Zé
por António Lobo Antunes
"Ambos pouco tolerantes aceitávamos sem qualquer dificuldade o feitio complicado do outro. O Zé costuma dizer – Posso ser amigo de um pintor, de um pedreiro, de um médico. Para ser amigo de um escritor tenho que admirá-lo. E, (...), aceitávamos o outro e criámos uma relação indestrutível. Faz vinte anos que morreu o meu melhor amigo, o Zé, e a sua ausência continua a doer-me, como me dói o telefone não tocar às dez da manhã todos os dias e eu já saber que era ele antes de pegar no aparelho, como me dói não almoçarmos nem jantarmos nunca, como me dói não poder abraçá-lo. Encontrámo-nos pela primeira vez no aeroporto, quando íamos ambos apanhar o avião para o Brasil e ele, que eu nunca tinha visto mas conhecia de fotografias ou da televisão, dessas coisas, conforme tinha lido os seus livros
(eu começava a publicar nessa época)
fiquei a vê-lo aproximar-se, surpreendido. A sua única frase foi
– Olha que eu gosto de ti
e a nossa amizade surgiu de imediato, instantânea e absoluta, lembrei-me do João a chegar
(ainda vivíamos no mesmo quarto, ainda nenhum de nós saíra de casa dos pais)
com os primeiros livros de contos do Zé, o Anjo Ancorado, acho que o Hóspede de Job também, me dizer
– Comprei isto
porque partilhávamos quase tudo e eu a olhar as páginas, eu a ler, eu a perguntar, todo trocista
– Um escritor chamado Pires?
que era uma palavra que costumávamos usar para outras situações, devolvi-lhe os livros, voltei a pegar neles dias depois, achei a linguagem diferente daquilo que costumava ler nessa época, que era também, quase sempre, o João que trazia, eu andava mais por autores estrangeiros, os portugueses que descobrimos na altura foram descobertas do meu irmão, Manuel da Fonseca
(recordo-me, por exemplo, da Seara de Vento com a reprodução de um quadro de Vespeiro na capa)
Urbano, Namora, Vergílio Ferreira, e depois o João lia e estudava e eu lia e escrevia. Cada um tinha a sua estante de um lado do quarto e não me recordo de alguma vez havermos discutido. Bom, li o tal José Cardoso Pires, pareceu-me um bocado obnóxio em relação aos outros, depois fui gostando mais, depois apareceu-me o milagre de Blondin a juntar-se ao milagre de Céline, depois comecei a ficar farto de escritores portugueses que só me contavam histórias de operários bons e patrões maus, depois percebi que o Zé era diferente disso, depois fui crescendo, depois os outros escritores portugueses vivos foram desaparecendo mas o Zé ficou, o Zé e a Agustina, depois aquilo que eu escrevia desatou a mudar, depois fui-me aproximando de uma voz interior que não sabia que tinha, tudo isto lento, penoso, ganho palmo a palmo entre angústias e dúvidas, depois a Memória de Elefante e depois, aí pela Explicação dos Pássaros, o Zé e eu conhecemo-nos no aeroporto, chegámos ao Brasil, viemos do Brasil e na vinda do Brasil éramos amigos íntimos, depois cresci o que me faltava e já tinha o único irmão que os meus pais não me deram. Nunca existiu entre nós uma sombra, quanto mais uma zanga, e nenhum da gente os dois era fácil. Tão diferentes em muita coisa havia uma sintonia absoluta e gostávamos das nossas dissonâncias, que nos uniam ainda mais. Ambos pouco tolerantes aceitávamos sem qualquer dificuldade o feitio complicado do outro. O Zé costuma dizer
– Posso ser amigo de um pintor, de um pedreiro, de um médico. Para ser amigo de um escritor tenho que admirá-lo.
E, apesar dos desacordos, por exemplo eu era do Benfica e ele era só do Néné, aceitávamos o outro e criámos uma relação indestrutível. Se um ganhava um prémio exultávamos ambos. Recordo-me, por exemplo, de ele começar um telefonema assim:
– Quero dar-te os parabéns porque ganhei um prémio.
Era o Pessoa, acho eu, e fiquei todo contente. Levei-o para a minha editora, proibia-lhe o vinho, ele ralhava-me quando não concordava, discutíamos aceitando-nos sem custo, eu admirava nele, para além do talento, claro, a coragem e a bondade, encorajavamo-nos nos momentos de desânimo, acreditávamos na capacidade um do outro, lembro-me de trabalharmos juntos o seu De Profundis, lembro-me das infinitas correções que ele sugeria para os meus livros, éramos de uma franqueza absoluta, se necessário às vezes brutal, a nossa amizade nunca sofreu um pingo. Depois o Zé adoeceu, depois o Zé morreu e eis-me, de repente, orfão do meu irmão de alma, mais velho vinte anos do que eu umas vezes e tão meu filho outras. O que a gente vibrava com os triunfos do amigo, o que a gente sofria com as dores! Quando o Zé morreu pessoas que eu não conhecia vinham dar-me os pêsames. E ficou dentro de mim um vazio que nunca cicatrizou. Já tinha tido um irmão, cinco irmãos mais novos, tu eras o meu irmão mais velho. Eras não: és. Tu serás para sempre o meu irmão mais velho. Meu Deus o que eu podia escrever acerca de ti. Mas o que eu gostava mesmo era voltar a encontrar-te. Consolo-me pensando que, mesmo sem nos vermos agora, continuamos juntos. Há com certeza um aeroporto por aí à espera de nos cruzarmos de novo."
António Lobo Antunes, em Crónica publicada na VISÃO nº 1341, de15 de Novembro de 2018
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