16.08.99, S. Pedro – Longa ausência deste diário. Vamos ver se me torno mais assíduo. A verdade é que me não tem apetecido. O país está tão surrealista, os “colunistas” quase sempre tão “off the mark”, a classe política tão pífia e tão pirosa, que, por higiene, evito falar em tudo isto. E, para me pôr a dissertar sobre o sexo dos anjos, também não vale a pena.
Comprei, há dias, o 4º volume (Pléiade) da correspondência do Flaubert. A França de que ele fala (e que vomita) é igualmente o centro da “bêtise”, que ele não hesita em apelidar de “cafraria”. Por todas aquelas páginas vigorosas, desassombradas e vingadoras, perpassa o imenso nojo que tudo aquilo provocava no autor da Éducation Sentimentale. Como eu o compreendo!
1.01.2000, S. Pedro – Como não é de surpreender, entrámos, aqui em casa, no mítico 2000, do modo mais prosaico e anti -climático. A Geninha e as miúdas regressaram ao Porto ontem de manhã. De modo que ficámos em casa eu, a A., a minha mãe e o meu sogro. Este quis ir para sua casa, logo a seguir ao jantar. Eu, a mãe e a A. ainda brindámos ao novo ano, embora me sentisse agoniado e profundamente mal disposto. Espreitámos o fogo de artifício na marginal e regressámos a casa. A A. foi acabar de ver um filme (mau) e eu, cheio de frio, fui deitar-me a ler (pouco tempo). Aqui têm os senhores anunciadores de portentos, raios e coriscos, para este portentoso ano, o relato dos meus portentos caseiros. O novo ano não trouxe milagres nem catástrofes nem surpresas. Um calendário é um calendário. (…) Produzido por homens para uso dos homens. Não há prodígios.
Passei o dia a transportar o meu sogro entre Oeiras e S. Pedro, a almoçar, a jantar, a ouvir música e a ler (teatro de Montherlant e Adolescentes, de Casais Monteiro – para o qual vou, amanhã, redigir um prefácio.) Se eu fosse um intelectual português típico, declarava ter estado a ler a Divina Comédia ou a Odisseia ou a Bíblia (com ênfase no “Velho Testamento”). Mas li apenas aquilo que li – até porque o dia 1 de Janeiro do ano 2000 é um dia como outro qualquer, na sucessão infindável dos dias, a qual é qualquer coisa que nenhum de nós sabe muito bem o que seja: provavelmente, apenas uma criação do cérebro do homem. (Além do mais, o teatro de Montherlant não fica de todo envergonhado nem ao lado da Divina Comédia nem ao lado da Bíblia. E é, seguramente, mais empolgante do que a obra do Dante…)
Sinto-me mais velho do que há algum tempo atrás. Mas ainda cheio de energia, apesar de tudo. E com a convicção absurda de ainda não ter escrito o livro ou livros que me hão-de definir.
Dentro de três semanas, a minha mãe faz 93 anos. Os deuses não permitam que eu lhe copie a proeza. Muitas coisas ainda me apetecem, mas há limites para o apetite mais destemido.
Montherlant – um enorme escritor de que hoje ninguém fala, nem mesmo em França. Falam ainda de Sartre (embora cada vez menos). Que, como escritor, ao lado de Montherlant, simplesmente não existe. Assim vai o juízo da tão celebrada posteridade. A apreciação do mérito, hoje mais do que nunca (e a uma escala monstruosa), é obscenamente distorcida pelo mediático. Ser ou não ser mediático, eis a questão.
Luis Osório (jornalista) acaba de publicar um livro intitulado Portugueses. Trata-se de 25 portugueses supostamente significativos do nosso tempo. Desses 25, 13 são políticos ou ligados à política. Os outros são quase todos “mediáticos”. (…) Maria de Sousa, José Mattoso, Mariano Gago, (…), Sophia ou Eugénio de Andrade (…) são alegremente “descartáveis”. Mas vamos ter, em breve, com certeza, a Maria Elisa, a Catarina Furtado e o João Baião – tudo rapazes e raparigas que tornam o nobre povo imensamente imortal. Não há como saber escolher.
(….)
4.01.2000, S. Pedro – (…)
Quando Maeterlink deu à luz La Princesse Maleine, Mirbeau não esteve com meias medidas: “Enfin, M. Maurice Maeterlink nous a donné l’oeuvre la plus géniale de ce temps, et la plus extraordinaire et la plus naïve aussi – oserai-je dire? – supérieure en beauté à ce qu’il y a de plus beau dans Shakespeare.” Quem lê hoje Maeterlink? Quem fala nele? Quem o representa? Quem sabe que ele existiu? Aviso ao ego cada vez mais arrogante do Saramago – e dos seus pimpões apoderados… [2015: como se vê, a “posteridade” atira para o caixote do lixo, tanto os verdadeiramente grandes – Montherlant – como os falsos grandes – Maeterlink. Com a diferença de que, sobre Montherlant, nunca nenhum Mirbeau emitiu, em vida dele, as ejaculações exorbitantes que este dedicou ao autor do Pássaro Azul…
P. S. – Maeterlink também ganhou o Nobel.]"
3.01.2001, S. Pedro – O Fanito [Delfim Epifânio Lisboa], que chegou do Maputo, há pouco mais de um ano, faleceu, de um ataque cardíaco, no dia 30 do mês passado. Tinha 83 anos, nascera em Moçambique, onde sempre vivera e de onde nunca saíra, até ao ano passado. Era irmão (mulato) do meu pai e vivera sempre um pouco aparte, embora acarinhado pelos irmãos e irmãs. Há pouco mais de um ano, quando fui a Moçambique, encontrei-o em pânico, a querer urgentemente vir-se embora (de facto, tinha já tudo organizado para vir para Portugal – e fê-lo, pouco depois da minha própria partida de lá.) Tinham-lhe assaltado a casa (situada numa zona periférica, a Machava), à noite, enquanto dormia, e o pânico tomou-o de assalto. (Aos 82 anos, as pessoas, com os poderes diminuídos, sentem-se intoleravelmente vulneráveis.)
Viera enterrar-se em Alverca, num meio que lhe era estranho, num clima que lhe era hostil, afastado de tudo quanto, durante 82 anos, lhe fora a própria vida. Tinha, é claro, o apoio dos filhos e netos, mas é sabido o fosso que separa os que vão morrer dos que vão continuar a viver.
O Fanito fora, para mim e para os meus irmãos, na nossa infância e alguma adolescência, aquele tio “outsider”, a que se acha uma especial graça e de quem se gosta particularmente. De vez em quando, aos sábados, eu e os meus irmãos, a vivermos na extrema ponta pobre de Lourenço Marques (na Mendonça Barreto, a perpendicular limite à 24 de Julho), descíamos a “barreira” inculta que ficava a dois passos da nossa casa e íamos “ver o Fanito”. Que vivia numa casita pobre, de um bairro pobre e “exterior” – que nos fascinava: a galinha (mesmo pobre) da minha vizinha é sempre melhor do que a minha. Comíamos com ele e contava-nos histórias, com uma paciência de santo. Era um bom, o artigo genuíno, quimicamente puro. Um daqueles poucos seres que redimem a raça humana. Fora educado na Ilha de Moçambique, na Escola de Artes e Ofícios, onde tirou o curso de encadernador. No regresso a Lourenço Marques, com 17 anos, o meu pai arranjou maneira de o colocar na Imprensa Nacional, onde trabalhou toda a vida e onde se reformou. Era um bom profissional e tenho vários livros encadernados por ele, dos quais destaco – et pour cause! – a edição portuguesa, da Inquérito, de Le Rouge et le Noir, de Stendhal, em magnífica tradução de José Marinho; e também, três grossos volumes de A Voz de Moçambique. O mesmo é dizer que o Fanito, mesmo morto, está sempre comigo.
Tímido, até ao inconcebível, casou-se com uma mulher lindíssima e teve dois filhos.
Quando veio a independência, não quis vir para Portugal, por ter receio de que o perseguissem, ao pedir para abandonar Moçambique (e as coisas, na altura, davam para que se pensasse nisso: nascido lá, ele ficara “automaticamente” moçambicano e nunca rejeitara essa nacionalidade, o que tornava a sua situação “delicada”).
Diz-me o filho (Jorge) que o Fanito, durante este último ano, lia o tempo todo e via televisão . Mas pressinto que se terá sentido um pouco vendido neste “país incompreensível” (ver Montherlant, Le Chaos et la Nuit: o protagonista, um anarquista espanhol a viver em Paris achava a França um “país incompreensível”), com um pé cortado, devido a uma gangrena num dedo mal cuidado – herança do Maputo - , movimentos limitados e a televisão que há. Parece, no entanto, que se entretinha. E estava fora de perigo.
O destino dos Lisboas. O meu pai, oriundo de Alcobaça, viveu quase toda a vida em Moçambique (o único país, para ele, “compreensível”!) e foi, com 71 anos, morrer a Joanesburgo, onde ficou enterrado. Exílio na morte – c’est pas juste. O tio Fernando (irmão do meu pai), a mesma coisa: filho adoptivo de Moçambique – enterrado em Joanesburgo, onde viveu os últimos anos, numa espécie de exílio. O Fanito – Alverca. O meu irmão Ilídio, nascido, alimentado, educado e vivido quase até à reforma, em Lourenço Marques – morto e enterrado em Queluz. A minha tia Maria, que passou mais de 50 anos em Moçambique - enterrada em Coimbra. Até a minha gata – a esplendorosa Alexandrovna Ivanovna Petrovska Ivinskaia – que teve, comigo, um longo “love affair”, em Lourenço Marques, terra “compreensível”, acabou exilada e enterrada em Joanesburgo. [2015:Last but not least, a minha mãe nada, criada e vivida em Moçambique, veio para Portugal, com 70 anos aqui vivendo até aos 96 anos, tendo ficado sepultada em S. João do Estoril. Sem falar nas três irmãs do meu pai, trasladadas, sobre o tarde, do país “compreensível” para o país “incompreensível”, onde ficaram, para sempre, sepultadas.] Raça de exilados, mas exilados, no fim, na morte e na sepultura.
O Fanito. Conta-me a minha mãe (ainda viva, neste ano de 2001, […]), conta-me a minha mãe que o Fanito, quando era garoto, se estava com febre e lhe dava o frio [paludismo?], ia para o sol aquecer-se. Isto, não sei porquê, põe-me um nó na garganta. Que mundo é este?
Segundo uma filosofia vigente, a única qualidade digna de nota, isto é, de visibilidade, é a dos políticos e a dos mais ou menos mundanos colunáveis (nestes se incluindo, com imensa notoriedade, os futebolistas, treinadores e presidentes de clubes de futebol). O discreto mas profundo investigador, o escritor de grande gabarito mas não “best-seller” (ou, se preferirem, “besta célere”) – não são dignos de nota, isto é, de pequeno écran. De aí, a enormidade proferida, há dias, por Edite Estrela (e corroborada por Jorge Coelho), a propósito da actividade jornalística de Carrilho. Segundo ela, Carrilho não existia – porque não existia, mediaticamente – antes de a política o fazer existir. O que fizera como académico e investigador não contava mediaticamente. E, não contando, mediaticamente, não contava tout-court. Portanto, Carrilho estaria a “aproveitar-se” de uma visibilidade política de curta duração, para continuar a existir, sem direito a isso, agora que já não era ministro. O mérito outro que ele tivesse e que a actividade política apenas revelara era inexistente e não colunável. O comentário político que ele agora fazia – de modo acutilante e brilhante – dava-lhe uma notoriedade que era uma usurpação. É muito curioso este ponto de vista, altamente revelador da sociedade em que vivemos. Segundo este critério de avaliação, Bárbara Guimarães ou Catarina Furtado ou Teresa Guilherme são mais importantes do que Alexandre Quintanilha ou Sousa Sobrinho. É a televisão que, em última análise, consagra os cidadãos – sobretudo a assiduidade na aparição no “petit écran”. Fora da televisão e, em menor grau, dos jornais (sobretudo, dos piores), não há vida ou, pelo menos, não há glória. É isto que se pretende passar, subliminarmente, para o subconsciente das pessoas. E tem passado. E como!
É daqui que resulta o espectáculo patético dado pelos que, tendo valor real e profundo, acham, que lhes é necessário aparecerem várias vezes por semana (nos jornais – vários - , na rádio, na televisão), sob risco de “anéantissement” (…). Eles sabem que o seu reconhecimento, melhor, a sua certidão de vida depende destes critérios produzidos por outros que lhes são inferiores. Mas, entrando no jogo, ajudam a perpetuar as regras vigentes. (É um espectáculo de um grotesco eminentemente fruível assistir ao namoro que tantos “scholars” de valor fazem aos media ou àqueles que, nos media, parecem ter poder.)"