terça-feira, 17 de setembro de 2013

Poderia ter sido diferente

Paisagem Com Mulher e Mar Ao Fundo
 “(…) decidir o momento da sua própria morte, ser dono do seu tempo, do seu desespero, assumir o desespero assim andando de vestido claro entre flores de sardinheira, no adro enfeitado com festões de papel, no meio de pessoas que se afadigam montando o tablado da quermesse - à noite haveria o cheiro a flores e a erva pisada, a vinho, a pó, a suor, a pólvora, corpos deslizando, compactos, entre a música alta, alguém grita, sobre o tablado, o número em que caiu a sorte na última rifa e a música apaga a sua voz, sobe de repente, rebenta como foguetes estralejando, uma música alta como uma fogueira acesa, é impossível abrir caminho entre os vultos até ao outro lado do tablado para retirar o que lhe coube em sorte, copo de vidro, jarro de metal, pote de barro, lote de café, pano de mesa, mas o jogo poderia de repente ser outro e o número saído ser o número da morte, e o homem gritar por exemplo do alto do tablado: os que tiverem este número são os que vão ser mortos, ou anunciar ainda mais alto, por entre a música subindo: atenção agora, é uma jogada especial, as mães que tiverem este número são aquelas cujos filhos vão ser mortos – e a tômbola girar de repente na noite, uma tômbola gigante rodando entre a terra e o céu, que de súbito se transforma em carrocel, em grande roda iluminada, de onde os filhos descem devagar, de um outro continente até ao chão, segurando a espingarda e todos mortos.
Crianças meio despidas assomam às portas, chapinham descalças nas sarjetas, sentam-se numa sombra no pequeno jardim ao fim da rua, ao lado de mães que incansavelmente fazem malha, (…) oh, não se apresse, disse à mulher sentada ao lado, afinal tem tanto tempo à sua frente, tanto tempo até perder o seu filho, (…) porque apesar da falta de higiene e da subnutrição já tem bastantes probabilidades de que ele não morra na primeira infância, (…) embora depois possa sempre haver um descuido, (…) milhares de crianças morrem por descuido das mães, (…) mas é razoável admitir que ele terá tempo de crescer e de ir vestindo camisolas de todos os tamanhos e de todas as cores, você parece ser uma mãe eficiente e vigilante, capaz de o proteger de uma morte absurda, excluindo a morte em combate, porque essa claro que não é absurda, mas profundamente repassada de sentido, contra essa nem sequer Deus tem poder algum, porque é a excepção óbvia do segundo mandamento, mas (…) pode ficar tranquila, (…) todas as precauções serão tomadas na escolha do local, na observância da profundidade necessária à sepultura, (…) procurarão as melhores folhas e ramos para dissimular a campa, que por outro lado assinalarão de modo convencional, adaptado a cada caso, mesmo em plena selva, onde os pontos de referência são raros e difíceis, (…) claro que o espólio pessoal lhe será devolvido, sempre que possível, e pagarão todas as despesas do transporte, mas é evidente que não estou a pôr em causa instituição alguma, todas as instituições são, como se sabe, invulneráveis, falo apenas de crianças, da morte dos filhos, é uma conversa à toa, um tema banal e sem importância, muito próprio para falar assim, sem pensar, numa manhã de Verão, enquanto se tricota, (…) mas como eu ia a dizer é tudo sem problemas, (…) você apenas recebe e agradece, porque há também a considerar a pensão de sangue, para já não falar nas medalhas, que são dadas ainda em alguns casos e se poderão expor, na sala de visitas, e assim, enquanto Ele* estiver no seu posto de guarda e de vigia o país estará seguro e confiante, as crianças crescerão felizes no meio de jardins floridos, as mães conversarão, exactamente como nós, sentadas em bancos, alegres, despreocupadas, sem pensar em nada porque Ele pensará em tudo, num gesto de espontânea gratidão mandaram fazer um monumento, uma mulher segurando ao colo uma criança, e em baixo, no pedestal de pedra, uma legenda comovida e simples:
“A O.S.*, as mães agradecidas”,
só que não é assim, não é assim, gritou, é a estátua de um soldado morto, caindo por terra, varado por mil balas, e em baixo, no pedestal de pedra, uma legenda comovida e simples:
“A O.S., as mães agradecidas”,
oh, mas por favor não se levante e não grite, porque então eu gritarei muito mais alto, e sobretudo não se finja inocente nem se arme em vítima porque também é culpada, somos todos culpados e não adianta fingir mais tempo, é melhor gritar a verdade, mas é evidente que é mais fácil ficar sentada a tricotar do que pensar alguma vez nessas coisas, (…) é para que as mulheres não pensem que se protege tanto a sagrada instituição do tricô, mas é tempo de gritar que também nós pactuámos contra os filhos, porque nenhuma de nós disse “Não vás”, e é inútil fingir que não se é culpada,
seus olhos ardendo, espetados com agulhas, seus olhos ardendo de amor de ódio e de lágrimas – desaparecer sem deixar atrás de mim nenhum rasto, apagar da vida os sinais de mim, ninguém para continuar-me, nenhum filho, nenhum homem para lembrar-me, para guardar a recordação do meu corpo na memória táctil do seu corpo, nenhum vestígio, nenhum rasto, a casa arrumada, limpa, vazia, como se ninguém tivesse estado aqui, pisado o chão, mexendo nas coisas, andando entre as paredes, desesperando-se entre a janela e a porta, as cortinas caindo nas suas pregas perfeitas, a camilha da mesa bem estendida, debaixo da jarra azul, o tapete de sisal sem rugas, o lugar habitual dos objectos respeitado, ninguém passou por aqui, ninguém ficou na minha vida, só o vento, o sol, o mar continuam batendo, a praia deserta, sem pegadas, vazia de pessoas, meu filho morto e o mar batendo.” 
Teolinda Gersão, in “Paisagem Com Mulher e Mar Ao Fundo”( Romance) ”, Antologia de textos on-line  da autoria de escritoras portuguesas e africanas de expressão portuguesa do P.E.N. Clube Português

*Ele – Salazar, que governou Portugal em regime de ditadura durante mais de quatro décadas
*O.S. – Oliveira Salazar

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