sexta-feira, 3 de janeiro de 2025

Para além do horizonte


Uma ave
( Postal)

Num céu verde , mais uma ave,
pairando, livre. leve e pura.
Junto ao sol, intrépida nave, 
avança lisa  - e segura.
Londres ,05.04.1984 
Eugénio Lisboa, in A matéria Intensa, Editora Peregrinação, Baden/Suiça,1985, p.47


Linha

A linha do horizonte leve fina
é o começo de um limite. Dilata
o espaço que imaginamos. Mina
os destinos: salvam-se os de prata.
Para além do leve horizonte frio
fica um mundo desconhecido nosso:
para ele ascendemos como um rio
que arrastasse um sereno alvoroço.
Eugénio Lisboa, in A matéria Intensa, Editora Peregrinação, 
Baden/Suiça, 1985, p 48

quinta-feira, 2 de janeiro de 2025

Ao correr da máquina

Ao correr da máquina 
por Clarice Lispector
"Meu Deus, como o amor impede a morte! Não sei o que estou querendo dizer com isso: confio na minha incompreensão, que tem me dado vida instintiva e intuitiva, enquanto que a chamada compreensão é tão limitada. Perdi amigos. Não entendo a morte. Mas não tenho medo de morrer. Vai ser um descanso: um berço enfim. Não a apressarei, viverei até a última gota de fel. Não gosto quando dizem que tenho afinidade com Virgínia Woolf (só a li, aliás, depois de escrever o meu primeiro livro): é que não quero perdoar o fato de ela se ter suicidado. O horrível dever é ir até o fim. E sem contar com ninguém. Viver a própria realidade. Descobrir a verdade. E, para sofrer menos, embotar-me um pouco. Pois não posso mais carregar as dores do mundo. Que fazer, se sinto totalmente o que as outras pessoas são e sentem? Eu vivo na delas mas não tenho mais força. Vou viver um pouco na minha. Vou me impermeabilizar um pouco mais. – Há coisas que jamais direi: nem em livros e muito menos em jornal. E não direi a ninguém no mundo. Um homem me disse que no Talmude falam que há coisas que se podem contar a muitos, há outras a poucos, e outras a ninguém. Acrescento: não quero contar nem a mim mesma certas coisas. Sinto que sei de umas verdades. Mas não sei se as entenderia mentalmente. E preciso amadurecer um pouco mais para me achegar essas verdades. Que já pressinto. Mas as verdades não têm palavras. Verdades ou verdade? Não, nem pensem que vou falar em Deus: é um segredo meu.
Está fazendo um dia lindo de outono. A praia estava cheia de um vento bom, de uma liberdade. E eu estava só. E naqueles momentos não precisava de ninguém. Preciso aprender a não precisar de ninguém. É difícil, porque preciso repartir com alguém o que sinto. O mar estava calmo. Eu também. Mas à espreita, em suspeita. Como se essa calma não pudesse durar. Algo está sempre por acontecer. O imprevisto me fascina.
Com duas pessoas eu já entrei em comunicação tão forte que deixei de existir, sendo. Como explicar? Olhávamo-nos nos olhos e não dizíamos nada, e eu era a outra pessoa e a outra pessoa era eu. É tão difícil falar, é tão difícil dizer coisas que não podem ser ditas, é tão silencioso. Como traduzir o profundo silêncio do encontro entre duas almas? É dificílimo contar: nós estávamos nos olhando fixamente, e assim ficamos por uns instantes. Éramos um só ser. Esses momentos são o meu segredo. Houve o que se chama de comunhão perfeita. Eu chamo isso de: estado agudo de felicidade. Estou terrivelmente lúcida e parece que estou atingindo um plano mais alto de humanidade. Foram os momentos mais altos que jamais tive. Só que depois… Depois eu percebi que para essas pessoas esses momentos de nada valiam, elas estavam ocupadas com outras. Eu estivera só, toda só. É uma dor sem palavra, de tão funda. Agora vou interromper um pouco para atender o homem que veio consertar o toca-discos. Não sei com que disposição voltarei à máquina. Música não ouço há bastante tempo pois estou procurando me dessensibilizar. Mas um dia desses fui pegada desprevenida, ao ver o filme Cada um vive como quer. Tinha música e eu chorei. Não é vergonha chorar. É vergonha eu contar em público que chorei. Pagam-me para eu escrever. Eu escrevo, então.
Pronto, já voltei. O dia continua muito bonito. Mas a vida está muito cara (isso por causa do preço que o homem pediu pelo conserto). Preciso trabalhar muito para ter as coisas que quero ou de que preciso. Acho que livros não pretendo nunca mais escrever. Só vou escrever para este jornal. Eu queria um emprego de poucas horas por dia, digamos duas ou três horas, e que me fizesse (o emprego) lidar com pessoas. Tenho jeito para isso, embora pareça um pouco ausente às vezes. Mas, quando estou com uma pessoa verdadeira, fico verdadeira também. Se vocês pensam que vou recopiar o que estou escrevendo ou corrigir este texto, estão enganados. Vai é assim mesmo. Só que lerei para corrigir erros datilográficos.
A propósito de uma pessoa de quem estou me lembrando agora e que usa uma pontuação completamente diferente da minha, digo que a pontuação é a respiração da frase. Acho que já disse uma vez. Escrevo à medida de meu fôlego. Estarei sendo hermética? Porque parece que em jornal se tem de ser terrivelmente explícito. Sou explícita? Pouco se me dá.
Agora vou interromper para acender um cigarro. Talvez volte à máquina ou talvez pare por aqui mesmo.
Voltei. Estou agora pensando em tartarugas. Quando escrevi sobre bichos, disse, de pura intuição, que a tartaruga era um animal dinossáurico. Depois é que vim a ler que é mesmo. Tenho cada uma. Um dia vou escrever sobre tartarugas. Elas me interessam muito. Aliás, todos os seres vivos, que não o homem, são um escândalo de maravilhamento. Parece que, se fomos modelados, sobrou muita matéria energética e formaram-se os bichos. Para que serve, meu Deus, uma tartaruga? O título do que estou escrevendo agora não devia ser “Ao correr da máquina”. Devia ser mais ou menos assim, em forma interrogativa: “E as tartarugas?” E quem me lê se diria: é verdade, há muito tempo que não penso em tartarugas. Agora vou acabar mesmo. Adeus. Até sábado que vem. "
Clarice Lispector,  em crónica publicada no Jornal do Brasil, de 17.04.1971 e recolhida no livro "Todas as crónicas", Rocco, Rio de Janeiro, 2018, pp.390-393

quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

Não estamos sós


We Are Not Alone 

This world has ears and rocks have eyes
Nature loves to hide
The world is a bush full of fiery eyes
Nature loves to hide
I was observed and unaware
I've travelled a lot unaware
I was observed, I was observed
We are not alone (good news for my heart)
Nick Cave e Warren Ellis

Neste primeiro dia de 2025, a poderosa voz  de um grande cantor traz-nos memórias de um mundo diferente e talvez  a renovar.
Que venha  2025.

Nick Cave e  Warren Ellis,  em Push the Sky Away,   num espectáculo na  Sydney Opera House.
Nick Cave and Warren Ellis apresentam uma triunfante versão de "Push the Sky Away" gravada, no seu concerto Film Music, em Dezembro de 2019, com a Orquestra Sinfónica de Sydney e os Coros da Filarmónica de Sydney.

 
Nick Cave & Warren Ellis , em  We Are Not Alone (La Panthère des Neiges).
A Pantera da Neve é um documentário francês realizado por Marie Amiguet e Vincent Munier e lançado em 2021. Acompanha a viagem de Vincent Munier e Sylvain Tesson no Tibete, em busca do leopardo-das-neves. É uma adaptação da história A Pantera da Neve, de Sylvain Tesson, vencedor do Prémio Renaudot 2019. Estreado na secção Cinema para o Clima do Festival de Cannes 2021, o filme venceu o César de melhor documentário nos Césars 2022, além do Lumière de melhor documentário nos Lumières 2022.