doutor Fausto, egiptologia e história das religiões, para a tetralogia José e Seus Irmãos. Porém, uma vez utilizados os conhecimentos adquiridos e concluído o livro, esquecia tudo completamente – nada ficava a atulhar-lhe a memória. Os conhecimentos tinham servido a sua função – podiam pois desatravancar a loja…
Katia Mann conta uma história prodigiosa acerca de Arnold Schönberg. O grande compositor tinha um pavor enorme dos dias treze, por estar convencido de que morreria num dia treze. Tinha 76 anos. No dia 13 de Julho de 1951, esteve inquieto o tempo todo, como era costume nessa data temida, olhando para o relógio da sala, a ver chegar, com angústia, a meia noite.Quando essa hora chegou, já aliviado, subiu ao quarto de cama, tendo, antes, pedido à mulher que lhe levasse para cima, como era costume, uma chávena de Bovril. A mulher foi à cozinha preparar a bebida e, quando entrou no quarto, deu com o marido caído no chão, morto. O relógio do quarto indicava que ainda não era meia noite. O da sala estava adiantado…

Encontros com a morte. Henry James, no momento de entregar o fantasma: “So this is it at last, the distinguished thing.”
Prefiro Ibsen que, à enfermeira que lhe dizia achá-lo muito melhor, respondeu: “Muito pelo contrário!” E morreu.
O mais bizarro “encontro” com a morte foi talvez este: o romancista inglês Thomas Hardy tinha planeado que, antes de lhe cremarem o corpo, lhe extraíssem o coração e o enterrassem em Stinsford, sua terra natal. Assim o fizeram, isto é, extraíram-lhe o venerável órgão, conforme pedido. Porém, enquanto este se encontrava em cima de uma mesa, na cozinha, o gato roubou-o e desapareceu com ele num bosque vizinho."
Eugénio Lisboa, in Aperto Libro, Páginas de Diário I - 1977-1990, Editora Opera Omnia, Novembro de 2018, pp.143, 160, 161, 164, 165,170,171.

quarta-feira, 7 de agosto de 2024

Interlúdio musical

Gautier Capuçon interpreta  "Over the Rainbow", de "The Wizard of Oz" (Harold Arlen) , rodeado pela  natural e  histórica beleza  do  Mont Saint-Michel, na Normandia, França.

terça-feira, 6 de agosto de 2024

A clareza da escrita

 

A boa fé dos filósofos
por Eugénio Lisboa
A clareza é a boa fé dos filósofos.
                   Vauvenargues
 
“A clareza de escrita não é um dos valores mais prezados pela classe intelectual e não o é, em especial, por muitos universitários que refugiam a sua ignorância sob o véu de um estilo opaco, obscuro e contrafeito. Coisa de má fé, se tem razão o amável filósofo Vauvenargues, citado em epígrafe. Dizer coisas importantes com grande simplicidade, como fazem filósofos (Russell) ou cientistas (Jean Rostand, admirável pensador aforista, na linha dos grandes do passado), parece coisa de simplórios, aos convicto cultores do opaco.
As dissertações académicas costumam ter horror à clareza, como se esta não estivesse à altura da majestade do empreendimento: como se a clareza e a simplicidade da formulação fossem coisa de saloios. Nunca me esquecerei de um episódio passado com uma ex-aluna minha, da Universidade de Lourenço Marques. Já a viver em Lisboa, resolveu doutorar-se e, um dia, pediu-me que lesse e comentasse parte da dissertação que já tinha escrito. A certa altura, encrespei-me com certa passagem muito tortuosa e obscura e observei-lhe: “O que quer V. dizer com isto?” Ela imediatamente o esclareceu, o que me levou a perguntar-lhe: “Se V. o sabia dizer assim, por que o não disse?” ao que respondeu, meio enxofrada: “Também V. não tolera o mais pequeno teor de opacidade…” Respondi-lhe que a opacidade não era, em si, um valor. E que só se admitia, quando não houvesse alternativa. E o não haver alternativa tinha muito que se lhe dissesse. Wittgenstein era de opinião que, se um pensamento não conseguia ser exprimido de forma clara e simples, era por não estar ainda suficientemente amadurecido. O grande físico dinamarquês, Niels Bohr, era acutilantemente categórico: “Verdade e clareza são complementares.”
A clareza tem tido os seus campeões, desde Aristóteles (“A primeira qualidade do estilo é a clareza”), passando por Galileu (“Falar obscuramente, qualquer um sabe, com clareza, raríssimos”), por Leibnitz (“No mundo do espírito, busque clareza, no mundo material, busque utilidade”), por Voltaire, que frequentemente a exaltou e admiravelmente a praticou, por Anattole France, herdeiro refinado de Voltaire (“Um bom estilo, afinal, é como um raio de luz que entra pela minha janela no momento em que escrevo, e que deve a sua clareza à união das sete cores das quais é composto. O estilo simples é parecido com a claridade branca”), Jean Cocteau (“Escrever é batermo-nos com tinta, para nos fazermos entender”), até Camus (“Os que escrevem com clareza têm leitores, os que escrevem de maneira obscura têm comentadores”).
Pela parte que me toca, a clareza sempre me fascinou, desde a leitura de bons mestres que li na minha adolescência: Voltaire, Stendhal, Montaigne, António Vieira, António Sérgio, José Régio, entre outros. E passei a desconfiar de grossa batota, nos cultores do opaco e do obscuro. Algo me parecia torto, no espírito daqueles que escreviam torto. E nunca me arrependi. Tentei sempre ser claro com os meus alunos e com os meus leitores. Grandes cientistas são frequentemente belos escritores. Não perco um livro de ensaios de Peter Medawar, o fundador da imunologia, tal a elegância e claridade das suas formulações.
Jean Rostand, o investigador das rãs, é um admirável cultor da claridade da linguagem e um dos grandes pensadores aforistas da língua francesa. Dito isto, tenho más notícias para dar. A minha experiência com a publicação de textos neste blog (blog DRN)1, tem-me tornado cada vez mais céptico, acerca dos benefícios ou vantagens da clareza. Procuro ser o mais claro possível, naquilo que escrevo. Mas noventa por cento dos meus comentadores vêem preto onde está branco e branco onde está preto. A luz que o texto emite não os afecta: não conseguem ler o que está no texto, porque olham apenas com os óculos da ignorância ou do preconceito ou mesmo da má fé. Para eles, a clareza é um desperdício. Se eu disser que Tolstoi foi um enorme escritor, mas um ser humano complexo e com grandes defeitos (coisa que qualquer biografia documenta e sobre a qual há milhares de páginas de comentário publicadas), acusam-me de estar a faltar à verdade ou de ser contra a Rússia…
Não há dúvida, para estes zarolhos, o branco é preto. Eis um debate interessante: quais os poderes da clareza, num universo em que a deseducação em massa impera? É isto que sai das escolas: a incapacidade de ler direitinho? A ignorância contente e atrevida? A má fé como instrumento de trabalho? A total falta de respeito pelo saber de quem sabe? A lisinha falta de civismo? Foi para isto que quisemos uma democracia esclarecida? Vale a pena meditar em tudo isto e dou-o, com humildade, aos pais dos alunos, aos professores e ao próximo ministro da educação.”
Eugénio Lisboa, 03.03.2024
1 - ( nota de LP)

segunda-feira, 5 de agosto de 2024

Viajar pela Índia

A Índia , em  10 minutos,  pelo Scenic Film (4k).

Uma ideia da Índia 
por Alberto Moravia
"A paisagem indiana não tem volumes, mesmo quando é montanhosa e acidentada; e as suas cores estão quase sempre , envoltas numa luminosidade indirecta , remota, flutuante. Sob céus imersos , esta paisagem parece mais uma aparição do que uma realidade. Aparição misteriosa, melancólica, poética, que um vento mais forte poderia ir levando pouco a pouco, juntamente com as nuvens. Na Índia , esta sensação de miragem também abrange as obras dos homens, quando elas são belas e se harmonizam com o ambiente natural. Não há nada mais irreal do que certas cidadezinhas fortificadas que surgem inesperadamente das irreais planícies indianas. Com os seus castelos ameados, vermelhos ou castanhos, cujos contrafortes e torres se empoleiram sobre acrópoles rupestres e leoninas, as suas casas densamente aglomeradas em torno das acrópoles e rodeadas por cinturas de muralhas intactas que serpenteiam para cima e para baixo, por montes e barrancos, estas cidades que não estão junto à estrada , que não temos tempo de visitar e nas quais provavelmente não encontraríamos senão ruínas, pobreza, vazio e silêncio, ficam na memória mais como aparições fascinantes de origem e significado incertos do que como aspectos concretos de uma civilização diferente. Quem as fundou e construiu? O que aconteceu lá? Quando foram prósperas e poderosas e quando declinaram? Na ausência de história , ou melhor do sentido de história na Índia ( os indianos têm o sentido dos ciclos cósmicos , não dos ciclos históricos), todas estas perguntas parecem fúteis; e com elas se confirma o carácter de truque mágico que o pensamento religioso da Índia atribui ao mundo dos homens, com as suas glórias e os seus reveses." 
Alberto Moravia, in Uma ideia da Índia, Edições Tinta-da-China, 2008, pp.95,96

domingo, 4 de agosto de 2024

Ao Domingo Há Música


No teu poema
Existe um verso em branco e sem medida
Um corpo que respira, um céu aberto
Janela debruçada para a vida

No teu poema
Existe a dor calada lá no fundo
O passo da coragem em casa escura
E, aberta, uma varanda para o mundo


Quando as vozes se juntam para celebrar a música, a   harmonia expande-se  em deleite de quem a escuta .
Há vozes portuguesas  que  souberam vestir de novas interpretações, algumas das grandes e célebres canções.

Sara Correia e Sónia Tavares , em  Gaivota. Fado celebrizado por Amália Rodrigues, com  poema de Alexandre O'Neil e Música de Alain Oulman.
 
Sara Correia e Fernando Daniel , em  No Teu Poema, fado de Carlos do Carmo, com música e poema de José Luís Tinoco.
  
António Zambujo e Sónia Tavares , em  Silêncio E Tanta Gente , canção de Maria Guinot.
   

sábado, 3 de agosto de 2024

Uma dilacerante ambivalência

J.M. Coetzee
J.M. Coetzee – Uma dilacerante ambivalência
por Eugénio Lisboa
"O Prémio Nobel não foi nunca, não é e não será nunca uma garantia de imortalidade: porque tem premiado um incontável número de mediocridades ou, em qualquer dos casos, de autores que hoje ninguém lê, nem sabe quem sejam (Sully Prudhomme, Frédéric Mistral, José Echegaray, Rudolf Eucken, F.E. Sillanpää, Verner V. Heidenstam, etc. etc.) e tem, por outro lado, deixado de fora inúmeros autores de indiscutível grandeza e assegurada perenidade (Tolstoi, Ibsen, Strindberg, Henry James, Valéry, Proust, Robert Frost, Mark Twain, Virginia Woolf, Graham Greene, Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade, Claudel, António Machado, Junichiro Tanizaki, Karen Blixen, etc. etc.). Mas o Prémio Nobel, indiscutivelmente, seduz: personalidades rebeldes e dificilmente institucionalizáveis, como André Gide ou Roger Martin du Gard, resistiram a eméritas honras, do seu próprio país, mas cederam por fim ao fascínio do Nobel. Porém Shaw, do lado dos intratáveis, aceitou o diploma mas recusou escarninhamente o dinheiro. Tolstoi mandou recado forte, em 1906, ano em que o prémio lhe iria, quase certamente, ser atribuído, avisando que seria melhor  não o fazerem: não queria fitas mas, se a Academia insistisse, teria de recusar. Montherlant exigiu de quantos pretenderam candidatá-lo (e não foram poucos), que o não fizessem: a gestão quase mundana – e quase inútil – do período pós-prémio, iria tirar-lhe tempo e energia melhor consagrados ao acabamento da sua obra monumental.   Sartre – num dos seus poucos momentos altos – recusou mesmo o diploma e o dinheiro. E não mandou avisos: quis, de verdade, bater com a porta. E quando perguntaram a Valéry – a quem nunca tinham achado que valesse a pena dar o prémio – o que achava ele se o galardão fosse dado a Gabriela Mistral, mostrou todo o seu desprezo pelos académicos suecos, respondendo: por que não, conhecia a senhora, era boa pessoa e simpática... Seja como for, o Prémio, às vezes, acerta. E este ano de 2003, a Academia Sueca, ao premiar o génio dilacerantemente ambíguo, profundo e secreto de J.M. Coetzee, acertou em cheio: não lhe deu prestígio, pendurou-se nele. Coetzee vale mais do que o Prémio. Todos os grandes – mesmo quando o não sabem – valem mais do que qualquer prémio.
O autor de Disgrace, a quem Rian Malan classificou de “um génio velado” e retratou como um ser “intensamente privado”, de escrita “velada e oblíqua”, é, por outro lado, um espantoso criador de desassossegos. É um daqueles escritores que incomoda todos os regimes porque a sua arte intensa, secreta e profunda busca sondar, sem preconceitos, a verdade da condição humana e não dizer coisas blandiciosas e politicamente correctas, que satisfaçam esta ou aquela ideologia (em poder ou em contrapoder). O autor de Waiting for the Barbarians (1980) incomodou mortalmente os ideólogos do apartheid (termo, que aliás, nunca precisou de usar, na sua escrita elíptica mas nem por isso menos afrontosa) e o autor de Disgrace (1999) não irritou menos o actual regime sul africano: uma semana antes do Nobel, um importante jornal em Johanesburg desancava o recatado autor, a viver actualmente na Austrália... Tinha razão Soljenitzine: os governos nunca suportam os grandes escritores – preferem sempre os medíocres. Claro que o anúncio do Nobel levou o Presidente ao faz-de-conta e aos orgasmos do protocolo: if you cannot beat them, join them, diz a sabedoria popular anglo-saxónica.
Coetzee é também, além do ficcionista que muitos conhecem – alguns dos seus importantes romances estão traduzidos em português – um ensaísta notável. É de 2001 o seu belo livro Stranger Shores, que inclui textos assinaláveis como “What is a Classic? A lecture”, “Dostoevsky: the Miraculous Years”, “Translating Kafka”, “The Essays of Joseph Brodsky”, “Gordimer and Turguenev”, “South African Liberals: Alan Paton, Helen Suzman”, entre muitos outros. É precisamente no ensaio interessantíssimo sobre Nadine Gordimer e Ivan Turguenev que se pode ler, nas entrelinhas, não pouco de revelador sobre o próprio génio de Coetzee: as suas perplexidades, o seu profundo senso de indignação e ultraje, mas também a sua repugnância instintiva em “reduzir”  a complexidade da condição humana e dos conflitos sociais a uma fórmula de radicalismo monovalente. Falando de Gordimer e do grande romancista russo do século XIX e do facto de terem ambos querido reconciliar a liberdade de exprimirem “uma visão profunda, intensa e privada” ou seja, “a verdade tal como a viam”, com um certo reconhecimento dos “imperativos políticos” da sua geração, Coetzee estava a dar voz à agonia civilizada do seu torturado percurso. É que o autor de Waiting for the Barbarians, se tinha todas as coragens políticas – tal como Turguenev - . não tinha menos o desejo de ser profundamente leal à visão implacável de uma condição humana que o fim do apartheid não fez necessariamente ascender a um estatuto de maior nobreza. Do mesmo Turguenev que foi, na Rússia do século XIX, dos primeiros a emancipar os seus servos, diz Coetzee, no aludido ensaio: “Em consequência de apresentar o seu herói, Bazarov [do romance Pais e Filhos], na sua complexidade demasiado humana, Turguenev teve que fazer face à ira e desprezo dos jovens radicais russos, que até aí o tinham considerado o seu campeão mas agora se sentiam por ele esfaqueados nas costas.” Acrescentando: “Embora desapontado pela resposta deles, Turguenev não arredou pé. Como artista, dizia ele, tinha que perseguir a verdade. «No caso em questão, a vida, de acordo com as minhas ideias, acontecia ser assim, e aquilo que eu acima de tudo pretendia era ser sincero e verdadeiro». E algures: «Só os que não são capazes de fazer melhor se submetem a um determinado tema ou levam a preceito um programa»”.Turguenev pertencia a uma geração que, oprimida pela censura brutal do czar, “infectava” de ideologia frenética o tecido profundo da criação literária. Para eles, o olímpico respeito do autor de Pais e Filhos para com o complexo plurifacetado dos seus personagens traduzia-se por uma traição à causa. Numa África do Sul, equivalentemente acossada pela boçalidade afrontosa do apartheid, era-se também tentado a contaminar de ideologia aquecida ao rubro a arte que se ia fazendo: não alinhar vistosamente com os “engagés”, a pretexto de subtilezas de sondagem ontológica seria claramente de rejeitar. Enquanto as fábulas sofisticadamente simbólicas do autor de Life and Times of Michael K podiam ler-se, sem grandes engulhos, como setas endireitadas ao coração do regime segregacionista, os jovens e menos jovens radicais não viam inconveniente. A subtileza da escrita e da perscrutação fininha dos seres e seus motivos estavam já lá, como ameaça pendente, mas, de momento, fazia-se vista grossa. Porém, livros como Disgrace, ainda que insusceptíveis de uma leitura simplificada, não deixavam de incluir, na sua complexidade inquietante e por vezes sinistra, a pintura de uma sociedade de violência, banditagem e vingança racial que a história pode explicar mas não isentar. Ainda falando do grande escritor russo, amigo quase irmão de Flaubert, Coetzee dizia: “Este desdobrar da tragédia – de um lado, universal e apolítica, do outro, denunciadora e sócio-política – torna a «mensagem» de Pais e Filhos difícil de encapsular e contribui para o mito de Turguenev como artista imparcial e olímpico.” Talvez por isso, tanto o russo como o sul africano tenham  decidido viver fora dos respectivos países: Turguenev em França, Coetzee na Austrália. O frenesi ideológico repele a complexidade e a riqueza da sondagem mesmo daqueles que nunca fugiram, em momentos decisivos, ao combate duro e à denúncia arriscada. A tentativa agónica de reconciliar uma visão trágica universal e apolítica com um vector de denúncia sócio-política não satisfaz nunca os jovens radicais sedentos de certezas fáceis. Para esses, o Nobel de Coetzee será sempre uma injúria. O respeito pela complexidade do real, a pintura dilacerada de uma sociedade minada de feridas que se procura compreender em profundidade e sem parti-pris primários, a gestão magistral e por vezes quase distanciada de um caldeirão de conflitos cuja solução se não vê que vá facilmente emergir – tudo isto faz de John Maxwell Coetzee um dos mais importantes escritores vivos e um modelo daquela integridade artística sem a qual não vale a pena a aventura de criar."
Eugénio Lisboa , em Crónica publicada na revista LER , na rubrica Ipsissima Verba

sexta-feira, 2 de agosto de 2024

Sapere aude!

Immanuel Kant

Immanuel Kant: O Homem e Deus
por Anselmo Borges
“Neste tempo dominado por maquinarias de estupidificação, quando o que mais falta é, por isso mesmo, pensar criticamente, não podia deixar passar o terceiro centenário do seu nascimento sem uma brevíssima referência. Refiro-me a Immanuel Kant, que nasceu no dia 22 de Abril de 1724 em Königsberg, antiga Prússia, actualmente Kaliningrado, um enclave russo entre a Polónia e a Lituânia, e que morreu nessa mesma cidade no dia 12 de Fevereiro de 1804. É lá, na catedral de Kaliningrado, que se encontra uma lápide com a sua frase célebre: “Duas coisas enchem a mente de uma admiração e um respeito sempre novos e crescentes quanto mais frequentemente e com maior persistência delas se ocupa a reflexão: o céu estrelado sobre mim e a lei moral em mim”.
Kant, um dos maiores filósofos de sempre, deixou um legado essencial: uma atitude de pensamento crítico que vá ao essencial. “Sapere aude!” Ousa saber, ousa pensar, atreve-te a saber, atreve-te a pensar! “Que é Iluminismo? O Iluminismo é a libertação do ser humano da sua incapacidade culpada. A incapacidade significa a impossibilidade de servir-se da sua inteligência sem a guia de outro. Esta incapacidade é culpada porque a sua causa não reside na falta de inteligência mas na falta de decisão e coragem para servir-se por si mesmo dela sem a tutela de outro. Sapere aude! Tem a coragem de servir-te da tua própria razão!”
Em síntese, a obra de Kant vai ao encontro destas três perguntas essenciais: “Que posso saber?”, “Que devo fazer?”, “O que é que me é permitido esperar?”
Na sequência do sua “revolução copernicana” quanto ao conhecimento, concluiu que, escapando à experiência, Deus e a imortalidade não podem ser conhecidos. Não são demonstráveis.
Como agir bem, moralmente? Há para isso um critério seguro? Este critério não está em seguir os desejos ou inclinações pessoais, os hábitos de acção dos grupos ou países. Esse critério também não se encontra na busca da felicidade. Para Kant, esse critério consiste num “imperativo categórico”. Em que consiste? Se queremos saber se uma acção é moral, deve-se sujeitar a máxima ou regra pela qual nos guiamos a um teste de universalização. Assim, numa das suas formulações: “Age como se a máxima da tua acção devesse ser erigida pela tua vontade em lei universal de natureza”. Quando agimos, se queremos saber se estamos a agir moralmente, perguntemos: o que aconteceria se todos aplicassem a regra ou máxima. Um exemplo: a mentira. É moral mentir? Para sabê-lo, perguntemos: é universalizável? O que sucederia se todos mentissem? É evidente que a própria mentira se tornaria absurda, pois mentir só vale, isto é, só tem eficácia, no pressuposto de que as pessoas confiam no que alguém lhes diz. Portanto, mentir é imoral. Outro exemplo, este pela positiva: aliviar o sofrimento dos desgraçados. Neste caso, os sofrimentos próprios da condição humana encontrariam sempre um alívio. Aí está, pois, uma acção moral. Kant segue, portanto, na sua apreciação moral, um critério racional em autonomia. Mas, uma vez que nem sempre é fácil este critério da universalização, Kant propõe outra formulação do mesmo imperativo categórico: “Age de tal modo que trates a humanidade tanto na tua pessoa como na pessoa de todos os outros sempre como um fim, nunca como um simples meio”. Cá está, pois: as coisas têm um preço, porque são meios, o Homem não tem preço, mas dignidade, porque é fim.
Do dever moral enquanto imperativo categórico, seguem-se os chamados postulados da razão prática.
Em primeiro lugar, a liberdade. Diz Kant: “Podes, porque deves”. Se deves, podes; é pela lei moral que sabemos que somos livres; agir moralmente é afirmar a liberdade, que não é arbítrio, e, por isso, educar tem de ser educar para a liberdade. Neste sentido, há um célebre exercício mental na sua Crítica da razão prática, que obriga a pensar. Suponhamos que alguém, sob pena de morte imediata, se vê confrontado com a ordem de levantar um falso testemunho contra uma pessoa que sabe ser inocente. Nessas circunstâncias e por muito grande que seja o seu amor à vida, pensará que é possível resistir. “Talvez não se atreva a assegurar que assim faria, no caso de isso realmente acontecer; mas não terá outro remédio senão aceitar sem hesitações que tem essa possibilidade.” Existem as duas possibilidades: resistir ou não. “Julga, portanto, que é capaz de fazer algo, pois é consciente de que deve moralmente fazê-lo e, desse modo, descobre em si a liberdade que, sem a lei moral, lhe teria passado despercebida.”
A esperança da felicidade, imortalidade e Deus. Não é critério da moralidade a busca da felicidade. Mas quem cumpre o seu dever moral incondicional torna-se digno de ser feliz. Este merecer ser feliz mostra-se no exemplo acabado de apresentar. Suponhamos que a pessoa preferiu de facto ser morta a levantar um falso testemunho contra o inocente. Casos destes acontecem, há muitos exemplos históricos. Ora, a ligação entre o dever cumprido e a felicidade não se dá neste mundo, pelo contrário, o cumprimento do dever implicou dar a vida. Por isso, postula-se a imortalidade e exige-se moralmente que Deus exista.
Embora nunca tenha saído da sua cidade natal, tinha ideias cosmopolitas e é dele a expressão Völkerbund (Liga de Povos) como organização internacional em ordem à paz mundial, concretizada no século XX na Sociedade das Nações e na ONU.”
António Borges, em artigo de opinião, publicado no DN em 29 de Junho  de 2024

quinta-feira, 1 de agosto de 2024

A arte não é um luxo

 A arte não é um luxo
por Salman Rushdie
"(...) A mais importante dessas coisas é que a arte desafia a ortodoxia. Rejeitar ou denegrir a arte pelo facto de ela o fazer é não compreender a sua natureza. A arte coloca a apaixonada visão pessoal do artista em contraponto com as ideias aceites do seu tempo.  A arte sabe que as ideias aceites são inimigas da arte , como nos disse Flaubert em Bouvard  et Pécuchet. Os clichés são ideias aceites , e também  as ideologias o são, tanto aquelas que dependem da sanção dos invisíveis deuses do céu como as que não. Sem a arte , a nossa capacidade de pensar, de ver com frescura e de renovar o nosso mundo estiolaria e morreria.
A arte não é um luxo. Está na essência da nossa humanidade e não requer protecção especial a não ser o direito de existir. 
Aceita a discussão , a crítica até a rejeição. Não aceita a violência.
E, no fim, sobrevive àqueles que a oprimem. O poeta Ovídio foi exilado por César Augusto , mas a poesia  de Ovídio sobreviveu ao Império Romano.  A vida do poeta Mandelstam foi destroçada por Estaline, mas a sua poesia sobreviveu à União Soviética. O poeta Lorca foi assassinado pelos rufiões do general Franco, mas a sua arte sobreviveu ao fascínio da Falange."
Salman Rushdie, in Faca, Publicações Dom Quixote, Maio de 2024, p 219