terça-feira, 5 de julho de 2011

Sobre a Poesia VIII

"Sobre a Poesia" apresenta-se na 8ª edição com uma curta  reflexão sobre a linguagem poética sobretudo  naquilo que a distingue da linguagem comum, ou seja, do texto não literário. 
O mundo da linguagem poética: pulsar, ritmo e tempo
"Poderíamos inferir que a poesia, como reflexo especular da linguagem humana, não só reapresenta o λόγος em sua completude sígnica – o fônico e o semântico –, como também pode reflectir os anseios mais íntimos do homem, expondo-os. Como esses não se dão de forma consciente, mas à semelhança de lampejos da memória e da consciência, cabe ao poeta tentar ordenar esse caos via λόγος, daí a não linearidade que a poesia pode assumir quando comparada à prosa: há nesta um predomínio da ratio, vemos o signo da racionalidade, cujo reflexo é o próprio λόγος; enquanto, naquela a extrapolação do emotivo, numa tentativa de reordenar seu caos incipiente. Há, em ambas, a extrapolação de um pulsar contínuo, afinal as imagens da memória apresentam-se em relances, num ritmo frenético: este será largamente empregado pela poesia, enquanto procura ser refreado pela prosa. Evidentemente, não estamos pensando a prosa sob o ponto de vista literário, nem sob a óptica dos estudos bakhtinianos, cuja linha mestra era a prosa artística, mais especificamente o romance; mas, como discurso diário: o da imprensa, o da ciência, o da linguagem comum.
O texto prosaico não literário ao inibir a utilização dos tropoi, demonstra-nos querer perpetuar- se como verdade única, indivisível e imutável (um padrão de referência), mas o que ocorre é, exactamente, o contrário: apaga-se nos corredores da história. Tal particularidade intempestiva da linguagem comum em prosa, acaba, no entanto, tornando-a instantânea: eis o que a torna fugaz. Cohen cita Paul Valéry, para quem uma das características básicas da prosa é, exactamente, o facto de, ao ser  compreendida, desaparecer e ser substituída pelos conceitos que propôs comunicar:
“A linguagem comum permanece como linguagem somente quando não desempenha a sua função – que é a de produzir tais impressões, ideias, actos, etc. (...). Tão logo, porém, compreendamos o que diz, a linguagem é substituída em nossas mentes pelo que significou; a  linguagem propriamente não dura. A qualidade específica da linguagem poética, por outro lado, é a de durar. (COHEN, 1975, p. 103)
“No entanto, para que um poema possa durar, o poeta deve tecê-lo de tal forma que não lhe basta criar quaisquer imagens, mas imagens vivas; não basta imitar, mas proporcionar prazer não só no acto de imitar como também no de ser possível a visualização e a identificação do que foi imitado”. (Cf.: ARISTÓTELES, 1996, p. 33) Segundo Lessing, a grande diferença entre o poeta e o prosador é que este se contenta tão-somente com a clareza e a nitidez do que é transmitido, o poeta jamais: “Antes, ele [o poeta] quer tornar tão vivazes as ideias que ele desperta em nós, de modo que, na velocidade, nós acreditemos sentir as impressões sensíveis dos seus objectos e deixemos de ter consciência, nesse momento de ilusão, do meio que ele utilizou para isso, ou seja, das suas palavras” (LESSING, 1998, p. 203).
Algo parecido com o que sentimos diante das palavras de Fernando Pessoa em “Autopsicografia”, quando o eu lírico, em seu jogo metalinguístico, nos leva a sentir não uma dor, mas duas que ele poderia ter tido: a real e a fingida, as quais, na velocidade da leitura (somos seduzidos pelo ritmo do texto e por sua musicalidade!), não sabemos precisar qual seja a verdadeira:

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
Fernando Pessoa ,in  “ Cancioneiro”

Para que tais imagens produzidas via λόγος  se efectivem e perdurem, não dependerá, exclusivamente, do pulsar intempestivo do inconsciente de um eu lírico criativo, se este não conseguir atingir os leitores. Estes têm de ser tocados,e aquele tem de conseguir activar certas disposições da consciência (ISER, 1999, p. 9)de seus leitores, a fim de que entrem em uma mesma sintonia e, a partir dessa relação, sejam levados ao prazer mencionado por Aristóteles na Poética.A leitura só se tornará um prazer, para Iser, no momento em que a produtividade do leitor entrar em jogo, ou seja, quando os textos lhe oferecerem a possibilidade de exercer as suas próprias capacidades de cognição. (Cf.:ibidem, p. 10) E é devido a essa nossa participação enquanto leitores que o poema se torna memorável não na acepção estática de documento ou propriedade pública, mas na acepção dinâmica de recriação individual. (LEVIN, 1975, p. 14)"
António Jackson,”O logos e a especificidade da linguagem “,in Revista  Eutomia, Ano II,Volume 1

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