sábado, 6 de janeiro de 2018

Numa casa de espelhos

Numa casa de espelhos
Por Desidério Murcho

As Vidas dos Animais, de J. M. Coetzee
Tradução de Maria de Fátima St. Aubyn
Temas e Debates, 2000, 134 pp.

“Esta é uma obra intrigante que se parece um pouco com uma casa de espelhos. Convidado pela Universidade de Princeton para proferir uma série de conferências, Coetzee subverte a ideia de conferência e em lugar de apresentar uma série de ensaios literários, como é habitual, apresenta uma ficção: um pequeno conto dividido em duas partes, respectivamente intituladas "Os Filósofos e os Animais" e "Os Poetas e os Animais". Mas — e é aqui que o jogo de espelhos começa — o conto é sobre uma romancista que é convidada por uma universidade para proferir uma conferência. Mas a conferencista, ao invés de proferir uma conferência sobre literatura, como seria de esperar, escolhe o tema dos direitos dos animais, apresentando duas conferências. Estas duas conferências são-nos apresentadas na íntegra, com interlúdios que relatam a difícil relação que a romancista tem com o seu filho (professor na universidade em questão) e com a nora, que é especialista em filosofia da mente e extremamente crítica em relação às ideias da romancista quanto aos direitos dos animais.
O jogo de espelhos não se fica por aqui. O pequeno conto de 56 páginas é complementado com 4 reflexões de outros tantos especialistas em diversas áreas do conhecimento, que discutem a forma e o conteúdo da história da romancista inventada por Coetzee. Assim, na sua totalidade, As Vidas dos Animais não é apenas uma narrativa dentro de uma narrativa, é uma narrativa dentro de uma narrativa que inclui críticas diversificadas a ambas. Mais surpreendente ainda é o texto de um dos especialistas — o filósofo Peter Singer — que resolve subverter uma vez mais os géneros e em vez de apresentar um ensaio sobre as questões filosóficas dos direitos dos animais presentes no conto de Coetzee, apresenta… um pequeno e excelente conto em que ele discute com a sua filha as ideias da romancista inventada por Coetzee. Magnífico!
A romancista apresentada por Coetzee é uma mulher idosa que exibe uma amargura resignada relativamente ao modo como os seres humanos tratam os animais, matando-os e fazendo-os sofrer, como se fossem objectos inanimados que podemos usar para satisfazer os nossos prazeres mais egoístas e irrelevantes — como um bife tenro ou uns sapatos macios de cabedal. Ela tem a sensação de que os argumentos filosóficos são insusceptíveis de fazer as pessoas mudar de hábitos, e de as levar a deixar de fazer sofrer os animais e de os usar como se fossem objectos inanimados. Curiosamente, esta ideia é contrariada pela própria história do movimento de libertação dos animais, que recebeu um impulso decisivo em 1975, aquando da publicação do livro Libertação Animal, de Peter Singer. Por outro lado, a romancista de Coetzee está cada vez mais convencida de que são gritantes as semelhanças entre o que fazemos aos animais e o que os nazis fizeram e teriam continuado a fazer aos judeus caso tivessem ganho a guerra. Muitas pessoas acham esta ideia insultuosa e um dos personagens do conto de Coetzee recusa-se precisamente a participar no jantar oferecido à romancista pela universidade precisamente por se sentir ofendido com a analogia.
Através da sua personagem, Coetzee discute ideias de filósofos como Descartes, Thomas Nagel, Bernard Williams, Mary Migdley e Aristóteles, entre outros. A literatura faz muitas vezes incursões na filosofia — e ainda bem — mas infelizmente, regra geral, essas incursões são pouco mais do que patéticas. E é o que acontece neste caso. Ler o que Coetzee pensa acerca de Nagel ou Descartes é pouco diferente de ler o que um mau aluno do ensino secundário pensa: muita confusão, pensamentos irreflectidos, non sequiturs e a incompreensão básica que as pessoas sem uma formação adequada em filosofia normalmente têm dos problemas, das teorias e dos argumentos da filosofia. Fez-me lembrar os disparates de Jorge Luís Borges sobre George Berkeley, que o interpreta de forma tão tola que é risível. É pena.
O conto de Coetzee é complementado com discussões do filósofo Peter Singer, como já referi, mas também de uma especialista em teoria da literatura, uma primatóloga e uma especialista em estudos religiosos. Os melhores textos são os da primatóloga e de Peter Singer, pela inteligência, pertinência e elegância. O conto é precedido de uma introdução de Amy Gutman, que relata as circunstâncias que lhe deram origem, fazendo também uma sinopse das ideias da romancista apresentada por Coetzee, assim como das quatro discussões incluídas no volume.
Estamos perante uma obra que transgride as fronteiras entre romance e ensaio, integrando os romancistas no debate internacional de ideias — e retirando-os do solipsismo bacoco em que o romantismo alemão os deixou, preocupadinhos com a sua alminha e as suas angustiazinhas de trazer por casa. Apesar das fragilidades que Coetzee revela na compreensão da filosofia, trata-se de um volume de leitura obrigatória, quer pela forma inovadora, quer pelo conteúdo que faz pensar. A tradução tem a marca da qualidade de Maria de Fátima St. Aubyn."
Desidério Murcho, em artigo publicado na revista Livros, n.os 11/12, Julho de 2000.

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