quinta-feira, 6 de outubro de 2011

CADERNOS DE UM JORNALISTA

RECORDANDO DOIS ANTÓNIOS,
                                      E UM ACÚRCIO
Por Varela Pires
Quando escrevo alta madrugada, completamente imerso no silêncio, tudo me surge muito claro, extremamente nítido e absorvível. É quando as almas viajam de volta ao passado, e melhor comunicam entre si, sem a usurpação do espaço pelos ruídos adventícios que pululam à volta delas, na espasticidade dos dias.
E recordo… O ser humano situa-se sempre entre o recordar e o projectar.
Recordo-me, então, do trabalho nocturno no jornal “O Século”, a minha primeira e grande “escola” de jornalismo! ….
Por esse tempo, chegava à Redacção do jornal, já cansado da azáfama do dia, trazia ainda debaixo do braço duas sebentas, pensando talvez nos pequenos intervalos e em aproveitá-los para estudar ou rever matéria já estudada. E vinha preocupado com as aulas do dia seguinte…
Sabia o que me esperava – ao enfiar as obrigatórias e puídas mangas-de-alpaca. Uma noite de intensa actividade. Uma noite de trabalho num dos maiores diários do país, por essa altura. Não havia sono… Não podia haver sono!... Nos pouquíssimos intervalos que o atendimento dos telefones (os “macacos – pretos”… de então!) permitia, dava uma olhada nas sebentas, para aproveitar o tempo ao máximo. Então, estranho conflito se estabelecia em mim: estudar e/ou trabalhar, simultaneamente!
Aquelas portas, as do jornal, nunca fechavam, pois o jornal era um trabalho contínuo, 365 dias no ano!…
O primeiro António que me vem à memória era o mais humilde. Desempenhava as funções de porteiro. Nunca lhe soube o apelido. Chamavam-lhe o “Antoninho”. Cortês, prestimoso, sempre com um sorriso bondoso a fugir-lhe dos lábios. Uma alma pura. Foi alguns anos um dos mais simpáticos guardiões daquele grande “convento”. Um dia, deixámos de vê-lo. Esgueirara-se sorrateiramente ainda jovem pelo grande portão da morte!...
Lembro-me de outro António.
O António Maria da Silva, o senhor António, o editor de “O Século”.
António era um homem alto, pesado, espadaúdo, sempre de fato, e gravata preta…. Todos o tratavam com respeito. E igualmente infundia respeito. Era uma presença assídua, quase permanente, no quotidiano do jornal. Dele se dizia que “até a alma, a tinha embrulhada em papel de jornal”, tal a intensidade com que “vivia” o jornal, numa perfeita simbiose com a prática de “O Século”. Passava mais tempo do dia no jornal que em casa. Deveria ter escrito “passavam”, pois não era só com ele que isso acontecia.
O Acúrcio Pereira era o nosso chefe da redacção. Olho vivo, afadigado, mexido, “dançarino”, parecia ter patins enfiados nos pés. De uma agilidade de pensamento verdadeiramente invejável.
Mestre Acúrcio não permitia folgas. Era de baixa estatura, mas um grande homem em qualidades humanas, em envergadura moral, intelectual e profissional. Foi sempre rigoroso, ríspido, infatigável, exigente ao máximo com os outros e igualmente consigo próprio, para dar o exemplo. Porém, com ele aprendia-se!
Todo o tempo que chefiou o jornal, o Acúrcio Pereira foi a peça chave daquela casa e desse quase centenário jornal diário.
De “O Século”, fizeram também parte outros nomes grandes do jornalismo português, como João Pereira da Rosa, Francisco Mata, Manuel de Lima, e os algarvios Julião Quintinha, José Barão, e mais tarde, Mário Zambujal… Alguns, gente antiga!?... É certo. Mas, vai-nos parecendo que já não há gente assim, por aí?.... Ou, então, vai rareando… O Mário é um dos sobreviventes.
Quando de lá saíamos, já o dia clareava, e as mulheres vareiras e os ardinas num afogueamento impressionante recebiam os maços de jornais já contados, acabados de sair das rotativas, e partiam, carregados, rua afora!... Para lá das portas, a saída do jornal foi sempre um momento emocionante. Porém, cá dentro, o fecho do jornal era uma alucinação perfeita. Horas intensas, horas de contracção! Hoje, tudo é diferente…. A informática veio facilitar e agilizar muito esse infernal trabalho.
Em sonhos, ainda nos aparece esse mundo jornalístico de então…
Ontem, também me veio à memória (como é pobre a nossa memória, pois somente anda para trás!...) o António (Alçada Baptista), naquela sua bonomia, naquela paz de alma que lhe conhecemos, com a dizer-nos a todos…
– “Então, rapazes?!... Meus queridos amigos, vejam lá se se concertam, por favor! ... Harmonizem-se! … Tenham calma!... Tudo se há-de resolver.”
O que ele não lutou para aguentar a Editora Morais! E outro tanto, “O Tempo e o Modo”!... Gastou todas as suas economias e pôs em risco a sobrevivência financeira da família. Tudo pelo infinito amor à cultura.
Um dia decidiu ir mostrar o seu livro “Conversas com Marcelo” (o Presidente do Conselho, Marcelo Caetano) ao Mário Soares, que se encontrava no exílio, em Paris. O Mário Soares, que o tinha por amigo, pois igualmente ambos possuíam amigos comuns, volveu-lhe o livro com uma certa náusea… e ironia, perguntando-lhe se queria ser o “António Ferro” do Professor Doutor Marcelo Caetano?!... O António, ingenuamente, por essa altura (princípio dos anos setenta…) ainda acreditava na possibilidade do regime político português mudar sob a égide de Marcelo Caetano!... Por então, a situação encontrava-se num ponto tal que já não era possível recuar, fingindo que se acreditava na “Branca de Neve” e nos “Sete Anões”…
Conversávamos amiúde. Sobre qualquer tema. Mas, a Censura oficial, a Guerra no Ultramar e as possíveis soluções para o Regime Político e os exilados políticos eram sempre assuntos extremamente debatidos.
Às vezes, no “Monte Carlo”, colhia algumas confidências do António. Uma tarde, perante duas chávenas de café, o António disparou-me, à queima-roupa. – “Você, ó Varela, tem mesmo vocação para ser um “gestor de afectos”!... Sim! Não diga que não. Insisto. Você tem vocação para tal!...
Respondi, boquiaberto.
- Mas, eu?!... Eu?!... Eu, não!...
A ele, ao António Alçada Baptista, a esse Homem (assim mesmo, escrito com maiúscula), a esse ser generoso, magnânimo, verdadeiramente bom, é que se poderia chamar um genuíno “gestor de afectos”! Foi-o toda a sua vida e de um modo singular, grandioso! Cultivou a amizade como se fosse uma Arte.
Mulheres, cuja inteligência e capacidades nunca se poderão pôr em causa, diziam que o António era quem melhor compreendia a alma feminina! A Madalena Fragoso, a Leonor Xavier, a Maria Antónia Pala, a Matilde Rosa Araújo, a Maria Velho da Costa, a Maria Teresa Horta, e mais, mais mulheres… A infinidade de vultos femininos no âmbito da cultura, que o adoravam, quase que o idolatravam! António Alçada Baptista. Devo a ele, o ensinar-me a fazer a minha própria “peregrinação interior” (como ele gostosamente lhe chamava…), que ao primeiro olhar nos parece ser complexa, mas afinal tão esmeradamente simples. Já era a psicanálise em marcha mas, por outras vias!...
Os anos foram passando. O final aproximava-se, quando tanto tínhamos ainda a esperar dele.
O António começou a demonstrar sinais de “depressão”, mas não era depressão. Era uma demência de Alzheimer, que começava a surgir. E foi isso que acabou com ele.
Tinha imensos amigos no Brasil!... Amigos verdadeiros. Desses que dariam tudo por ele!... Quantas vezes não atravessou ele o Atlântico para manter vivas essas amizades?
Era igualmente muito amigo do Raul Solnado, que sempre se revelou triste e tímido. As graças - que dizia em palco e frente aos ecrãs de TV – “cobriam” muito a sua natural e profunda timidez e o seu impenetrável acabrunhamento. O Raul era triste e bisonho, por natureza. Reflectia muito. Poucos, muito poucos sabem disto, tão acostumados estiveram ao seu inimitável humor, à sua inolvidável capacidade de fazer rir um povo igualmente triste, como o nosso.
O Raul era um génio, alguém muito especial, de quem nunca se poderia deixar de ser amigo. O seu testamento foi essa “ordem”, assim disparada, “urbi et orbi”:
– “Façam o favor de serem felizes!... Todos!”
Já algum dos leitores pensou na ressonância deste imperativo, especialmente de quem tinha a plena consciência de que se estava a despedir da vida!... E assim acabou os seus dias, quem nos fez a todos esquecer as agruras da vida, e que era um verdadeiro “animal” do palco, expressão que significa um excepcional e invulgar artista, um actor que ficará para a história, como expoente máximo do Teatro Português.
Na hora da inauguração do seu teatro, em Lisboa, a Picoas, o Raul quis dar-lhe o nome de “João Villaret”, para que ficasse recordando alguém cujo valor na Arte de Talma era incontestável, e que passara pela vida quase que de fugida, desaparecendo tão precocemente, devido a complicações da sua diabetes.
Pois, digo-vos, o Raul Solnado como homem e como artista não foi menor que o João Villaret!
Com homens assim, homens desta têmpera, deste valor, continuaremos Portugal.
Varela Pires

1 comentário:

  1. Gostei muito deste texto. Entrei aqui procurando pistas biográficas sobre Acúrcio Pereira, saio com um retrato muito expressivo de O Século. Um abraço.

    ResponderEliminar