terça-feira, 29 de novembro de 2016

Ter duas pátrias é incómodo

"Eu, que jurara nunca abandonar Paris, via-me na longínqua e inóspita Holanda com o sentimento de cumprir uma pena de degredo. Eu, que gozara em pleno a vida de solteiro e decidira ser essa a que melhor satisfazia o meu carácter , logo em fins de 1947 me vi casado. Em 1962 era pai de três filhas. Parecerá estranho e até contraditório, mas é facto que a condição de chefe de família, em vez de facilitar a minha integração no meio em que passara a viver , e ajudar-me  a compreender e a aceitar os seus usos e costumes, quase sempre resultou no oposto.É que tudo se me afigurava concorrer para pôr entraves no meu caminho, invadir o que eu julgava  estritamente privado e azedamente me desiludir do que diziam ser os direitos, deveres e a liberdade do cidadão numa democracia
Democracia? Liberdade? Qual quê! O que eu frequentemente ressentia eram intromissões ao gosto do controle num Estado policial, muitas delas abertamente discriminatórias.
Apareceu-me uma manhã uma assistente social com um pedido  que, à primeira vista,  se assemelhava a uma carinhosa curiosidade: queria ver o bebé.

No rosto deve-se-me ter chegado a formar um sorriso de boas-vindas, mas qualquer coisa no comportamento da mulher - talvez o pé já atravessado na soleira da porta ou o tom seco, a severidade do olhar -levantou a minha suspeita e perguntei-lhe qual a razão do pedido, com que autoridade o fazia.
Era o regulamento, disse, e vinha para se certificar se o bebé era bem tratado, se vivia em boas condições de higiene.
" E porque  não havia de ser bem tratado?"
" É que sendo o senhor  um estrangeiro..."
Não sei se chegou a terminar a frase, só recordo tê-la visto recuar assustada com o berro  que soltei , certamente a temer que a violência da minha reacção  não ficasse por ali. Mas em vez de retorquir com um berro igual, o que eu de certo esperava,  pois se mostrara investida de autoridade, a mulher apressou-se escadas abaixo, ameaçando que a polícia me viria pedir contas, para o que eu não via razão e, evidentemente, nunca aconteceu. O provável é que algures num registo alguém tenha anotado a minha hostilidade e, feito isso, dado o caso por arrumado.
Relembro este  incidente  pelo que me feriu  e como prova da discriminação à qual o ser  estrangeiro  me sujeitava, mas  também para assinalar uma característica que acho peculiar da sociedade holandesa: a cobardia social.  
Não sei o que a provoca, se a doentia e constante busca de consenso, o adiamento de soluções para os problemas, agudos ou não, o curioso modo  de contra  toda  a evidência " não ver".  Das primeiras  vezes  que a notei julguei-a  individual. Surpreendeu-me  quando vi que era generalizada.  Meio século depois preocupa-me, melhor direi que me assusta, pois de par com uma suposta e indulgente tolerância, a cobardia social foi pouco a pouco sendo elevada ao status  de virtude. 
Cabe aqui um parêntesis destinado a quem, agora ou mais tarde , eventualmente se sentir  magoado ou ofendido com a minha franqueza.
O . O ter, como eu, duas pátrias tão diferentes, uma atrasada e pobre, a outra rica e superiormente desenvolvida, e querer amar ambas com um sentimento igual, mais que um duplo incómodo é fonte de dolorosos dilemas. 
Como explicar que o que numa me parece virtude, o vejo na outra como defeito? Quais os sofismas com que justificar que o que se aceita e perdoa nesta, se vê naquela como infracção à norma? Se para casos semelhantes ele porventura existe, qual será o padrão de uma crítica justa?
Aparentemente,  para nenhuma destas interrogações há resposta satisfatória.  Ou talvez sim. Talvez se pudesse desempoeirar o velho patriotismo . Não o patriotismo senil dos heróis do  mar  e das matanças, mas o que venera aquilo que, através das gerações, contribui para que um país  se torne mais culto, mais próspero e  mais livre, as suas instituições mais justas, a sua sociedade menos desigual, a hipocrisia menos generalizada.
E no patriotismo infalivelmente cabe a crítica. Ama-se  mais Portugal, exortando-o a que se desenvolva e deixe de ser a nação mais pobre da Europa, do que cantando-lhe loas por ter descoberto a rota da Índia em 1498.
Incómodo é também por vezes o papel do escritor. Aquele que preza a sua liberdade não se filia em partidos nem se liga a interesses , toma a sério a vocação que deve ser a sua: a de advogado do diabo. Porque no papel sim, e o princípio de Direito afirma-o, mas na realidade nenhuma sociedade é perfeita a ponto de, dentro da lei ou fora dela, tratar de modo igual todos os seus cidadãos. E se ela age desse modo para os que nela nasceram, os seus filhos, como esperar que trate melhor os que lhe bateram à porta como " enjeitados"?
Ao escritor cabe emparceirar com os " enjeitados", os que  usando a expressão vulgar, se encontram na " mó de baixo",  as vítimas, os oprimidos. Infelizmente, o que era somente incómodo torna-se dilema quando as vítimas passam   para a zona cinzenta onde é difícil distinguir entre oprimidos  e opressores, ou quando o rótulo de vítima se torna instrumento de chantagem, ou de desequilíbrio político e social.
As considerações que atrás ficam assemelham-se um pouco ao caso de pôr o carro diante dos bois, mas acontece que, involuntariamente, levado pelo que me preocupa no momento em que escrevo, o meu pensamento deu um salto de meio século em frente.
Melhor é voltarmos ao momento em que a assistente social vai escadas  abaixo, assustada com a violência da minha reacção."
J. Rentes de Carvalho, in " A Ira de Deus sobre a Europa", Quetzal Editores, Novembro de 2016, pp.55-58 

Sem comentários:

Enviar um comentário