sábado, 4 de julho de 2015

As palavras têm honra

Crónica das Palavras
Por Baptista Bastos
"Há muito se perdeu a noção de que as palavras têm honra. Políticos servem- -se delas para mentir, ocultar, dissimular a verdade dos factos e as evidências da realidade. Mas também escritores e jornalistas as debilitam e as entregam às suas pessoais negligências. Não é, somente, uma questão de gramática e de estilo; mas é, também, uma questão de gramática e de estilo. Há escritores e jornalistas que o não são à força de o querer ser. A confusão instalou-se, com a cumplicidade leviana de uma crítica pedânea e de um noticiário predisposto a perdoar a mediocridade e a fraude.
As palavras possuem cores secretas, odores subtis, densidades ignoradas. O discurso político conduz-nos ao nojo da frase. Pessoalmente, tento limpar o reiterado registo da aldrabice e da ignorância com a releitura dos nossos clássicos. Recomendo o paliativo. Eis-me às voltas com as Viagens na Minha Terra. Garrett não era, propriamente, uma flor imaculada. Mas foi um mestre inigualável na arte da escrita. Lembro-o porque, a seguir, revisitei o terceiro volume de As Farpas, onde Ramalho reproduz uma conversa com Herculano. O historiador retratou assim o seu companheiro das lutas liberais: "Por cem ou 200 moedas, num dia de apuro, o Garrett seria capaz de todas as porcarias que quiserem, menos de pôr num papel, a troco de todo o ouro do mundo, uma linha mal escrita."
Desaprendeu-se (se é que, vez alguma, foi seriamente aprendido) o vocabulário da língua. Lê-se o por aí publicado e a pobreza lexical chega a ser confrangedora. Não se trata de simplicidade; antes, desconhecimento, incultura, ausência de estudo. "Foge de palavras velhas; mas não receies o uso de palavras antigas." Recomendava Garrett. Palavras velhas, travestidas de "modernidade", são, por exemplo: expectável, incontornável, enfatizar, implementar, recorrente, elencar, factível, plafonamento, exequível, checar, fracturante, imperdível, abrangente, atempadamente, alavancar, empolamento - e há mais.
Reconheço o meu verdete por certas palavras e expressões. Não é embirração de caturra, nem rabugice de um recta-pronúncia. Será o gosto da palavra, a alegria de com elas trabalhar há longuíssimos anos, a circunstância de ser um leitor com fôlego, o facto de ter tido professores como o gramático e linguista Emílio Menezes, goês paciente, sábio e afável; e de haver frequentado alguns dos maiores escritores do século passado, para os quais o acto de escrever representava moral em acção. Lembro, com emoção e orgulho, Aquilino, José Gomes Ferreira, Miguéis, Sena, Mário Dionísio, Carlos de Oliveira, Manuel da Fonseca, Abelaira.
Esta crónica foi, também, um pretexto para os lembrar."
 Baptista Bastos, em Crónica publicada no DN em 4.02.09

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