sexta-feira, 9 de abril de 2010

A Primavera aparecia quando o calendário a dava

A reflexão sobre a poluição e os efeitos nefastos que provoca no Ambiente já vem de antanho. Este excerto da novela ” Sereia” de Camilo Castelo Branco que alude ao ano de 1762 , tempo de harmonia ambiental, atesta como o progresso conduziu à desordem dando origem a “conjecturas” já preocupantes. O autor faz quase uma antevisão profética da profunda mudança dos "factos" e da consequente alteração do equilíbrio do mundo propalada pelas desconcertantes invenções dos "engenhosos destruidores" da vida corrente que eram os homens da Ciência.
Dois séculos passados não se conjectura mais. A poluição devastou , destruiu e ameaça gravemente a sobrevivência das gerações vindouras.
A incúria do Homem cresceu ao longo dos séculos numa cegueira galopante e desmedida. A modernidade de Camilo não bastou para alterar a rota perversa do Progresso e prevenir um desenvolvimento sustentável.

(…)«Naquele tempo, os dias de Maio no Porto, eram temperados, alegres, perfumados, encantadores. A primavera, há cem anos, aparecia quando o calendário a dava. Ninguém saía de sua casa às cinco horas duma tarde cálida de Maio, com um casaco de reserva no braço para resisitir ao frio das sete horas; nem o peralta portuense levava escondido na copa do chapéu o cache-nez, com que, ao anoitecer, havia de resguardar as orelhas da nortada cortante.
O globo, naquele tempo, movia-se em volta do sol com a regularidade assinada pelos astrónomos. A gente ditosa, que então viveu, podia confiar-se nos entendidos em rotação dos planetas; e os sábios podiam sem receio responsabilizar-se pela pontualidade das estações. Quem, à face da folhinha, se vestisse de fresco em Maio, podia sair à rua trajado de holandilha ou vareja, que não entraria em casa a espirrar constipado pela súbita frialdade que o surpreendeu. A gente fiava-se dos sábios, os sábios da ciência, e as ciências dos factos repetidos.
Depois, porém, daquela época, desconcertaram-se os sistemas das regiões altas. As pessoas muito espirituais receiam que este desconcerto venha a desfechar em acabamento do mundo; outras, mais racionalistas, pretendem que a desordem das estações proceda de causas que, volvido um indeterminado período, cessem de existir. Ninguém se lembrou ainda de conjecturar que as vaporações constantes das fornalhas e o fluido eléctrico de que o ambiente está saturado, possam ter influído na substância dos sólidos e fluídos componentes do maquinismo celeste, alterando-lhes o modo de actuarem sobre a terra. Se algum sábio estivesse de pachorra para demonstrar a profundeza desta minha hipótese original, ficávamos convencidos nós de que a civilização do fumo e dos arames eléctricos, afinal, acabaria de todo com a primavera. Em compensação, os engenhosos destruidores das nossas alegrias em Maio, haviam de inventar uns fogões cómodos para nosso uso em Julho.»
(…)
Camilo Castelo Branco in “A Sereia”, (1ª edição, 1865)


“A Sereia”
de Camilo Castelo Branco
Edição/reimpressão: 2006
Páginas: 272
Editor: Edições Caixotim
ISBN: 9789728651565
Colecção: Caixotim Clássico

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