sábado, 25 de fevereiro de 2012

Canção



Dizem que esta cidade tem dez milhões de almas:
Umas vivem em mansões, outras em tugúrios;
Não há contudo lugar para nós, meu amor, não há contudo lugar para nós.

- Outrora tivemos uma pátria e pensávamos que isso era justo.
Olha o mapa, e ali a encontrarás.
Não mais podemos lá voltar, meu amor, não mais podemos lá voltar.

- O cônsul deu um murro na mesa e disse:
«Se não têm passaporte, estão oficialmente mortos.»
Mas nós ainda estamos vivos, meu amor, mas nós ainda estamos vivos.

- Aí em baixo, no adro da igreja, ergue-se um velho teixo:
Em cada primavera floresce de novo;
Velhos passaportes não podem fazê-lo, meu amor, velhos passaportes não podem fazê-lo.

- Fui a uma repartição; ofereceram-me uma cadeira;
Disseram-me polidamente para voltar no próximo ano;
Mas onde iremos hoje, meu amor, mas onde iremos hoje?

- Fomos a um comício público; o orador levantou-se e disse:
«Se os deixarmos aqui ficar, hão-de roubar-nos o pão de cada dia»:
Estava a falar de ti e de mim, meu amor, estava a falar de ti e de mim.

- Ouvimos um clamor que nem trovão retumbando no céu;
Era Hitler berrando através da Europa: «Eles têm de morrer!»
Oh, nós estávamos no seu pensamento, meu amor, nós estávamos no seu pensamento.

- Vimos um cachorro, de jaqueta apertada com um alfinete;
Vimos uma porta aberta e um gato a entrar;
Mas não eram judeus alemães, meu amor, não eram judeus alemães.

- Descemos ao porto e parámos no cais;
Vimos os peixes nadando como se fossem livres;
Apenas a dez pés de distância, meu amor, apenas a dez pés de distância.

- Passeámos por um bosque, havia pássaros nas árvores;
Não tinham políticos e cantavam despreocupados;
Não eram de raça humana, meu amor, não eram de raça humana.

- Sonhámos com um edifício de mil andares,
Com mil portas e com mil janelas;
Nenhuma delas era nossa, meu amor, nenhuma delas era nossa.

- Corremos à estação para apanhar o expresso;
Pedimos dois bilhetes para a Felicidade;
Mas todas as carruagens estavam cheias, meu amor, mas todas as carruagens estavam cheias.

- Quedámo-nos numa grande planura com a neve a cair;
Dez mil soldados marchavam para cá e para lá,
À tua e à minha procura, meu amor, à tua e à minha procura.

- W. H. Auden, in “Ten Songs”, tradução de David Mourão-Ferreira

1 comentário:

  1. Uma canção?!... Este poema de W. H. Auden - quanto a nós - é um verdadeiro e antecipado prenúncio de guerra, que - quando declarada... - se verificrá então que não há espaço para ninguém. O par que anda à deriva em procura de um canto, de um lugar para se anichar, para construir o seu "ninho de amor" não passa de uma metáfora. Esse pobre par somos todos, seremos nós todos, envolvidos num temporal de guerra e de perseguição. Eis-nos, pois!... Errantes, perseguidos, tolhidos de susto, não desejados, aniquilados de medo... Que pena não podermos confrontar - agora... - este pensamento com o do David Mourão-Ferreira, quando traduziu o (judeu?...) Auden!... Um poema cheio de escassa beleza, sem fogo, mas tão representativo, tão necessário, tão importante na hora que se avizinha!...

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