quarta-feira, 2 de setembro de 2009

DIREITO DOS DOENTES À INFORMAÇÃO E AO CONSENTIMENTO INFORMADO

Parecer sobre o Projecto de Lei n.º 788/X (4º)
Solicitado ao CNECV em 17/06/2009 e 18/06/2009 pela Comissão Parlamentar de Saúde da Assembleia da República e Grupo Parlamentar do Partido Social-Democrata.


Considerações Gerais
O Projecto de lei em epígrafe foi apresentado em Plenário da Assembleia da República e, depois de agendado potestativamente, discutido, e aprovado na generalidade, no passado dia 28 de Maio. O registo dos debates ocorridos e das declarações de voto apresentadas, mostra que vários Senhores Deputados criticaram a falta de um Parecer prévio do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, além de vários comentários a aspectos pontuais do documento relativos à sua clareza jurídica e ao respeito por valores éticos substantivos. O pedido de Parecer, posteriormente recebido no CNECV, indica que estas críticas foram acolhidas pela Comissão de Saúde.
Embora este pedido de parecer tenha sido, infelizmente, apresentado muito tardiamente e já com uma versão aprovada na generalidade, justifica-se a elaboração deste Parecer dada a importância dos temas em causa e a necessidade de propor a correcção, em muitos aspectos, da estrutura do Projecto e do seu articulado.
O título do Projecto em apreço é “Direitos dos doentes à informação e ao consentimento informado”. Incluiu os seguintes capítulos: Capítulo I – Generalidades, indica o âmbito da lei.
Capítulo II – Autonomia e Consentimento Informado, tem a Secção I – Informação, a Secção II – Consentimento, a Secção III – Representação de adultos com capacidade diminuída, num total de 13 Artigos. Apresenta, depois, uma Secção IV – Declaração antecipada de vontade e nomeação de Procurador de cuidados de saúde. O primeiro tópico é tratado em dois Artigos, 14.º e 15.º e o segundo tópico em outros dois, o Artigo 16.º e o Artigo 17.º; dois Artigos finais, 18.º e 19.º tratam respectivamente do Direito à objecção de consciência e à não discriminação.
Capítulo III – Autonomia e processo clínico que é constituído pelos últimos cinco artigos.
Esta estrutura e desenvolvimento são no mínimo confusas e contraditórias. Assim:
1 Datas de entrada no CNECV dos pedidos de parecer.
- O título induz em erro porque a declaração antecipada de vontade e o acesso ao processo clínico não relevam do consentimento informado;
- Minimiza o importante tema das Declarações antecipadas de vontade, dedicando-lhe apenas dois dos vinte e quatro Artigos do Diploma;
- Trata com desenvolvimento, em mais de metade do texto, a matéria do Consentimento informado,que já está presente no nosso Direito interno, em especial no Código Penal;
- Confunde o direito da pessoa doente a conhecer as informações pessoais de saúde com o acesso ao seu processo clínico.
O objectivo expresso pelo legislador foi a regulação dos “direitos dos doentes, no exercício da sua autonomia”, para reforçar “a tutela do direito à autodeterminação do doente no âmbito de qualquer intervenção médica”, e o que é referido como “o permanente equilíbrio entre a liberdade individual e o desenvolvimento da biologia e da medicina na prática médica e o carácter personalizado da relação médico-doente.”
Na realidade, se a finalidade da lei agora proposta era efectivamente o reforço da relação médicodoente, o efeito que iria ser obtido seria provavelmente o oposto. De facto, o projecto reflecte uma mal entendida primazia absoluta da autonomia como valor ético, quando o que é necessário pelas razões aduzidas a seguir, é reforçar a “intimidade” moral da relação médico doente. Há uma constatação crescente que os modelos legais ou políticos da autonomia têm de facto obscurecido perigosamente os valores profissionais e morais do exercício da medicina, que continuam a ser,como afirma Cassell, essencialmente os de uma profissão moral.
A autonomia, entendida do modo que nos parece subjacente ao diploma, é inadequada para se assumir como elemento único e dominante neste contexto.
Em primeiro lugar, porque no cenário real da clínica está muitas vezes limitada, mesmo quando o doente se encontre no gozo pleno das suas faculdades.
Em segundo lugar, porque a responsabilidade dos médicos e outros profissionais de saúde, emerge precisamente do sentido de responsabilidade intrínseco à profissão e não, primariamente, de um conjunto de regras destinadas a salvaguardar a autonomia dos doentes.
O legislador parece ter seguido modelos derivados da experiência anglo-saxónica, eles próprios já muito questionados, sem atender à nossa realidade antropológica e cultural. Assim – e neste Projecto-Lei isto é particularmente evidente – a autonomia é apresentada quase como um direito negativo – o direito a recusar –, e não como um direito positivo, de partilha de responsabilidade.
Aliás, a obtenção do consentimento informado, como observa, entre outros Alfred Tauber, tem funcionado como mero cumprimento de um ritual de confiança, num contexto contratual que denega a essência do acto médico. Se de facto é hoje um complemento indispensável deste, a sua formulação, assumida pelo médico nos termos mais radicais que este diploma favorece, terá como consequência deslocar completamente a responsabilidade para o doente.
O risco é, pois, que a obtenção do consentimento informado nos termos enunciados no diploma se torne uma rotina no processo administrativo da prestação de cuidados de saúde, anulando aquilo que deve constituir o cerne da comunicação entre médico e doente, que se deve apoiar na confiança.
Repare-se que a formulação proposta não assegura, de forma alguma, por exemplo, que o doente compreende efectivamente a escolha que está a fazer, que a decisão é livre de qualquer forma de coacção e que os seus interesses reais são protegidos. De facto, o que é cada vez mais importante na medicina contemporânea é ajudar o doente a identificar o que é pertinente e relevante do ponto de vista pessoal, social, moral, etc. A afirmação da responsabilidade médica e o exercício de beneficência exigem o respeito pela dignidade do doente e, portanto, da sua autonomia.
O que este diploma esquece é que todos os estudos que se têm debruçado sobre esta questão demonstram que, embora os doentes apreciem e desejem que lhes seja dada informação sobre as várias opções diagnosticas e terapêuticas, o doente geralmente deixa a decisão final ao seu médico.
O cenário real da prática clínica actual é completamente diverso daquilo que parece ter inspirado o presente diploma.
De facto é importante ter em conta que:
1 – A assimetria tradicional do conhecimento entre médico e doente está cada vez mais esbatida por duas razões: a visualização da doença pela imagem e o acesso ao relatório desta, e o recurso à Internet.
2 – A medicina especializada, altamente tecnológica, veio aumentar substancialmente o risco, a incerteza e a complexidade da decisão. Mais do que nunca a informação transmitida é de natureza probabilística – 3% de mortalidade o que significa para o doente na situação real da clínica? – cuja apreensão é, mesmo para o doente sofisticado, extremamente difícil.
3 – A dificuldade crescente em o doente identificar quem é o seu médico e aquele com quem pode estabelecer um diálogo esclarecedor, não só sobre um procedimento específico, mas sobre todo o processo da doença.
O que o doente realmente quer saber, cada vez com maior insistência, é qual é a experiência profissional e os resultados do médico que se propõe tratá-lo e da instituição que o irá acolher. A última pergunta e, talvez para o doente, a mais relevante, é muitas vezes a seguinte: “É o Sr. Dr. que me vai operar?”. Quanto ao resto, o sentimento corrente ainda em Portugal é expresso em afirmações como: “Trate-me como se fosse da sua família”, “Faça o que for melhor para mim”, ou “Estou nas suas mãos.”
Note-se que o que isto significa é que o elemento básico da relação médico-doente continua a ser a confiança, e esta é o principal fundamento moral, igualmente, na ética da responsabilidade. Se isto é minado, por exemplo, por legislação como a proposta, a conduta médica será guiada pela necessidade de cumprir regras formais, que como se disse, deslocam a responsabilidade da decisão para alguém que não está habilitado para a tomar.
(...)
B – Declaração antecipada de vontade

É um tema da maior importância e sensibilidade que mereceria um cuidado especial.
Em fins de 2008 o Conselho da Europa promoveu a apresentação, em Estrasburgo, de um estudo encomendado ao Professor Roberto Andorno, do Instituto de Ética Biomédica da Universidade de Zurich, sobre os princípios comuns e as diferentes regras aplicáveis nos Sistemas Jurídicos Nacionais, quanto a vontades expressas precedentemente no caso dos cuidados de Saúde. O Grupo de Trabalho que preparou o Parecer final, com representação de 19 Países Europeus, entre os quais Portugal, aprovou como conclusão final que “si l’on compare les normes juridiques concernant les directives anticipées des pays européens, il est évident que les pays adoptent différentes approches, basées sur diverses traditions juridiques, sócio-culturelles et philosophiques. Certains pays accordent une valeur prédominante à l’autonomie du patient et à la possibilité de formuler des directives anticipées, tandis que d’autres reposent davantage sur des structures plus paternalistes et sont toujours réticents à légiférer dans ce domaine”.
Esta constatação dos Peritos europeus significa que, no plano ético, não há forma de legislar sem ter apreendido, a partir de um amplo debate nacional, livre e plural, quais são as posturas jurídicas, sócio-culturais e filosóficas que prevalecem numa sociedade.
A comparação desta parte do Projecto em apreço com as leis sobre declarações antecipadas de vontade de Países como a Espanha, a Inglaterra e País de Gales, a Hungria, a Bélgica, a Holanda, a Finlândia e a Áustria, demonstra que o disposto nos Artigos 14.º e 15.º é extremamente insuficiente para dar satisfação às grandes questões éticas subjacentes a tais declarações.
Atente-se por exemplo, ao n.º 5 sobre a eficácia vinculativa da declaração, cuja formulação é de tal forma imprecisa que trai irremediavelmente o objectivo que se propõe. É para nós incompreensível que se omita neste processo o papel da família. Vale a pena chamar a atenção para o facto de que o Projecto ignora que, como observa Peter Singer, as pessoas cujos direitos se pretendem salvaguardar, estão integradas numa comunidade moral, o que contribui para a construção da sua identidade, das suas convicções e dos seus juízos de valor.
Importa igualmente realçar que a declaração antecipada não se refere exclusivamente à negação dos cuidados a serem prestados, mas também, como é aliás referido, diz respeito a cuidados que desejam
que lhes sejam administrados. Quanto a estes, haverá certamente situações em que a vontade expressa pelo doente pode não fazer qualquer sentido, não só no contexto puramente técnico, mas igualmente numa perspectiva social ou até moral.
Os comentários que este projecto e o tema em si têm suscitado, parecem sugerir que a necessidade de legislar sobre esta matéria decorre da necessidade de conter aquilo que uma designação desgraçada chama de “encarniçamento terapêutico”. A relevância real desta prática é difícil de determinar, mas a observação de clínicos experimentados é que, se existe é, certamente, vestigial. O que existe, na realidade, é controvérsia em relação ao uso de meios terapêuticos cujo benefício
parece desproporcionado em relação à qualidade antecipável de vida ou à expectativa de sobrevivência e esta é matéria que, mais do que com a regulação jurídica, se prende com a avaliação rigorosa da evidência cientifica temperada pela consideração dos valores superiores ou pelo bem pessoal dos doentes. Nunca a boa prática médica foi modelada pelo normativo legal, mas sim pela educação, pelo rigor na avaliação científica e pela reflexão moral, que são os ingredientes próprios da medicina na sua vertente de epistemologia moral – epistemologia porque baseada no conhecimento, moral porque baseada em valores.
Nesse sentido, os “limites da eficácia da declaração antecipada” consignados no Artigo 15.º,introduzindo o conceito juridicamente complexo como o de ordem pública e cuja difícil concretização não pode nem deve ser exigível a um médico, não ajudam a esclarecer situações dilemáticas que estão no cerne de decisões moralmente tão difíceis.
Igualmente, a criação do “Procurador de Cuidados de Saúde” que, por deficiente redacção do n.º 2 do Artigo 16.º aparece descrito como «carecido» de capacidade jurídica em vez de dotado da mesma, salienta, mais uma vez, a omissão do papel da família, o que nos parece inaceitável e obrigaria a uma reflexão de outra profundidade. Por outro lado, a redacção do Artigo 17.º,cometendo ao Governo, e não remetendo para decreto-lei ou decreto regulamentar, como a matéria exigiria, a determinação da forma de designar o Procurador e o acesso rápido à existência e
identidade dos procuradores, para além de tecnicamente censurável, não ajuda a clarificar a intenção do legislador de tal modo que a recomendação é, do ponto de vista prático, difícil de executar.
Levanta-se aqui a questão se caberá ao médico procurar determinar se existe ou não um procurador, o que em situação de decisão urgente seria impraticável.
Não sendo possível, em tempo tão limitado, propor os vários Artigos que teriam de ser
acrescentados ao texto para que ficasse rigoroso e coerente tudo o que deve ser estabelecido no articulado, a proposta mais prudente e construtiva é a de retirar a Secção IV deste projecto e elaborar, no futuro, uma boa lei tratando exclusivamente das decisões antecipadas, cuja importância e necessidade não é de mais encarecer e salientar.
Este foi o caminho seguido na Alemanha, onde a lei, recentemente aprovada, foi precedida de demorados debates públicos e parlamentares e de intervenções de múltiplas organizações da Sociedade Civil. E, mesmo assim, as maiorias obtidas no Parlamento alemão foram sempre escassas, o que mostra a dificuldade de gerar consensos e o cuidado que deve ser tido para que uma maioria, sempre transitória, não violente os fundamentos éticos das posições minoritárias.
C – Autonomia e processo Clínico
Não parece que o princípio ético do respeito pela autonomia seja invocável no acesso de uma pessoa doente aos elementos de informação sobre o seu estado de doença, pelo que se sugere a mudança do título do Capítulo III para “Acesso ao processo clínico”. Porque é deste acesso que tratam os Artigos deste Capítulo e em nenhum deles se faz qualquer referência ao princípio ético de respeito pela autonomia.
Sendo certo que os dados concretos obtidos nas investigações, laboratoriais e outras, para diagnóstico, prognóstico e acompanhamento de terapêuticas, são pessoais e devem ser conhecidos do doente, já o modo como o doente deverá ter acesso ao processo carece de uma cuidados a avaliação. Não é menos certo que o processo clínico, como tal, não deve ser facultado ao doente. O processo clínico, além da história da doença, que é uma narrativa do próprio doente e é, obviamente, do seu conhecimento, contem um registo de observações diárias do estado do doente e de instruções para procedimentos; é, por isso, um instrumento de trabalho de médicos e enfermeiros.
O articulado deste Capítulo revela um desconhecimento do que é a relação médico-doente tal como ela é hoje correntemente praticada em hospitais e centros de saúde do SNS, mas também, no universo crescente da medicina privada.
O que prescreve o Artigo 21.º é eticamente inaceitável pois diz que a unidade de saúde nomeia um “responsável” pelo acesso à informação constante do processo clínico, o qual dá parecer sobre o requerimento escrito do doente para consultar o processo clínico e reproduzi-lo por qualquer meio.
Para além de não esclarecer quem decide sobre a consulta requerida, uma vez que o «responsável» só emite parecer, não disciplina o direito de impugnação da decisão adoptada e apenas cura de consagrar que tudo isto ocorrerá “sem intermediação de um médico”.
Como o articulado não diz se este direito do doente pode ser exercido durante o seu período de internamento e no decurso do tratamento, e não apenas após a alta médica, esta consulta do processo faz-se sem intermediação de um médico e com a autorização de um funcionário nomeado, cujas capacidades e competências não estão fixadas nos artigos. Pode ser muito prejudicial para a saúde e bem-estar da pessoa doente. O n.º2 do Artigo 22.º diz que “excepcionalmente o acesso pelo doente à informação sobre a sua saúde pode ser limitado”, mas não diz quem fará essa limitação. Como o n.1
do mesmo Artigo proíbe a intermediação de um médico deve ser o funcionário responsável pelo despacho do requerimento do doente, o que é eticamente inaceitável por “contaminar” a relação médico-doente com um elemento estranho.
Este acesso levanta ainda difíceis questões jurídicas que não parece estarem devidamente acauteladas pelo teor dos Artigos 23.º e 24.º, mas sobre elas não se faz qualquer comentário. Apenas se refere que a possibilidade, dada pelo n.º 4 do Artigo 22.º, de o titular da informação de saúde poder reproduzir,”por fotocópia ou qualquer outro meio técnico, designadamente, visual, sonoro ou electrónico” o conteúdo do processo clínico, abre uma perigosa via para os usos mais perversos,
com graves implicações jurídicas e éticas. Por outro lado parece-nos indispensável uma análise mais cuidadosa sobre o modo como a informação procurada no contexto da investigação clínica, se articula com a legislação actual sobre a prostecção de dados e ter em conta que o simples processo de automatização não anula a probabilidade de identificação do doente.
Assim, recomenda-se que esta parte do Diploma em apreço seja reformulada para estabelecer o que é informação pessoal e o que é processo clínico, para prevenir os maus usos dessa informação facultada à pessoa doente e para que o direito de acesso à informação não venha a ser causador de grave prejuízo à saúde do doente e ao correcto tratamento da sua doença.
Lisboa, 16 de Julho de 2009
Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida
Foram Relatores deste Parecer os Conselheiros Daniel Serrão e João Lobo Antunes.
Este parecer foi aprovado na reunião plenária do dia 16 de Julho de 2009, em que estiveram presentes: Paula Martinho da Silva, Daniel Serrão, João Lobo Antunes, Jorge Biscaia, Jorge Soares, José Pedro Ramos Ascensão, Marta Mendonça, Michel Renaud, Miguel Oliveira da Silva, Pedro Nunes, Rita Amaral Cabral.
( Para uma leitura integral do Parecer consultar o site do CNECV)

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