quarta-feira, 20 de maio de 2009

A DIGNIDADE HUMANA

BANALIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA E BIOÉTICA: O DESAFIO DA (RE)CONSTRUÇÃO DA DIGNIDADE HUMANA

Sumário. Introdução. 1 – A violência actual: o fenômeno da banalização. 2 – A dignidade humana: o desgaste de um valor; 3 – A (re)construção da dignidade humana: um desafio bioético. Conclusão. Referências Bibliográficas.
(...)
INTRODUÇÃO
A violência tem sido foco de atenção concentrada nos últimos tempos. O homem contemporâneo assiste a cenas diárias de seu recrudescimento em todos os lugares e sob as mais variadas formas.
Nota-se que toda essa violência crescente tem se tornado assustadora e paira uma sensação de impotência diante dela.
Assim, com estas linhas, pretende-se discutir, inicialmente, o fenómeno da violência hodierna que se dissemina e assume características nítidas de banalização.
Em seguida, analisar-se-á como essa violência banalizada desgasta e, de modo agudo, compromete a dignidade humana, tida como um valor exponencial.
Depois disso, a abordagem do tema voltar-se-á para o desafio que o homem contemporâneo, imerso em ambiente violento, tem diante de si para tentar (re)construir aquela sua dignidade, a partir de uma noção bioética.
Passa-se, então, à retomada das idéias principais desenvolvidas neste texto, apresentando-as em conclusão.

1 – A VIOLÊNCIA ACTUAL: O FENÓMENO DA BANALIZAÇÃO
A escalada da violência, em todo o mundo contemporâneo, é um fenómeno mais do que real. A todo o momento, cenas de violência são vistas nos mais diversos segmentos da vida quotidiana. Nem se fale, então, daquelas que não chegam a aparecer, já que muitos interesses concorrem para que permaneçam ocultadas. Como observaram Maria Lúcia de Arruda Aranha e Maria Helena Pires Martins: “mesmo se considerarmos a violência um fenómeno de todos os tempos e lugares – (...) -, não há como negar que vivemos numa época de exaltação da violência.” (1998, p.189).
Essa exaltação da violência vai assumindo, hodiernamente, a feição de algo que, além de disseminado, está mesmo a caminho da banalização. Hannah Arendt elaborou uma das mais expressivas reflexões sobre esse fenômeno da violência que se difunde indiscriminadamente e se banaliza. Assim ela escreveu:

(...) o perigo da violência, mesmo que esta se movimente dentro de uma estrutura não extremista de objectivos a curto prazo, será sempre que os meios poderão dominar os fins. (...). A acção é irreversível, e um retorno ao status quo em caso de derrota é sempre pouco provável. A prática da violência como toda acção, transforma o mundo, mas a transformação mais provável é em um mundo mais violento. (1985, p.45)

Aliás, para Hugo Estenssoro, Hannah Arent conseguiu mesmo, com nítido realismo, abordar essa tendência para o recrudescimento da violência banalizada, na medida em que assim a retratou: “Não se trata de uma teoria ou doutrina, mas de algo muito concreto, o fenómeno das más acções, cometidas em escala gigantesca.” (Arendt apud Estenssoro, 2004, p. 81)
Essa banalização projecta a violência para muito além do particularizado, ou seja, faz com que ela ultrapasse a dimensão individualizada deste ou daquele que se pretende apontar como o grande e perigoso malfeitor. Ainda que se queria identificá-lo isoladamente, o facto é que ele não passa, quando muito, de apenas mais um possível centro irradiador dessa violência.
A violência banalizada é mesmo esse fenómeno de sua realização já sem faces e sem limites, capaz de alcançar extremos quase inimagináveis. Já não se sabe, na realidade, quem estaria pronto para praticá-la, em que circunstâncias o faria, quais aqueles que desejaria atingir e porque “razões”, se é que se pode dizer que existe alguma razão que a justifique.
A violência que de tal modo se banaliza é aquela que é perpetrada pelos assim chamados “joões-ninguém”. Esta expressão precisa ser entendida com bastante cuidado. Não se trata de considerar a prática da violência exclusividade daqueles que estão excluídos socialmente. Nada disso. Esses “joões-ninguém”, que promovem a banalização da violência indiscriminadamente, são todos aqueles que, embora da espécie humana, ainda se recusam a ser pessoas.

2- A DIGNIDADE HUMANA: O DESGASTE DE UM VALOR
É notório que a violência banalizada afecta, directa ou indirectamente, a questão da dignidade humana, enquanto um valor exponencial.
A noção de dignidade, como característica universal dos seres humanos, perpassa o processo civilizatório, com avanços e retrocessos ao longo dos tempos. Fábio Konder Comparato, ao tratar da afirmação histórica dos direitos humanos, fez uma clara reflexão a respeito de como eles foram se “criando e se estendendo a todos” (1991, p.1), mas não sem dificuldades de efectiva implementação, o que ainda persiste. A propósito, nesse ponto, a lição de Norberto Bobbio não pode ser esquecida, quando assim disse:

Há três anos, no simpósio promovido pelo Instituto International de Philosophie sobre o ´Fundamento dos Direitos do Homem´, tive oportunidade de dizer, num tom um pouco peremptório, [...], que o problema grave de nosso tempo, com relação aos direitos do homem, não era mais o de fundamentá-los e sim o de protegê-los (1995, p. 25)

Como se percebe, não é mais suficiente apenas proclamar tais direitos, posto que o problema real que se tem de enfrentar, nesses tempos, é o da necessidade de adopção concreta das medidas já pensadas, para que haja a efectiva proteçcão deles. Como ainda acrescentou o próprio Norberto Bobbio:

Não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual é a sua natureza e seu fundamento, [...], mas sim qual é o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar de solenes declarações, eles sejam continuamente violados. (1995, p. 25)

O que se pode dizer é que a dignidade humana implica mesmo um valor sublimado, cuja base de afirmação é a própria natureza de cada ser humano que merece o máximo de protecção. E ela também inclui as noções cruciais de racionalidade, liberdade e finalidade em si, as quais fazem desse ser humano alguém em permanente desenvolvimento, na busca de oportunidades para seus projectos de vida. Trata-se a dignidade humana de algo em construção, nem sempre fácil de se concretizar plenamente, não obstante mereça todos os esforços para se sedimentá-la. E não se pode negar, contudo, que já existem significativos avanços nesse processo construtivo.
Entretanto, a banalização da violência traz, ao mesmo tempo, a sensação de retrocessos nessa difícil busca de se edificar e aprimorar a dignidade humana, provocando inevitável desgaste de seu valor. Cabe dizer que esses retrocessos, em meio à violência banalizada, conduzem a um progressivo fenómeno de não-pessoalização, ou, então, de despessoalização. Cuida-se, pois, de uma questão antropológico-filosófica. No primeiro caso, impede-se que se forme e ganhe solidez a consciência de se ser pessoa humana; no segundo, há uma involução dessa consciência. De um ou outro modo, o que se vai perdendo, perigosamente, é a noção de que o outro é alguém (e não apenas algo), que merece respeito pela sua condição de pessoa e que, por isso, não pode ser objectiva e subjectivamente usada como meio. A propósito, assim disse Paulo César da Silva: “A pessoa, dada a sua natureza, não se presta à instrumentalidade. Ela não pode, por causa de ser fim em si mesma e por sua intrínseca dignidade, ser reduzida a meio de toda e qualquer acção.” (2003, p. 43)
Assim, é possível perceber a importância de se firmar uma consciência pessoalizante, em nome da dignidade humana, cujo desgaste guarda estreita relação com a violência que se banaliza naquele “joão-ninguém”, isto é, no homem não-pessoalizado, ou , então, despessoalizado.

3 – A (RE)CONSTRUÇÃO DA DIGNIDADE HUMANA: UM DESAFIO BIOÉTICO
Nos tempos actuais, a todo o momento, volta a preocupação de se pensar na (re)construção da dignidade humana desgastada, ou seja, de se resgatar muitas das conquistas de humanização que, em princípio, pareciam já consolidadas, mas que a violência banalizada tende a fazer desmoronar.
Isso se tornou, evidentemente, um grande desafio bioético, enquanto compreende a noção fundamental de uma ética da vida. A violência banaliza-se na medida em que os seres humanos mostram-se refractários a agirem como pessoas e a vida vai se transformando em algo de pouca ou nenhuma importância. A propósito, assim observou Paulo César da Silva:
É significativo alertar que a consciência do retrocesso exige que a pessoa humana e, colectivamente, a sociedade, não estejam já envolvidas pelo processo, porque, caso contrário, elas já se encontram incapacitadas ao se aperceberem em queda, como alguém perdendo a audição sem dar conta da surdez. (2003, p.41)

Como anotou Luís Kirchmer, relembrando Marciano Vidal, o respeito pela vida humana é um dos “eixos primários” (2000, p.23) em torno do qual a consciência ética da humanidade buscou se desenvolver.
O que preocupa em termos bioéticos, a cada dia apresentando-se como verdadeiro dilema, é (re)construir aquela dignidade humana, em meio à violência banalizada, a partir de uma consciência bastante lúcida de que a ética da vida requer, inexoravelmente, comprometimento do ser humano-pessoa em manter uma convivência respeitosa em relação ao semelhante. Como escreveu Christian de Paul de Barchifontaine: “(...) percebemos que o conceito de dignidade humana é importante para salvaguardar o valor maior que é a pessoa.” (2004, p.30). E esse mesmo autor estabeleceu a relação desses conceitos – dignidade humana e pessoa – com a banalização do mal, tendo feito a seguinte observação:

A abordagem actual da dignidade humana se faz sobretudo pela negativa, pela negação da banalidade do mal: é por se estar confrontando com situações de indignidade ou de ausência de respeito que se tem indicio de tipos de comportamento que exigem respeito. (2004, p. 20)

Nota-se com tudo isso o seguinte: na medida em que vai se desgastando, pela banalização da violência, a dignidade humana, por conseguinte, o valor da pessoa vai também se tornando corroído. Não se pode deixar de ver que está posto, assim, o desafio à bioética, enquanto ela é agora chamada a delinear princípios norteadores de acções que se oponham às mais diversas formas de barbárie e, obviamente, a essa violência que ganha projecções quotidianas de mais profunda banalização. E esses princípios, como assinalou Guy Durant, não podem se afastar de pelo menos dois aspectos primordiais: “o respeito à vida e à autodeterminação da pessoa.” (1995, p. 31)
CONCLUSÃO
É notória a escalada da violência nos tempos actuais. O quotidiano está permeado de cenas reais dessa violência, a qual vai assumindo proporções “espantosas”, mas que, para assombro, já não causa tanto espanto. Trata-se de uma violência que se alastra e se banaliza. Sua banalização se dá na medida em que já não tem mais face e nem limites. Mostra-se capaz de atingir extremos quase inimagináveis e de ser praticada por todos aqueles que, apesar de humanos, de algum modo, são refractários à idéia de agirem como pessoas em relação aos semelhantes.
Essa violência banalizada, directa ou indirectamente, afecta sobremaneira a dignidade humana, entendida esta como um valor exponencial. Isso porque ela traz, no mínimo, a sensação de paralisação ou de retrocesso no aprimoramento do especial modo gregário de viver do ser humano. Marca desse mal-estar é a tendência para a não-pessoalização ou para a despessoalização das relações intersubjectivas.
Surge, assim, para a bioética, enquanto uma ética que postula respeito pela vida, o desafio de salvaguardar o valor da dignidade humana, o que implica, por conseguinte, preservar a própria pessoa em si. Isso se torna crucial quando se pretende evitar que haja a corrosão completa daquele valor, por causa da violência que se escancara banalizadamente. Trata-se mesmo de um desafio à bioética, posto que ela é chamada a orientar o “ethos” do coexistir humano, cuja base há de ser a busca pelo mais profundo respeito de um pelo outro, o que se firmará no renovado esforço e no constante reforço de pessoalização das relações humanas.

Marcius Nahur

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
- ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Temas de Filosofia. 2ª ed. São Paulo: Moderna, 1998.
- ARENDT, Hannah. Da violência. Brasília: Universidade de Brasília, 1985.
- BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Bioética e inicio da vida: alguns desafios. Aparecida: Idéias e Letras; São Paulo: Centro Universitário São Camilo, 2004.
- BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1995.
- COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva, 1999.
- DURANT, Guy. A bioética: natureza, princípios, objetivos. São Paulo: Paulus, 1995.
- ESTENSSORO, Hugo. O mal do nosso tempo. Primeira Leitura, São Paulo, n. 28, jun 2004.
- KIRCHMER, Luis. Bioética: O que é ? Para que serve ? Aparecida: Santuário, 2000.
- NASCIMENTO, Grasiele Augusta Ferreira, RAMPAZZO, Lino (org.). Biodireito, Ética e Cidadania, Taubaté: Cabral, 2003.SILVA, Paulo César da. Do Biodireito, In: NASCIMENTO, Grasiele Augusta Ferreira, RAMPAZZO, Lino (org.). Biodireito, Ética e Cidadania, Taubaté: Cabral, 2003

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