sábado, 5 de agosto de 2017

Um espírito devotado à arte

Os Cegos - Karl Hofer, 1948
A Colecção Invisível
Por Stefan Zweig
«Não foi difícil encontrar a sua residência. Ele morava no segundo andar de um daqueles sóbrios edifícios provincianos que um construtor especulador devia ter erguido às pressas sem bons alicerces por volta dos anos 1860. No primeiro andar vivia um respeitável alfaiate; à esquerda, no segundo andar, brilhava a placa de um chefe dos correios; à direita, finalmente, a plaqueta em porcelana com o nome do conselheiro florestal.
Ao meu hesitante toque de campainha, abriu de imediato a porta uma senhora muito idosa com os cabelos brancos cobertos por uma esmerada touquinha preta. Apresentei-lhe o meu cartão de visita e indaguei se o conselheiro me poderia  receber. Admirada e de certo modo desconfiada ela olhou primeiramente para mim, depois para o cartão: naquela cidadezinha perdida e na modesta residência uma visita forasteira parecia ser um acontecimento extraordinário. Mas ela me pediu cordialmente para aguardar um instante, pegou o cartão e seguiu ao cómodo contíguo. Ouvi  cochichos, e logo em resposta uma expansiva voz masculina exclamou em alto e bom som:
Ah! O Sr. R. de Berlim, da conhecida loja de antiguidades, pois que entre, que entre! É um prazer!
A boa velhinha retornou com passos miúdos e  pediu-me para a acompanhar à sala de estar. Tirei o agasalho e entrei. No centro da modesta sala, um homem de idade, mas ainda robusto, com espesso bigode, enrolado num roupão como um soldado no uniforme, mantinha-se de pé aprumado e me estendia ambas as mãos com cordialidade. Esse gesto claramente hospitaleiro de franca e afável saudação contrastava porém com uma estranha rigidez da postura. Ele não se adiantou ao meu encontro, e um pouco surpreendido tive que me aproximar dele para apertar-lhe a mão. Quando quis alcançá-la, porém, vi que as mãos imóveis na horizontal não buscavam as minhas, mas as esperavam. Naquele momento entendi tudo: o homem era cego.
Desde minha infância sempre experimentei uma sensação desagradável ao lidar com um cego. Nunca conseguia reprimir uma espécie de perturbação e constrangimento por sentir a pessoa viva que por sua vez não me sentia como eu a ela. Nessa ocasião, eu me dominava com calafrios olhando esses olhos apagados que fitavam o vazio sob as sobrancelhas brancas e hirsutas. Mas o cego não me deixou muito tempo para a surpresa, pois mal minha mão tocou a sua, ele sacudiu a minha com vigor e me repetiu as boas-vindas com seu jeito efusivo e agradavelmente expansivo.
— Uma visita excepcional — disse ele sorrindo para mim. — É incrível que um dos importantes homens de Berlim se aventure por nossas paragens… É preciso ficar de sobreaviso quando um cavalheiro berlinense se dá ao trabalho de vir até aqui. Em casa ,dizemos sempre que é necessário trancar as portas se os ciganos chegam. É, eu posso logo imaginar por que o senhor vem à minha procura. Os negócios vão de mal a pior no momento em nossa pobre e arruinada Alemanha, não há mais compradores, e assim os comerciantes que se prezam reconsideram novamente sua velha clientela e saem no seu encalço como ovelhinhas. Temo que no meu caso o senhor não terá sorte, pobres de nós, idosos aposentados, já nos damos por contentes quando conseguimos o pão de cada dia. Em virtude dos preços absurdos que vocês cobram hoje em dia, não podemos comprar nada. Pessoas como nós estão definitivamente fora do circuito.
Apressei-me a esclarecer que ele me entendera mal. Eu não viera vender coisa alguma, estava simplesmente de passagem pelas imediações e não quis perder a oportunidade de render visita a um dos nossos mais antigos clientes, e um dos maiores coleccionadores da Alemanha.
Nem bem eu pronunciara as palavras ‘um dos maiores coleccionadores da Alemanha’, uma estranha metamorfose se operou no rosto do velho senhor. Ele continuava aprumado, imóvel no centro da sala, no entanto uma expressão súbita de iluminação e orgulho interior o animou. Virou -se na direcção onde supunha encontrar a mulher, como se quisesse lhe dizer ‘Ouviu isso?’. E, renunciando ao rígido tom militar que usara a princípio,  voltou-se para mim com suavidade:
— Isso é realmente muito amável de sua parte. Asseguro que o senhor não terá feito a viagem em vão. Há de admirar algo que não se pode ver todo dia, nem mesmo na sua opulenta Berlim, algumas estampas como nem no Albertina ou na maldita Paris se encontrará mais belas. É. Quando se colecciona sessenta anos a fio acaba-se seleccionando objectos que não se encontra em qualquer esquina. Louise,  dê -me a chave do armário!
Foi quando sucedeu algo inesperado. A velha senhora, que se encontrava ao lado dele e assistira com polidez e um sorriso discreto à nossa conversa, levantou de repente ambas as mãos para mim num gesto suplicante e ao mesmo tempo fez com a cabeça um movimento violento de negação, sinal que de início eu não estava entendendo. Logo em seguida ela chegou mais perto do esposo e lhe pousou amavelmente as mãos sobre os ombros:
— Mas Herwarth — advertiu —, você nem perguntou ao cavalheiro se ele está com tempo para ver agora a colecção. Já é quase meio-dia. Após o almoço  deve repousar por uma hora, foi o que o médico prescreveu expressamente. Não seria melhor se  lhe mostrasse todas as coisas depois do almoço, e então nós poderíamos tomar juntos o café? A Annemarie estará aqui, ela está mais a par de tudo para ajudá-lo!
De novo, mal dissera essas palavras, ela repetiu o insistente gesto de súplica por sobre os ombros do marido, sem que ele suspeitasse de nada. Enfim a entendi. Eu deveria recusar ver a colecção naquele momento, então aleguei sem demora um compromisso para o almoço. Seria um prazer e uma honra poder conhecer a colecção, mas isso não seria possível antes das três horas, quando eu certamente poderia retornar com gosto.
Contrariado como uma criança de quem se toma o brinquedo predilecto, o velho replicou:
— Naturalmente — resmungou —, os homens de Berlim nunca têm tempo para coisa alguma. Dessa vez, porém, o senhor precisa arranjar algum tempo, pois não se trata de três ou cinco peças, mas sim de 27 pastas, cada uma reservada a um artista, e todas bem recheadas. Portanto, nos vemos às três horas, mas seja pontual, senão não chegaremos ao fim.
De novo ele estendeu a mão a esmo na minha direcção.
— Devo adiantar que ou o senhor vai se alegrar, ou se aborrecerá. Quanto mais se aborrecer, mais me alegrará. Nós coleccionadores somos sempre assim: tudo para nós mesmos e nada para os outros!
E ele voltou a  apertar-me a mão vigorosamente.
A senhorinha conduziu-me à porta. O tempo todo eu havia reparado nela certa inquietação que expressava uma angústia dissimulada. No instante em que eu estava prestes a sair, ela balbuciou com voz embargada:
— Será que… Será que nossa filha Annemarie poderia ir buscá-lo ao hotel e trazê-lo até aqui? Isso seria bom por várias razões… O senhor almoçará no hotel, não é mesmo?
— Claro, por que não? Será um prazer! — respondi.
De facto, uma hora mais tarde, eu acabara de terminar minha refeição no pequeno hotel da praça do Mercado, quando uma moça mais velha vestindo roupas simples se adiantou pela sala de jantar com ar de quem procura alguém. Apresentei-me e declarei que estava pronto a ir com ela para conhecer a colecção do seu pai. Mas, enrubescendo subitamente, e com o mesmo constrangimento que sua mãe demonstrara, ela indagou se antes ela não poderia conversar um pouco comigo. Vi logo que lhe era difícil abordar o assunto. Toda vez que ela tomava fôlego e tentava falar, o rubor subia pelo seu rosto até a testa e as mãos se crispavam na bainha da roupa. Até que finalmente ela começou, titubeante e sempre perturbada:
— Minha mãe  pediu-me que viesse. Ela  contou-me tudo e… nós gostaríamos de lhe pedir um favor… Nós gostaríamos de informar, antes que o senhor se encontre com nosso pai… O pai quer evidentemente mostrar-lhe  a coleção, e a colecção… a colecção… ela não está mais completa… Falta uma série de gravuras… infelizmente uma parcela bem numerosa…
Mais uma vez precisou tomar fôlego, então ela olhou-me de súbito e disse rapidamente:
— Preciso ser franca com o senhor… o senhor sabe o tempo em que vivemos, compreenderá tudo. Logo após a eclosão da guerra, o pai perdeu completamente a visão. Já antes disso ele tinha muitas vezes problemas de vista, mas a agitação acabou cegando-o de todo. Não obstante seus setenta e seis anos de idade, ele ainda quis partir para a França. Constatando que o exército não avançava tão bem como em 1870, foi tomado por grande agitação e com isso a sua visão declinou num ritmo vertiginoso. Afora isso, a saúde dele está perfeita. Até há pouco tempo caminhava ainda durante horas, inclusive ia às suas adoradas caçadas. Mas agora acabaram-se os passeios e a única alegria que lhe resta é a colecção que ele todos os dias revê… Ou, melhor dizendo, não vê mais, nada mais ele vê, mas todas as tardes ele reabre todas as pastas para pelo menos tocar as gravuras, uma após outra, ordenadas na mesma sequência que ele conhece há décadas de cor e salteado. Nada mais lhe interessa  e hoje em dia, preciso estar sempre lendo-lhe os anúncios no jornal sobre leilões, e quanto mais ele ouve sobre a alta dos preços mais se alegra, pois… Isso é o mais terrível: o pai não entende mais os preços e a situação actual. Ele ignora que perdemos tudo e que com o valor de sua pensão não poderíamos sobreviver senão dois dias do mês. Isso não é tudo! O marido de minha irmã morreu na guerra e ela ficou com quatro crianças pequenas. O pai, como o senhor vê, ignora nossas dificuldades materiais. No início nós economizamos, economizamos mais do que já economizávamos antes, mas em vão. Em seguida começámos a vender; não tocávamos na estimada colecção. Vendemos as poucas jóias que possuíamos. Meu Deus! Não era grande coisa, se durante sessenta anos o pai gastara até a última moeda de nossas economias na compra das gravuras. Nós não tínhamos mais recursos, e assim a mãe e eu vendemos uma das estampas. O pai não teria permitido, ele não sabe como a vida está difícil, não tem noção da dificuldade de se conseguir no mercado negro o parco alimento, ele não sabe que perdemos a guerra e a Alsácia-Lorena. Nós não lhe lemos mais  essas notícias, para evitar que se agite.
Foi uma obra preciosa a que vendemos, uma água-forte de Rembrandt. O antiquário nos ofereceu milhares de marcos e tínhamos a esperança de que nos sustentaria por alguns anos. Mas o senhor sabe como o dinheiro se esvai. Depositámos o banco, e dois meses depois já não restava nada. Logo foi necessário vender mais uma obra, e mais uma. O comerciante atrasava tanto o pagamento que quando o recebíamos tinha perdido muito o  seu valor. Tentámos então participar nos leilões, mas também nesse caso nos ludibriaram, apesar dos preços milionários. Quando os milhares por fim nos chegavam , não passavam de papéis sem valor. Assim aos poucos foi desaparecendo o melhor da colecção, salvo uma ou duas peças, unicamente com o fito de nos permitir sobreviver de modo precário, e nosso pobre pai nada sabe disso.
Por isso minha mãe se assustou hoje quando o senhor se apresentou. Se ele lhe mostrasse as pastas, então tudo teria vindo à tona. Pois nós inserimos nos velhos passe-partouts, que ele reconhece pelo tacto, reproduções ou folhas com texturas semelhantes àquelas imagens vendidas, de maneira que ele não nota quando passa a mão. Mesmo que só possa tocá-las e conferi-las (ele se recorda perfeitamente da sequência de sua classificação),  experimenta a mesma satisfação de antigamente, quando as via com seus próprios olhos. Em geral não há ninguém nesta cidade a quem o pai tenha julgado digno de mostrar seus tesouros. Ama cada uma das gravuras com um amor tão entusiasmado que seu coração certamente se partiria de dor se suspeitasse que aquilo que crê entre seus dedos há muito se evaporou. O senhor é o primeiro em todos esses anos, desde que o antigo director do Gabinete de Gravuras de Dresden morreu, a quem ele acredita ter a honra de mostrar a sua colecção. É por isso que lhe suplico…
De súbito, a jovem envelhecida ergueu as mãos, seus olhos cintilavam húmidos.
— … nós lhe pedimos que não o faça infeliz, não nos faça infelizes, destruindo essa última ilusão; ajude-nos a fazê-lo acreditar que todas essas folhas que ele descreverá de facto correspondem ao que diz. Ele não sobreviveria se duvidasse disso. Talvez tenhamos agido mal com ele, mas não tinha outro jeito; é preciso viver… e as vidas humanas de quatro crianças órfãs como as de minha irmã são mais importantes que xilogravuras… Até hoje nós nunca o privamos das suas alegrias; ele está contente de poder folhear as pastas todas as tardes durante três horas, conversar com cada uma das gravuras como com um amigo. E o dia de hoje poderia ser para ele o mais glorioso, pois há anos ele espera a oportunidade de mostrar o seu tesouro a um perito. Por favor, peço de mãos juntas, não o prive dessa alegria!
Tudo isso foi dito com uma voz bastante emocionada, de um modo que minhas palavras não são capazes de recontar. Meu Deus, como negociante, encontrei muitas dessas pessoas vergonhosamente pilhadas, enganadas vilmente pela inflação, cujo precioso património ancestral foi surripiado por um pedaço de pão. Mas nesse caso o destino confrontava-me com uma situação especial que me tocava profundamente. Claro que prometi à menina que guardaria o segredo e faria o melhor que pudesse.
Dirigimo-nos juntos para a casa deles. A caminho ainda me inteirei indignado da bagatela que tinham pago pelas obras a essas pobres mulheres ignorantes, o que no entanto somente veio reforçar meu propósito de fazer o máximo por elas. Subimos a escadaria, nem sequer tínhamos entrado e já ouvíamos vindo da sala de estar a voz amigável e ruidosa do ancião:
— Entrem! Entrem!
Com os seus sensíveis ouvidos de cego ele deve ter escutado os nossos passos desde a escadaria.
— Herwarth não pôde pregar os olhos de tanta ansiedade para lhe mostrar os seus tesouros — disse a velha senhora sorrindo.
Uma simples troca de olhares entre mãe e filha bastou para sossegá-la quanto à minha aquiescência. Em cima da mesa estavam espalhadas as pilhas de pastas e, tão logo sentiu minha mão, o cego me puxou pelo braço e me fez sentar na poltrona.
— Bem, e agora vamos começar, é muita coisa para se ver, e os senhores de Berlim nunca têm tempo. Essa primeira pasta aqui é de Dürer e, como haverá de se convencer, está bem completa: cada exemplar mais lindo que o outro. Julgue por si mesmo! Vamos lá.
Ele abriu a pasta na folha denominada O grande cavalo. Com o extremo cuidado com que se toca um objecto frágil, retirou da pasta um passe-partout no qual uma folha amarelada de papel em branco estava emoldurada e, delicadamente, com as pontas dos dedos, ergueu entusiasmado até à frente dos olhos apagados o papel sem valor. Contemplou-o por alguns instantes sem o ver de facto, mas segurando extasiado a folha branca na mão esticada à altura dos olhos, o rosto exprimindo o êxtase do encantamento. E em seus olhos que fitavam como estrelas de luz extinta perpassou de repente — teria sido o reflexo do papel ou um brilho interior? — uma cintilação luminosa, uma luz omnisciente.
— Bem — disse ele orgulhoso —, o senhor algum dia viu uma reprodução tão primorosa? Como é nítida, com que clareza os mínimos detalhes se destacam. Comparei essa cópia com o exemplar de Dresden que, ao contrário, me pareceu impreciso e fosco. E repare na proveniência aqui no canto.
E ele virou a folha e indicou com a unha os pontos precisos no verso do papel em branco, de sorte que involuntariamente procurei, para ver se as marcas não estariam mesmo ali.
— Eis o carimbo da colecção Nagler, bem como o de Rémy e Esdaile. Meus ilustres predecessores não poderiam jamais imaginar que tal obra viria um dia parar num apartamento simples como este.
Um calafrio me percorreu a espinha enquanto ele enaltecia assim animado um papel completamente em branco. E era fantasmagórico acompanhar como ele apontava com a unha do indicador, numa precisão milimétrica, todos os invisíveis carimbos dos coleccionadores que continuavam a existir apenas em sua imaginação. Com a garganta apertada pelo horror, eu não sabia o que responder. Mas quando, confuso, olhei para ambas as mulheres trémulas e ansiosas, percebi de novo as suas mãos suplicantes erguidas. Contive-me e comecei a desempenhar meu papel.
— Impressionante! — consegui finalmente balbuciar. — Uma cópia magnífica.
E logo todo o seu semblante irradiou de orgulho. Ele triunfava:
— Isso é apenas o começo! O senhor ainda há de ver a Melancolia e até mesmo a Paixão, um exemplar iluminado quase singular em qualidade. Veja por si mesmo — e mais uma vez os dedos tacteavam os contornos imaginários — o frescor e o calor da textura. Seria um alvoroço entre os senhores antiquários e directores de museu de Berlim!
E assim prosseguiu esse triunfo deslumbrado e loquaz durante umas boas duas horas. Não, não sou capaz de lhe descrever quão assustadora foi essa apresentação de cem ou duzentas folhas de papel em branco ou reproduções miseráveis, as quais na lembrança daquele trágico homem que de nada suspeitava, porém, eram tão incrivelmente reais que ele as descrevia e as elogiava nos  mais minuciosos detalhes sem equívocos, na perfeita sequência de cada uma. A colecção invisível há muito tempo disseminada pelos quatro cantos do mundo ainda existia intacta para aquele cego, para aquele homem enganado de modo comovente. E a paixão visionária tinha algo de impressionante que quase me levava a acreditar nela. Uma única vez o risco da terrível revelação ameaçou a segurança  de seu entusiasmo alucinado. Ele elogiara novamente o refinamento da Antíope, de Rembrandt (sem dúvida essa obra devia ter um valor inestimável), e nisso seus dedos acurados roçaram com amor as linhas da gravura, mas sem que através do tacto pudessem perceber as nervuras primorosas daquele papel estranho. Então uma nuvem toldou por um instante  seu semblante, a voz titubeou:
— Essa é mesmo a Antíope? — murmurou um pouco embaraçado.
Ao que imediatamente me apressei a tomar-lhe das mãos a folha emoldurada e a descrever em todas as suas possíveis nuances a gravura naquele momento também para mim bem presente na lembrança. As feições nubladas de cego desanuviaram-se novamente aliviadas. Quanto mais eu elogiava, mais os traços endurecidos e enrugados daquele homem adquiriam uma cordialidade jovial, uma profunda satisfação. Virando-se para as duas mulheres, exclamou:
— Eis alguém que entende do negócio. Enfim vocês também ouvem uma voz confirmando o valor inestimável desses papéis. Vocês sempre me repreenderam com desconfiança por eu ter investido todo o dinheiro nessa colecção. É verdade, durante sessenta anos, nada de cerveja, vinho, tabaco, viagens, teatro ou livro, somente economizando, economizando para as gravuras. Mas verão, quando eu não estiver mais aqui, como ficarão ricas, mais ricas que a cidade inteira, e ricas como os mais afortunados de Dresden. Então ficarão gratas pela minha extravagância. Enquanto eu viver, no entanto, nenhuma dessas obras sai de nossa casa. Primeiro levam-me para fora, só depois a colecção.
Ao mesmo tempo, acariciava docemente, como se fossem seres vivos, as pastas há muito esvaziadas. Cena horrível e ao mesmo tempo tocante para mim, pois em todos esses anos de guerra nunca vira um rosto alemão se iluminar em tão pura expressão de felicidade.
A seu lado estavam as duas mulheres, misteriosamente semelhantes às figuras femininas daquela água-forte do mestre alemão que, indo visitar o túmulo do Salvador, quedam-se paralisadas diante da sepultura aberta e vazia com expressão mesclada de profundo assombro e de êxtase místico e alegre. Assim como nessa imagem as santas mulheres são iluminadas pela intuição celeste, da mesma maneira aquelas duas pobres pequeno-burguesas envelhecidas e fatigadas o eram pela alegria infantil ditosa do velho coleccionador, ora rindo, ora chorando, um espectáculo comovente como eu nunca vivenciara antes.
Ele, porém, não se dava por satisfeito com a minhas louvações, não cessava de buscar e revirar as páginas, sorvendo avidamente cada palavra. Portanto, suspirei aliviado quando por fim as pastas enganadoras foram deixadas de lado e ele, contrariado, precisou libertar a mesa para o café. Mas que importava o meu suspiro cheio de remorso em face da exuberância esfuziante e impetuosa daquele homem como que trinta anos rejuvenescido! Ele contava milhares de anedotas sobre as suas compras e bons negócios. Inebriado e enlevado, como se pelo efeito do vinho, tacteava, recusando qualquer tipo de ajuda, para sempre e mais uma vez procurar uma e outra gravura. Quando eu por fim disse que precisava me despedir, eassustou-se, amuou como criança teimosa e bateu os pés dizendo que não era possível, eu não vira nem a metade da colecção. As duas mulheres tiveram muito trabalho para vencer o seu pesar, argumentando que não poderia prender-me  mais, ou eu perderia o comboio.
Quando depois de desesperada resistência, ele enfim se resignou a me deixar partir, a voz suavizou-se. Tomou-me ambas as mãos, com os dedos acariciando-as com toda a expressividade de um homem cego, como se eles quisessem saber mais de mim e me falar com mais amor do que as palavras são capazes. Com uma emoção perturbadora que jamais esquecerei, disse:
— O senhor me proporcionou uma imensa alegria com a sua visita. Foi mesmo um reconforto finalmente passar em revista minhas preciosas gravuras em companhia de um especialista. Mas esteja certo de que não veio em vão à casa deste velho cego. Eu lhe faço uma promessa, tendo minha mulher como testemunha, de que acrescentarei uma cláusula a meu testamento, dispondo que a sua respeitável casa ficará encarregada da venda de minha colecção. O senhor terá a honra de administrar esse tesouro desconhecido!
A essas palavras ele apoiou a mão com amor sobre as pastas deslapidadas.
— Administrará tudo até o dia em que a colecção se dispersar pelo mundo. Prometa-me que fará um belo catálogo. Ele será a pedra do meu túmulo, não poderia haver melhor lápide.
Olhei para a  esposa e  filha; as duas permaneciam de pé bem juntas, uma vez ou outra um arrepio as percorria como se não formassem mais que um único corpo que vibrava em unânime emoção. Quanto a mim, ressentia algo solene ouvindo desse homem patético e desavisado a promessa de me atribuir como uma preciosidade a administração de sua colecção invisível há muito desaparecida. Comovido, prometi -lhe o que jamais poderia cumprir: novamente em seus olhos apagados perpassou um brilho. Senti a sua íntima esperança procurando se exprimir pela ternura e pelo carinho dos dedos que retinham os meus num gesto de gratidão e promessa.
As mulheres  conduziram-me à porta. Não ousavam falar, porque os apurados ouvidos do ancião teriam escutado o mínimo sussurro, mas quão cálidos, entre lágrimas, quão transbordantes de gratidão brilhavam os seus olhares que me contemplavam cheios de reconhecimento Completamente aturdido, desci os degraus da escada. No fundo estava envergonhado: chegara como um anjo de conto de fadas à casa daquela pobre gente. Durante uma hora permitira que um velho cego enxergasse, nada fazendo além de mentir e endossar um engodo falacioso. Pois eu, na verdade, viera como mesquinho negociante para arrancar dele, com vantagem, um punhado de peças de valor. O que agora levava comigo era mais que isso: fora-me  concedido viver ainda uma vez, num tempo sórdido e triste, a vibração do entusiasmo puro, uma espécie de êxtase pelo espírito inteiramente devotado à arte, como nossos contemporâneos parecem ter esquecido há muito tempo.
E não posso dizer de outro modo, uma veneração respeitosa me invadia, não obstante a vergonha que insistia, sem que eu soubesse exactamente a razão. Já chegara à rua quando no alto uma janela se abriu com estardalhaço e em seguida ouvi meu nome. Realmente o velho homem não conteve o gosto de dirigir seus olhos apagados para mim, na direcção em que me supunha. Ele pendia tanto para fora que as duas mulheres tiveram de segurá-lo por precaução, agitava no alto o lenço e gritava com a voz revigorada de um menino:
— Boa viagem!
Inesquecível para mim esse quadro! O semblante alegre do ancião de cabelos grisalhos lá no alto, à janela, planando acima dos transeuntes ocupados, inquietos e mal-humorados da rua, levemente transposto de nosso mundo real abjecto pela branca nuvem de uma benfazeja loucura. E tive de me lembrar de novo do antigo dito, tão sábio, de Goethe, creio: ‘Os coleccionadores são pessoas felizes.’ »
Stefan Zweig, in Medo e outras novelas, Ed. Record

Sem comentários:

Enviar um comentário