sábado, 30 de novembro de 2013

Um registo na pedra

Pressupostos civilizacionais
São José Almeida
29/11/2013 - 21:56
“Cortes de investimento público, que empurram pessoas para fora do sistema, agravam movimentos de exclusão próprios de momentos de fim de época. Maria Cavaco Silva foi assobiada e apupada, na segunda-feira, na Moita, por um conjunto de trabalhadores, a maioria funcionários da câmara. O protesto organizado pela União de Sindicatos de Setúbal contra o Orçamento do Estado visou a mulher do Presidente da República. Foi assim quebrada uma barreira simbólica. Esta inédita ousadia segue-se a um outro protesto também inédito: na quinta-feira passada, membros das forças de segurança, ao manifestarem-se, invadiram a escadaria do Parlamento, pondo em causa a autoridade do Estado.
Os dois momentos não descambaram em violência, graças aos sindicatos, que cumprem um papel de enquadramento social da contestação reivindicativa. Na revolução civilizacional do modelo da sociedade que se vive, pode, no entanto, vir a ser ultrapassado o papel moderador desempenhado por sindicatos e movimentos inorgânicos, como o que esteve na origem da manifestação de 12 de Março de 2011 ou o Que se Lixe a Troika, responsável pela convocação do protesto a 15 de Setembro de 2012. Papel de enquadramento das aspirações das pessoas que já não são satisfatoriamente representadas pelos partidos e pelos dirigentes políticos, como é exemplo a pouca expressão que tiveram a reunião organizada por Mário Soares a 21 de Novembro e a homenagem a Ramalho Eanes a 25 do mesmo mês.
Os protestos verificaram-se quando era aprovado o OE para 2014, em que o investimento público nos serviços sociais volta a diminuir. Esta redução da despesa social resulta da mudança de modelo de relações entre a sociedade e o Estado provocada pela hegemonia de uma ideologia ultraliberal em que o lucro privado se sobrepõe ao interesse público e à defesa da dignidade humana.
Um sistema de valores dominante que o Papa Francisco condenou também esta semana, no documento que é o programa para o seu Papado, ao afirmar, de acordo com a tradução da Conferência Episcopal Portuguesa: “Assim como o mandamento ‘não matar’ põe um limite claro para assegurar o valor da vida humana, assim também hoje devemos dizer ‘não a uma economia de exclusão e da desigualdade’. Esta economia mata” (p. 30). Acrescentando ainda que se vive num mundo em que “os excluídos não são ‘explorados’, mas resíduos, ‘sobras’” (p. 31), numa sociedade em que “a crise mundial, que acomete as finanças e a economia, põe a descoberto os seus próprios desequilíbrios e sobretudo a grave carência de uma orientação antropológica que reduz o ser humano apenas a uma das suas necessidades: o consumo” (p. 32).
Vive-se uma inversão de paradigma, acelerada pela revolução tecnológica, que tem facilitado a implantação do ultraliberalismo, ao implodir as noções de espaço e tempo e ao pulverizar as estruturas tradicionais. Mas a actual transição histórica deveria despertar a consciência da necessidade de preservação e do aprofundamento da garantia de dignidade humana. Este despertar reveste-se de urgência especial num momento de desestruturação do sistema, que é visível, por exemplo, no relatório da Comissão Europeia sobre os jovens que não trabalham nem estudam e que, em Portugal, atingem meio milhão, 92 mil dos quais surgidos desde 2008 (PÚBLICO, 24/11/2013).
Isto num país onde existem mais de 800 mil desempregados registados, segundo o INE. E numa União Europeia que tem um quarto da sua população, cerca de 125,3 milhões de pessoas, em risco de pobreza ou de exclusão social, 6,7 milhões das quais surgidos desde 2010, como reconheceu esta semana Durão Barroso, ao admitir o falhanço da Estratégia Europa 2020 da Comissão Europeia (PÚBLICO, 27/11/2013).
É verdade que o pleno emprego é um mito nunca atingido de facto. É bom mesmo que se tenha noção de que o conceito de trabalho, enquanto emprego estruturante da sociedade, é uma novidade surgida no pós-revolução industrial. Mas é preciso também não esquecer que a evolução histórica não é sempre sinónimo de progresso. Há regressões civilizacionais. Daí que seja urgente ter em conta que cortes de investimento público, que empurram pessoas para fora do sistema, agravam movimentos de exclusão próprios de momentos de fim de época, de fim de civilização, em que tantos deserdados da sorte são jogados para fora do comboio da história.
Por isso mesmo, numa época de revolução e ruptura, para procurar evitar regressões civilizacionais, é urgente estar atento à defesa dos direitos humanos, na sua totalidade de direitos fundamentais, individuais, sociais, na certeza de que, por serem relativos e vividos em função do contexto histórico, são tão mais frágeis e tão perecíveis. Porque é isso que permite a defesa da diversidade e da dignidade humana que deve caracterizar as democracias. E preservar o pressuposto civilizacional de que as pessoas têm direito a uma vida justa e digna.” Público

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