terça-feira, 22 de novembro de 2016

Da Liberdade

" O princípio da democracia liberal, que inspirou os fundamentos da Constituição Americana, consistia em que as questões controversas deveriam ser decididas, de preferência, por meio de argumentos e não pela força. Os liberais  sempre afirmaram que as opiniões deviam formar-se por livre debate, e não permitindo que apenas uma das partes fosse ouvida. Os governos tirânicos, tanto antigos como modernos, adoptaram o ponto de vista oposto. Por minha parte, não vejo razão para se abandonar, neste ponto, a tradição liberal. Se eu estivesse no poder, não procuraria impedir que os meus adversários fossem ouvidos. Esforçar-me-ia por proporcionar iguais facilidades para a manifestação de quaisquer opiniões, deixando os resultados  entregues às consequências da discussão e do debate. Entre as vítimas académicas da perseguição alemã na Polónia, há, tanto quanto sei, alguns lógicos eminentes que são católicos ortodoxos integrais. Eu faria tudo o que pudesse para conseguir posições académicas para esses homens, apesar dos seus correlegionários não retribuírem tal cortesia.
 A diferença fundamental entre o ponto de vista liberal e não-liberal é que o primeiro considera todas as questões possíveis de discussão e todas as opiniões susceptíveis de um maior ou menor grau de dúvida, enquanto a última afirma, de antemão, que algumas opiniões  são absolutamente indiscutíveis e que não se deve permitir qualquer argumento contra elas. O que é curioso  a respeito dessa posição é a crença de que, se se permitisse uma investigação imparcial, esta levaria os homens  a uma conclusão  errada, e que a ignorância  é , por conseguinte,  a única salvaguarda contra o erro.  Este é um ponto de vista que não pode ser aceite por nenhum homem que deseje que as acções humanas sejam mais dirigidas  pela razão do que pelo preconceito.
Foi o ponto de vista liberal que levou a Inglaterra e a Holanda, nos últimos anos do século XVII,  a reagirem  contra as guerras religiosas. Tais guerras grassaram com grande fúria por espaço de 130 anos, sem que trouxessem a vitória a nenhuma das partes. Cada lado tinha absoluta certeza de estava com a razão e que a sua vitória era de suprema importância para a humanidade. Por fim, alguns homens sensatos cansaram -se da luta indecisa e decidiram que ambos os lados estavam equivocados  quanto à sua certeza dogmática. John Locke, que exprimiu tanto na política como na filosofia esse novo ponto de vista , escreveu no começo de uma era de tolerância crescente. Realçou a falibilidade dos juízos humanos e enveredou por uma era de progresso que durou até 1914. É devido à influência de Locke e da sua escola que os católicos desfrutam de tolerância em países protestantes , e os protestantes em países católicos. Nas controvérsias do século XVII os homens aprenderam , mais ou menos, a lição da tolerância, mas, no que toca às novas controvérsias surgidas desde o fim da Primeira Guerra Mundial, as esclarecidas máximas dos filósofos do liberalismo foram esquecidas.
Não nos sentimos horrorizados com os quakers, como se sentiam os piedosos cristãos da corte de Carlos II, mas horrorizamo-nos diante dos homens que aplicam aos problemas de hoje as mesmas ideias  e os mesmos princípios que os quakers do século  XVII aplicavam à sua época. Há opiniões de que discordamos,  que adquirem , pela sua antiguidade, uma certa respeitabilidade, mas uma opinião nova da qual não compartilhamos parece-nos, invariavelmente, chocante.
Há dois pontos de vista possíveis quanto ao funcionamento da democracia. Segundo um desse pontos de vista , as opiniões da maioria deviam prevalecer , de maneira absoluta, em todos os terrenos. Segundo a outra maneira de ver, sempre que uma decisão comum não é necessária , deveriam ser apresentadas opiniões diferentes, tanto quanto possível, em proporção com a sua frequência numérica. O resultado desses dois pontos de vista é, na prática, muito diferente.  De acordo com o primeiro, quando  a maioria já decidiu acerca de uma opinião, não se deve limitar-se a canais obscuros  e pouco influentes. De acordo com o outro ponto de vista, as opiniões da minoria devem ter as mesmas oportunidades de expressão que as opiniões da maioria, mas somente em menor grau.
(...) Depois do fim da Primeira Guerra Mundial, renasceu a intolerância fanática até se tornar, numa grande parte do mundo,  tão virulenta como durante as guerras religiosas. Todos os que se opõem  à  livre discussão e procuram impor uma censura às opiniões a que os jovens se acham expostos, estão a contribuir para o aumento desse fanatismo e a mergulhar ainda mais no abismo de lutas e intolerância de que Locke e os seus colaboradores os livraram. "
Bertrand Russell, in " Porque não sou cristão", Brasília Editora, Porto, 1970, pp.194-197

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