Poesia
Ter escrito com o sangue.
Também poderia ter escrito as visões
Se os olhos divididos em partes não sobrasssem
No vazio da ceguez
E luz.
Poderia ter escrito o que sei
Do futuro e de ti
E de ter visto no deserto
O silêncio, o fogo e o dilúvio.
De dormir cheio de sede e poderia
Escrever
O interior do repouso
E ser faúlha onde a morte vive
E a vida rompe.
E poderia ter escrito o meu nome no teu nome
Porque me alimento da tua boca
E na palavra me sustento em ti.
Daniel Faria, in Poesia,(Ed. Assírio & Alvim)
Passagem
Com que palavras ou que lábios
é possível estar assim tão perto do fogo
e tão perto de cada dia, das horas tumultuosas e das serenas,
tão sem peso por cima do pensamento?
Pode bem acontecer que exista tudo e isto também,
e não só uma voz de ninguém.
Onde, porém? Em que lugares reais,
tão perto que as palavras são de mais?
Agora que os deuses partiram,
e estamos, se possível, ainda mais sós,
sem forma e vazios, inocentes de nós,
como diremos ainda margens e diremos rios?
Manuel António Pina, in " Como se desenha uma casa" Ed. Assírio & Alvim
Revive ainda um momento
Na ‘sperança que perdi,
Flor do meu pensamento,
Hálito do que morri…
Inútil, irreal sorriso
Na penumbra de pensar…
Eu da vida que preciso?
O sonho com que a negar.
Vago luar de promessa,
Resto de sombra a morrer
Na antemanhã que começa
Ah, ter-te, e nunca viver.
Fernando Pessoa, in Quadras e Outros Cantares, Edição de Teresa Sobral Gomes, Relógio D’Água Editores, Lisboa ,1987
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