quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Crónica Impossível


Todos os erros podem ser perdoados ao que possui uma verdadeira  candura. 
                                                                              Walt Whitman           
                
África aparece quase todos os dias nos noticiários do nosso país. África, um imenso continente posicionado a sul desta Europa. 
Europa que nos liberta em carimbo de livre trânsito, mas que se interdita e renega o verdadeiro  “génio europeu”.
Desgastada, desirmanada, envelhecida agrega-se em desacordos  que impedem a sobrevivência de um humanismo que  definia a sua identidade.
A Europa da reconstrução,  da concórdia, do porto seguro definha perante a inacção dos seus governantes. Nem Ulisses a reconheceria. Ergueram-se barreiras, construíram-se muros e revitalizaram-se campos para   concentrar quem chega. São os cais dos novos portos de acolhimento. Os cais sem horizonte, sem esperança de saída.
E as gentes gesticulam, choram, gritam, sofrem. Não era esta a Europa sonhada . E de Ítaca já não resta pedra.
Foi assim 2015. Começou em Janeiro. A tragédia prossegue, num crescendo que se tenta, agora, ocultar. As imagens  já não surgem diariamente  nos écrans das televisões. Os atentados , em França, roubaram-lhe o espaço. O terror atingiu as entranhas deste velho continente. Apresentam-se infindáveis registos seguidos de contínuas descobertas.  Os governantes lançam-se em discursos emotivos  e de solene e pesado sentido de estado. A solidariedade tem de ser imposta. É a Europa. E um humanismo tíbio e egoísta ressurge entre muros.
Abater, arrasar, destruir, eliminar. Palavras tortuosas que traduzem novas atrocidades. A anestesia europeia  continua. A vingança leva-a até à terra do novo e bárbaro fundamentalismo.  Lá, onde o desvario, a crueldade são possíveis. Qual cruzada deste  tempo de hedionda realidade.
E as lágrimas  dos que chegam  espalham-se num mar de desespero. Ninguém as vê. Mas de África soam ecos de ilegitimidade. É uma greve de fome que comove. Um caso entre vários. A causa dos Direitos Humanos propala-se pelo nosso país, num ardor catártico. Angola um país africano. Angola em transgressão. Angola , um país onde a fome não permite greves.
Angola , terra de gente anónima que procura sobreviver em busca do pão de cada dia. Angola onde o pão se conquista para rejeitar a fome. Quem luta quer pão. Lutar para ter pão é a promessa diária da gente que labuta nesse chão africano.
E é dessa gente e dessa Angola que esta Crónica rouba o título. A Crónica impossível numa Europa farta que perdeu a chama da caridade, da compaixão, da ternura e de se rever no outro que chega .
Era um dia de chuva, de uma chuva tropical que surge de repente e tudo inunda. Março de 2015, tempo de verão angolano. A baixa de Luanda estava repleta de trânsito. Circular pelas ruas era uma aventura que se tornava um forte desafio para quem andava a pé. Estava encurralada numa dessas ruas. Corria um autêntico rio de água a que não podia fugir.Tinha de o  atravessar. Era a rua, a única saída. Do outo lado, uma quitandeira vendia os seus produtos. Viu-me. Gritou: Espera, mãezinha!
Abandonando o seu posto , meteu-se à água , colocando, no chão inundado, pedras  atrás de pedras, para que pudesse passar. Verificando que não era o suficiente, agarrou-me e quase me levou nos braços até ao outro passeio, inteira e  enxuta. Molhada e  em risco de perder a mercadoria que vendia ,  sorriu como um sol  após a  tormenta. Nada pediu. Apenas um largo sorriso, em jeito de despedida.
Procurei-a, incessantemente, nos dias posteriores. Nunca a encontrei. Nunca mais a vi.
É esta a  gente de Angola. A gente humilde que tenta sobreviver à fome , mesmo quando ela anda à solta.
É este o gesto que se perdeu nesta Europa e  se esqueceu neste canto português.
É este o espírito que se evadiu e que impede que este gesto tivesse ocorrido em Portugal. Seria, aqui, um acontecimento impossível, neste ano de 2015.
Mas se me for permitido sonhar, pedirei a quem tiver esse  poder que permita o regresso da verdadeira candura, em 2016. Talvez os erros possam ser reparados.
                                      Praia da Rocha, 31 de Dezembro de 2015
Maria José Vieira de Sousa

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