sexta-feira, 28 de agosto de 2020

A peste de Bocaccio em 1348


Neste ano de 2020, vimos chegar uma peste que lançou as garras e nos reteve em confinamento por meses e continua à solta por aí.
Não é inédito este tempo pestilento e doente . Há mais de seiscentos anos  grassou por Itália e dizimou Florença.  Boccacio (Junho de 1313-Dezembro de 1375) descreve-o, logo  no início do seu inesquecível "Decameron". É fácil descobrir as similitudes. Tal como agora, veio do Oriente. Eis , então, um excerto dessa obra: 

" Já tinha chegado o ano de 1348 da fecunda encarnação do filho de Deus, quando a cidade  de Florença, nobre, entre as mais famosas da Itália foi vítima da mortal epidemia. Fosse  a peste obra de influências  astrais  ou a consequência  das nossas iniquidades e que Deus , na sua cólera, a tivesse precipitado sobre os homens, como punição dos seus crimes , a verdade é que ela se havia declarado  alguns anos antes  nos países do Oriente, onde arrastara para a perda inúmeras vidas humanas. Depois prosseguindo a sua marcha  sem se deter , propagou-se , para nosso mal, na direcção do Ocidente. Todas as medidas sanitárias foram sem efeito.  Por mais que os guardas especialmente encarregados disso limpassem a cidade dos montes  de imundície, por mais que se proibisse a entrada a todos os doentes e se multiplicassem as prescrições de higiene, por mais que se recorresse às súplicas e às orações que se usam nas procissões e àquelas, de outro género de que os fiéis se desobrigam para com deus, nada deu resultado . Logo nos primeiros dias primaveris do ano a que me referi, o terrível flagelo começou, de maneira surpreendente, a manifestar as suas dolorosas devastações.
(...)A intensidade da epidemia aumentou pelo facto de os doentes contagiarem , no seu contacto diário, os indivíduos ainda sãos, tal como o fogo quando se aproxima de uma porção de matérias secas ou gordas. E o que ainda propagou mais o desastre foi não só  o facto  de a prática com os doentes comunicar  o mal  e dar a  morte às pessoas sãs, mas o simples contacto com roupas  ou o que quer que fosse que os pestíferos tivessem tocado ou manejado , pois através de tais objectos logo a peste se transmitia a quem deles se servisse.
(...) Esses acidentes e muitos outros do mesmo género, senão piores, fizeram nascer, naqueles que continuavam vivos , pânicos e obsessões de diferentes espécies, que em geral conduziam à mesma atitude cruel: fugia-se ao doente e a tudo o que o cercava. No pensamento íntimo de cada um, era este  o meio de se conseguir a própria salvação. Alguns pensavam que uma vida sóbria e a abstenção de tudo o que fosse supérfluo se impunham para combater ataque tão terrível. Formavam pois a sua brigada e viviam afastados dos outros. Agrupados e reclusos em casas,  onde não havia doentes e onde a vida era mais agradável, usando com a maior moderação comidas delicadas e vinhos requintados, fugindo a todo e qualquer deboche , não deixando ninguém falar-lhes, recusando-se a ouvir qualquer notícia vinda do exterior a respeito de mortes ou doenças , passavam o tempo a ouvir música ou entretidos com outros prazeres castos. Gente havia, porém, que se conduzia de modo bem diverso. Achavam esses que entregarem-se por completo às bebidas e à licenciosidade , andarem galhofando pela cidade, de canções  nos lábios , satisfazerem as paixões  na medida do possível , rindo  e troçando  dos mais tristes  acontecimentos , era o mais seguro remédio contra um mar tão atroz.
(...)Ao lado dos indivíduos que praticavam os  dois tipos de vida a que me referi,  muitos havia  que adoptavam um meio termo. Menos preocupados do que os primeiros em se restringirem a comer pouco , nem por isso se abandonavam aos excessos de bebida e ao deboche dos segundos.  Utilizavam tudo com conta , peso e medida e segundo as suas necessidades. Em vez de se fecharem dentro de casa, circulavam pelos arredores , tendo nas  mãos umas  vezes flores , outras ervas  aromáticas, outras várias especiarias.  Levavam-nas por vezes às narinas  e consideravam excelente preservar o cérebro aspirando perfumes , porque  a atmosfera parecia corrompida e envenenada pelo cheiro horrível dos cadáveres , dos doentes e dos medicamentos. 
(...) Quaisquer que fossem os princípios seguidos , muitos eram atingidos , e em qualquer parte. Eles próprios , antes de caírem doentes , tinham dado o exemplo  aos que continuavam sãos.  Estavam pois abandonados e definhavam por todo o lado . Devo acrescentar que os cidadãos fugiam  uns dos outros  e que ninguém  se preocupava  com os vizinhos? As visitas entre parentes, quando aconteciam , eram raras  e feitas de longe.  O desastre pusera tanto terror  no coração  dos homens  e das mulheres  que o irmão abandonava  o irmão, o tio o sobrinho, a irmã  o irmão, muitas vezes  mesmo a mulher e o marido. E até  - o que é ainda mais forte e quase inacreditável  - os pais e as mães evitavam ir ver  e auxiliar os filhos , como se já não lhes pertencessem.
(...) Era uso - uso este que ainda persiste em nossos dias  - que as senhoras , primas  ou vizinhas  de um morto, se reunissem em casa dele , a fim de juntar as suas lágrimas às dos parentes mais próximos. (...)Os padres  apareciam também, conforme   a categoria social  que o defunto tivera.  Depois , as pessoas da mesma condição , carregavam o homem aos ombros  e transportavam-no para a igreja que ele escolhera antes de morrer. Mas quando a  epidemia  começou a manifestar a sua violência, tais práticas  cessaram totalmente  ou em grande parte. Em seu lugar, estabeleceram-se outras.  Muitas  pessoas  morriam sem ter à sua volta numerosa assistência  feminina.  Muitas morriam  mesmo sem testemunha. 
(...) Pegavam no caixão  e transportavam -no rapidamente, não à igreja, que o defunto designara  antes da morte, mas geralmente à que ficava mais perto. Quatro  ou seis padres  seguiam à frente , brandindo  um magro luminar , que às vezes  faltava por completo. Com o auxílio dos gatos-pingados , e sem dar ao trabalho de um ofício demasiado longo ou solene, punham o mais depressa possível  o caixão na primeira sepultura  vazia que encontravam.
(...)A crueldade do céu  e talvez  a dos homens , foi tão rigorosa, a epidemia  grassou de Março  a Julho  com tanta violência  , uma multidão de doentes  foi tão mal socorrida , ou mesmo, em consequência do  medo que inspirava  às pessoas  saudáveis , abandonada  numa indigência  tal , que se calcula com segurança  em mais de cem mil  o número de homens que perderam a vida  dentro dos muros da cidade de Florença. "
Bocaccio , in " Decameron", Círculo de Leitores,  pp. 16-24

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