segunda-feira, 30 de abril de 2012

O imperador da língua portuguesa

Padre António Vieira
Do Império do Verbo ao Verbo como Império
"Há quatro séculos nascia em Lisboa, então ainda intacta no seu esplendor barroco, aquele que na ordem da escrita e do espírito seria a expressão mais acabada do seu inconsciente cultural e ideológico barroco: o de uma restauração através da evangelização e conquista espiritual do Novo Mundo da túnica de Cristo dilacerada na Europa pela Reforma luterana e as suas consequências.
Este drama pode parecer-nos hoje quase incompreensível mas este foi o quadro cultural, o pano de fundo, ao mesmo tempo religioso, político e cultural sem o qual a acção «militante», no sentido mais literal do termo, de António Vieira, enquanto pregador, missionário, político, escritor, sonhador de uma reconquista universal sob a bandeira de Cristo para tornar efectivo o «reino de Deus» na Terra, não tem explicação nem leitura. Para nós, portugueses, a sua aura e a sua memória nunca esquecida é, sobretudo, a do seu génio literário que encontraria sob a pluma do autor da Mensagem uma consagração mítica. Na evocação de Pessoa, Vieira «é o imperador da língua portuguesa».
Esta coroação de Vieira por Pessoa não releva de qualquer extravagância, nem é uma conversão à estética que o autor dos Sermões ilustrou. É tão só a homenagem da sua adolescência repatriada do Longe e comovida até às lágrimas pela leitura de uma passagem famosa de um dos seus Sermões referida no Livro do Desassossego:
«Não choro por nada que a vida traga ou leve. Há porém páginas da prosa que me têm feito chorar. Lembro-me, como do que estou vendo, da noite em que, ainda criança, li pela primeira vez numa selecta, o passo célebre de Vieira sobre o rei Salomão: “Fabricou Salomão um palácio...” E fui lendo até ao fim. Aquele movimento hierático da nossa clara língua majestosa, aquele exprimir das ideias nas palavras inevitáveis, correr de água porque há declive, aquele assombro vocálico em que os sons são cores e ideais, tudo isso me toldou do instinto como uma grande emoção política.»
Pessoa fecha o seu texto celebrando a «grande certeza sinfónica» da prosa teatral de Vieira. Podia ter dito arquitectónica que o é também, embora dúctil como a cera, tão firmes são as suas articulações. Essa essência teatral nada tem de formal no sentido comum e muito menos de formalista. Vieira é um pregador da palavra divina. É mesmo o pregador-mor dessa palavra na nossa língua. Como o será um dia na latina ou italiana na presença do Papa ou da Rainha Cristina. Uma «palavra acto» para um público umas vezes o mais selecto, o da Corte e do Culto, a quem leccionou com ironia, outras vezes o dos nossos colonos da Baía ou do Maranhão, com os seus escravos. Em vários sentidos, diante de auditórios pouco dispostos a ouvir de viva voz os seus requisitórios implacáveis, ou tendo dificuldade em compreender as parábolas pouco amenas com que lhe censura a crueldade, a inumanidade, a nenhuma caridade com que tratam os índios ou os negros escravos, António Vieira aplica-se a si mesmo a palavra de João Baptista: «Voz clamando no deserto».
Tudo é extraordinário na vida de António Vieira, mas nada mais extraordinário que ouvir a sua voz sublimar-se em S. Luís do Maranhão no famoso Sermão de Santo António (o dos Peixes) diante de um auditório modesto ou ignaro, como se estivesse em S. Roque onde a aristocracia da Corte e a gente letrada mandava estender tapetes para marcar lugar.
O maior sonhador que Portugal ouviu - e o maior dos seus sonhos foi o de um Portugal como digno do império de Cristo, reino de paz e equidade - era, como sabemos, homem do mundo quando o novo Rei do país restaurado recorreu aos seus dons de diplomata à James Bond, com o seu quê de maquiavélico (lembra Hemâni Cidade e mesmo Vitorino Nemésio), mas podia ser isso tudo porque de uma vez por todas, tinha aceite e assumido que na perspectiva de Deus «tudo era nada». A glória e a luz de Deus que na palavra divina estão contidas: é a única palavra que o pregador deve escutar para existir. Ou antes para ser.
A autonomia do Verbo em Vieira - pese à admi­ração que o seu famoso estilo pode suscitar - nada tem de nominalista, assimilando o ser-da-verdade à Linguagem, como se Vieira fosse, por antecipação um Wittengenstein do séc. XVII, Se a linguagem é para ele, por assim dizer, o campo visível e so­noro da verdade, ou mesmo casa do ser, é apenas como Verbo encarnado - e só nessa medida. O que, entre nós, não é audácia e vertigem menor do que supor que os limites do nosso pensamento são os limites da nossa linguagem. Como um S. Paulo da sua época, a pregação em que se investiu com uma paixão demasiado humana, como os seus inimigos e a mesma Inquisição lhe lembrariam, ao serviço militante de um Verbo de Deus encarnado, não é uma realidade de leitura óbvia, como a da experiência, Só o diagrama das suas vozes, como nota António José Saraiva, o confronto entre elas, permite desocultar um sentido capaz de esclarecer o enigma da História que fazemos e nos desfaz, na expectativa de uma revelação futura, sempre adiada, em que a humanidade acordará dos seus sonhos sempre falhados - ou pesadelos - para um eterno Dia.
No século chamado do Génio - o século de Descar­tes, de Pascal, de Leibniz, de Newton, mas também de Espinosa - aquele em que pela primeira vez o ateísmo adquire expressão cultural, traduzindo o discurso santo, a palavra de Deus, para verbo único e virtualmente humano, Vieira, como um louco de Deus, não tem outro código para ler e pregar a Verdade divina-profana, que o do Antigo Testamento e dos Evangelhos. Conhecia-os de cor e podia recorrer a eles tanto na prisão como na selva brasileira. Pode aplicá-lo a todas as circunstâncias, as mais triviais ou as mais graves, da ordem política, da ordem religiosa ou filosófica.
Os seus Sermões são quase como capítulos de um romance alegórico cheio de notações biográficas, de recriação quase teatral das cenas míticas da Bíblia ou dos Evangelhos com autênticos ensaios sobre a situação precária da economia do Reino e do dever que tinham os Estados da Nação de contribuir para a sua defesa pagando ou sobre o Amor divino, dignos de uma Carte du tendre, mística como a das grandes amorosas do século que não foi só o da Razão mas do mais ardente e sublime erotismo, aquele que só tem por objecto o Amor mesmo
Para o autor dos Sermões, que é também actor deles, o texto da realidade - a vivência e o sentido dela - coincide com o texto sagrado, lido e interpretado na luz que ele próprio é e significa. É um código universal que se pode e deve aplicar a todas as circunstâncias, não código profano do conhecimento mas substância da palavra que salva e edifica. A cultura que ele exprime ou traduz não é oposta à do verbo profano - Vieira, filho da Companhia, procede também da nova cultura humanista e tem-na em conta, Mas em última análise é um espírito oposto ao Mundo, em suma, um contra­discurso desse Mundo, seara infinita de palavras alheadas da mensagem evangélica e destinado a convertê-lo.
Em sentido literal, os Sermões são propaganda fide teatralizados, dignos filhos de uma cultura já em representação e em si mesma espectáculo: a primeira versão do que será, séculos mais tarde, a existência social e cultural do Ocidente como divertimento no sentido pascaliano do termo. O púlpito é um ‘teatro ao divino’ onde os auditores, seduzidos por toda a espécie de tentações - não só a do poder, da riqueza e das múltiplas seduções do espírito ou do corpo - vêm para, virtualmente, ser desenganados. O século ibérico foi por excelência o século do Desengano, o século de D. Quixote e do seu combate perdido - salvo no céu da nostalgia - só redimível e transfigurado pela sua loucura heróica. O antigo tempo cristão estava-se volvendo quimérico. Pelo menos, na Europa.
No Novo Mundo nem isso. Era um mundo sem notícia da Revelação, Este será sempre um tema de meditação e perplexidade para Vieira, o de pregar a uma humanidade que não só não recebera nunca a mensagem redentora de Cristo, mas vivera séculos sem ter notícia dela. Foi na resposta a esta questão, nova na cultura humana que define o Ocidente, que Vieira se empenhou como em nenhuma pois determinou a sua outra vocação e condicionou o destino que será o seu enquanto novo apóstolo de Cristo num tempo novo. Aquele que a descoberta do Novo Mundo sem notícia de Cristo tanto como da Lei natural que o mesmo paganismo conhecera, vive e morre sem redenção.
Esta questão preocupara a cultura europeia no primeiro meio século após as Descobertas. Nessa época Las Casas travara um combate épico para reconduzir a nova humanidade - tão duvidosa na sua identidade - à civilização cristã. O combate de Las Casas foi muitas vezes evocado - sobretudo no século XIX liberal - como o de um herói romântico. Foi um combate realmente heróico, tenaz, conduzido em nome de uma tradição teológica, jurídica, perfeitamente ortodoxa. A sua famosa defesa dos Índios guardará para sempre a marca de uma cultura católica ainda unificada, de profunda ressonância medieval, quer dizer, escolástica no seu discurso e ainda candidamente cristã na sua finalidade,
O tempo de António Vieira é já outro. Em todos os campos (teológico, ético ou político) o tempo barroco não é, como temos tendência a imaginá-lo, fechado sobre si mesmo, cerrado, como uma fortaleza integrista, mas um tempo dividido, inquieto. A Fé post-tridentina comporta uma nova tonalidade, onde a vontade joga um papel decisivo. Decerto a Igreja conserva em si todos os seus tempos. A da Companhia, a de António Vieira apresenta-se desde o início como Igreja militante. E, por assim dizer, navegante. Ainda a Companhia não fora confirmada e já Francisco Xavier estava a caminho do Oriente. Num sentido apenas metafórico ela é a guarda pretoriana de uma Igreja em luta consigo mesmo e de uma Europa em parte «perdida» para ela.
Na óptica de Vieira só a Providência teria o poder graças a esta milícia por excelência, de remediar essa ferida a nenhuma outra parecida, pois não procedera simplesmente do espírito de discórdia sempre activo no mundo, mas do próprio Deus, senhor do mundo e da História. A História, na visão cristã, continuava a depender do pecado original que a tinha posto em marcha, suspensa do interior pelo sacrifício do mesmo Deus, agora encarnado. Contudo, um fenómeno como o do protestantismo devia aparecer a um homem como Inácio de Loyola e, de certa maneira, a António Vieira, mais ardente e veemente que o fundador, como uma espécie de segunda Queda.
Vieira vai convertê-la em ocasião de nova ressurreição, quase num começo de nova era, com essa humanidade índia aparentemente imune ao pecado original, embora ignorante de revelação cristã, mas também ignorante dessa cultura moderna que sob o nome da Reforma dilacerara na Europa a túnica inconsútil de Cristo. E nisto consistia a segunda Queda. Como a primeira se redimira pela encarnação e sacrifício do Filho de Deus, esta requeria um novo Homem e, porque não, um segundo e definitivo triunfo de Cristo. Não nesta terra - como um dia a Inquisição lhe censurará - mas num «mundo-outro», espaço tempo ainda não desvendado de que a espera de tantos milhares de almas, em terras desconhecidas seria o anúncio paradoxal.
Ninguém mais que António Vieira parecia predestinado em tempos ainda mais incertos que os dos primeiros apóstolos da Companhia (Francisco Xavier, os Mártires do Japão), para ser o laço entre os dois mundos, o da Europa meio perdida e o Brasil. Ele não podia ser, em sentido preciso, o apóstolo do Brasil - essa terra que era também a sua, pela educação e pelo coração - pois os tempos de Manuel da Nóbrega e de Anchieta que venerou tinham passado. Mas podia ser o seu «conversor» - passe a expressão - e, de uma certa maneira o seu salvador. O Brasil será, sobretudo, a terra e o tempo da sua provação depois de ter sido o da sua revelação fulgurante de orador sagrado. Foi também o tempo da sua expiação - e assim percebido por ele - após a sua vida de homem do mundo. A Provação será menos a de sofrer e combater o ódio dos colonos, a quem a defesa da dignidade dos índios indispunha, que um combate de outra ordem: o de arrancar esse amados Índios que ele quixotescamente imaginava como pedras vivas de um reino isento naturalmente do pecado, a uma perdição tão fatal como a do homem branco e a sua idolatria do Poder e do Ouro.
António Vieira é uma mistura incomparável de sonhador por conta de um Reino futuro idealmente cristão e um não menos agudo observador da realidade. É para maior glória de Deus - e de algum modo para emendar esse estranho silêncio do abandono em que esse Deus tinha deixado uma parte da humanidade - que Vieira se esforça por salvar esses índios, cujos hábitos, depois da visão angelista que a piedade lhe sugerira, lhe eram pouco menos do que intoleráveis. Idealizá-los, de longe, como Montaigne, só requer abertura de espírito. Aceitá-los como próximos - aceitá-los todos como próximos e quase em sentido físico do termo, é mais que graça de Deus. Mas isso não o impede de ser justo e de se impressionar com a preocupação das questões que os Índios lhe colocam.
Na sua relação sobre a experiência no Maranhão o que nos surpreende é a voz do Índio, As suas «falas» são-nos presentes sob a forma de sonhos, quer como manifestações da «graça» quer como temíveis embustes do demónio. Através desses sonhos e das questões postas pelos Índios, pondo em causa a visão que os missionários lhe querem fazer partilhar, como que ouvimos a voz do mesmo António Vieira, perplexa, suspensa no mais profundo dele mesmo, entre a ofuscação da Luz e das Trevas.
Como se ele fosse um Voltaire inconsciente, Vieira empresta aos seus «cândidos» Índios uma lucidez terrível na sua recusa de aceitar os mistérios ou as crenças, a seus olhos inaceitáveis, ou repugnantes, como a do Inferno.
Nem sempre é fácil colocarmo-nos no lugar desse estranho e genial semeador da palavra de Deus que rejubila – por desespero talvez – quando as crianças baptizadas ou adultos apenas convertidos morrem cedo. É verdade que Vieira descreve o mundo real que deixaram como um autêntico Inferno. Isto é menos estranho se nós imaginarmos o sentimento pessimista que impregna a visão barroca do mundo. Nada espanta que as orações fúnebres da época, de Bossuet a Vieira, se tenham tornado o exemplo dessa visão sobre o duplo registo da nulidade deste mundo e do esplendor do outro. Mas o que na Europa relevava de uma dramaturgia cultural perfeitamente inteligível, tinha nos sertões do Maranhão qualquer coisa de surreal, onírico, quase insensato. Ópera ou requiem sem espectadores. Excepto Deus. E isso bastava a estes homens que, como Vieira, estavam confrontados com uma humanidade resistente à sua oferenda caridosa e buscavam, consciente ou inconscientemente, o martírio.
Há qualquer coisa de fantástico na aventura missionária de Vieira. Compreende-se que o autor-actor desta gesta condenada ao insucesso ou a um sucesso mitigado, segundo a opinião do mundo, seja o mesmo que consagra a sua História do Futuro ao pensamento de um mundo outro, ao verda­deiro reino de Deus, de que ele seria o novo Isaías. O sonho de um Quinto Império, a meio caminho entre o Céu e a Terra, realizando os desígnios de Deus, segundo Vieira, tem já uma longa tradição entre nós. Esse desígnio de impor a Lei de Cristo ao mundo inteiro era há séculos o dos reis de Portugal. Com ele transfigura Vieira a sua vocação de semeador, mais ou menos bem sucedido, do verbo de Deus, que é também o do fracasso futuro, pelo menos aparente, da própria Companhia no Novo Mundo.
Relacionar a visão de Vieira do Quinto Império com outros sonhos messiânicos ou utopias de que a cultura do Ocidente está cheia, não esclarece muito, Ela é antes o produto acabado do sonho imperial português no momento exacto em que Portugal sai do seu cativeiro da Babilónia e em que o imperialismo new look da nova Europa protestante se espalha pelo mundo, O império de Portugal, o seu império real, entra docemente no seu crepúsculo. Mas sob este sol poente, brilha um outro império, oposto ao mundo, como o sonhará Pessoa, o mesmo império que Vieira, apóstolo de um Deus ao mesmo tempo omni­potente e insondável, erige sobre «os destroços da realidade».
Com estes restos - a sua experiência de glória humana e de fracasso - ajudado não só pelos seus dons visionários mas por uma língua que nunca acabará de espantar e fazer sonhar os que penetram no seu jardim de parábolas vivas e de metáforas, Vieira oferece-nos a essência de uma Palavra que não pode aprender o sentido da realidade se não no espelho de Deus. Como sua sombra. Foi desta sombra enigmática que ele fez para os seus leitores, ou ouvintes, uma luz perpétua." Eduardo Lourenço
Texto lido na sessão de homenagem ao Padre António Vieira, Academia das Ciências de Lisboa, 06.02.2008

1 comentário:

  1. Só o "nosso" Eduardo Lourenço poderia falar com tal propriedade e ênfase do grande mestre Padre António Vieira!... Mas, pensemos sobretudo em Vieira Diplomata! É que ele iniciou a Diplomacia moderna em Portugal. Já alguém tinha reparado nisso?... Apenas um apontamento...

    ResponderEliminar