sexta-feira, 11 de maio de 2012

ERNEST HEMINGWAY


A MORTE DE ERNEST HEMINGWAY
por Jorge de Sena
"Hemingway não foi apenas para mim um grande autor que li e reli. Foi um escritor de que traduzi dedicadamente duas obras-primas — Fiesta e O Velho e o Mar — que prefaciei com especial gosto, e ainda um outro livro — Ter e Não Ter — bem mais belo e mais importante do que a crítica o tem suposto. Ainda em artigos ou referências várias manifestei o muito que o admirava. E, no entanto, a sua morte súbita — e, de qualquer modo, intencional —, se me causou um choque, uma surpresa, não me causou, logo após, emoção alguma.
A intenção de morrer que há naquele desastre (ou suicídio) brutal, coincide por demais com o sentido freneticamente contido e desesperadamente digno de toda a sua obra, para, depois do estrondo em nosso espírito (como terá ecoado o tiro que lhe estoirou a cabeça), não sentirmos —aqueles que o amámos e tivemos a pretensão de compreendê-lo — emoção mais que a da perda, algum dia inevitável, de um dos maiores escritores do nosso tempo. Até mais exacto seria dizer-se que não só não senti emoção propriamente fúnebre (não o tendo conhecido pessoalmente, ele viveria sempre, morto ou vivo, mais na obra do que em si mesmo), como senti uma espécie de harmonia, de paz, de coerência cumprida, o alívio de uma tensão insuportável e que, enquanto ele vivesse, não se resolveria em definitivo nas páginas que escreveu.
Ser-se um grande escritor norte-americano nunca foi, e não é, uma coisa fácil: e tê-lo sido, sem querer deixar-se de o ser, é coisa mais difícil ainda. Naquele puritanismo hipócrita e pedante, onde o triunfo económico — reservado a uns raros eleitos — é o sinal distintivo de uma alma que merece salvar-se, a perdição sob qualquer forma foi sempre, e será por largo tempo ainda, a única forma coerente de criar-se algo que não valha apenas pelos dólares de alma, que custou. Por isso, é tão difícil ao escritor norte-americano envelhecer fiel a si mesmo, sem que essa fidelidade se torne uma vergonhosa impostura. Por isso há tão pouca diferença entre a bala que matou Hemingway e a garrafa de uísque, que acabará por matar um Faulkner. Por isso é tão sombria a literatura norte-americana, para lá dos Saroyans que, recém-emigrados em seus pais, se desejam mais optimisticamente americanos do que o optimismo oficial.
Hemingway, na aparência de um estilo repetitivo e descarnado, na imitação dos seus temas e dos seus tipos, no esquematismo dos assuntos e das anedotas, no balbuceio seco da sua ausência de ideias, no carácter exilado dos seus episódios, representou uma feroz reacção contra a facilidade, a verborreia pseudo-democrática, o idealismo jeffersoniano traduzido em trusts, a tendência para a conformidade tipificada. Não só em recusar tudo isso ele foi um moderno, mas em recusá-lo por uma forma exemplar, apresentando o homem que vive ou tenta viver separado do «grupo», e nessa solidão descobre uma outra fraternidade que não é a das maçonarias frustes de uma sociedade higienizada até na ciência de pecar. Essa coragem, como a do barroco Faulkner, serviu de exemplo a muita literatura posterior, que viu na libertinagem e na fria exibição dela o caminho a seguir. Mas a libertinagem, por si, não leva a coisa alguma, se for apenas reacção contra uma sociedade puritana. Hemingway, na brutalidade crua das suas entrelinhas (como Faulkner, na rudeza dos seus períodos sinuosos), viu nitidamente que o caminho era outro: o de uma crítica por antítese, o de uma recusa a qualquer complacência.
A pungência dolorosa de Adeus às Armas, de Fiesta, de muitos contos, de O Velho e o Mar, de Por quem os Sinos Dobram, de Ter e Não Ter, e desse belíssimo e injustiçado livro que é Na Outra Margem, Entre as Árvores, e de tantas páginas de obras miscelânicas como Death in the Afternoon, não é apenas aquela densidade oculta de angústia humana que o estilo de Hemingway carrega, dizia ele, como um icebergue flutuando com tanto mais de si mesmo sob as águas. É o efeito em nós dessa ocultação buscada: a equiparação da reserva e da profundidade não à ignorância nem à reticência, mas a um pudor definitivo que é a própria substância da vida humana.


A morte de Hemingway significa, aliviadamente, que algo de nós — extremamente incómodo — se decide a morrer. E o quê? Quanto nos prende à crença de que a liberdade é um negócio de anjos, e de que a justiça é um caso de demónios. Coerente consigo mesmo, Hemingway morreu quando a literatura norte-americana atingiu a alienação total, e evita comprometer-se pela liberdade a que não se atreve, ou pela justiça a que não cobiça. Eu não creio que, por enquanto, os americanos mereçam reler esse «expatriado»; e não me parece que a Europa tradicional — esclavagista e estratificada — possa lê-lo com proveito. Ele ficará em suspenso como uma interessante aventura de estilo, um escritor limitado e restrito, até que a sua grandeza possa ressoar num mundo que, abdicando da tirania sob qualquer forma, descubra a renúncia não à vida terrena — tão frágil —, mas à submissão — tão difícil.
Eu sei que Hemingway nunca — e às vezes poderia tê-lo feito — declarou abertamente muito que havia a declarar. Mas ele não era um homem público: era um ficcionista. As suas ficções não apareciam em forma de discursos: eram personagens. E, mais que personagens, eram uma narração. E não se narra aquilo que se declara.
Hemingway morreu. Mas, como ele muito bem disse, «um homem pode ser destruído, mas não derrotado». Entre a derrota e a destruição, honra lhe seja, optou pela última — para continuar a ser, como na sua obra, um homem, e não, é claro, para que as civilizações pretensas continuem a fabricar os sub-homens que não merecem lê-lo."
 Araraquara, Agosto de 1961
Jorge de Sena , no Boletim Bibliográfico LBL 4, de Julho/Agosto de 1961, Lisboa.

1 comentário:

  1. A morte de Alguém nunca é semelhante à morte de outro Alguém. E será bem mais diferente, especialmente quando esse Alguém deciciu pôr termo à própria vida, corajosamente ou não, depende do ângulo por onde se aprecie, ou se observe o acontecimento. Talvez não conseguindo superar alguns absurdos do mundo que o cercava, Ernest Hemingway resolveu de uma penada acabar com o sofrimento que o esmagava nessas horas que antecederam o seu trágico fim. É que almas - como a de Hemingway - sofrem, sofreram muito, nas mais das vezes sem aqueles que lhes estão mais próximos se aperceberem... Começava, então, a sua nova vida, uma vida de consagração e de glória que somente a Arte, e neste caso a Literatura, o permitiria! Uma nova vida para todo o sempre!...

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