La
vie serait impossible si l’on se souvenait, le tout est de
choisir ce qu’on doit oublier.
Roger Martin du Gard
Teimava em afundar-se na memória. Queria fugir a
este presente que nada lhe dizia. Há muito que deixara de ouvir as notícias, de
ler os jornais ou de tentar saber como
estava o mundo. Para quê? Bastava saber que não podia sair de casa. Alguém se
encarregara de lhe colocar na caixa do correio
um aviso da Câmara Municipal. Nesse dia, correra à sala, ávida de
confirmação. Ligou a televisão e as notícias vieram em catadupa. A peste dominava todos os
noticiários. Morria-se no mundo . Números assustadores eram repetidos por mil e
um comités de saúde, espalhados pelo mundo. A OMS soletrava alertas que se
tinham como dogmas. Acreditar e respeitar era o único caminho. A salvação não
era prometida. Apenas cumprir sem remissão à vista.
Deixou-se ficar. Nada mais tinha a fazer. E, ao
ficar, desistiu de saber. Esse mundo de peste não a interessava. A vertigem da
morte dominava o mundo. Todos se confinavam e as ruas ficavam desertas. A
propaganda pestilenta passou a ocupar esses espaços vazios.
Refugiara-se nas paredes da memória. Por vezes,
antecipava futuros que não seriam os seus. Apenas lhes dava forma e peso
conforme o sonho ou o arrebatamento lhe
permitia. Tudo isso passou a ser mundo , o seu mundo. Não teria falta de mais mundo para estar viva. Há quem afirme que se
deixa de falar ou de ter vida quando não há mundo , ou seja, não se vive para
além das paredes de uma casa. Esquecem-se de que paredes e muros comportam realidades
diferentes. Os muros são barreiras que se erguem, paredes são o amparo que nos
protege .
Levantava-se com a aurora , vivia o dia , deitava-se
com a noite. O dia nem sempre era longo.
A noção de tempo fugira-lhe. Nem sabia o que era agora. Nunca se interessara
tão pouco pelo movimento dos ponteiros.
Os relógios tornaram-se dispensáveis . Regia –se por um tempo interior. Um tempo volátil. Que
se fazia por vezes à velocidade da luz
ou , em contramão, se deixava ir a passo de caracol, se é correcto
atribuir-lhe um passo.
Naquele dia , acordara estranhamente ao meio-dia a
ouvir vozes e a inalar odores tão remotos que não imaginava ser o dia do seu nascimento.
Recordava-se perfeitamente da azáfama que marcara o
ritmo daquela casa, onde nascera . A
mãe já muito pesada dirigia os trabalhos.
Os cheiros a cera e alfazema pairavam no ar e
chegavam já até ela como perfume de um passado longínquo. Tudo lhe foi surgindo como se já tivesse vivido
durante um período único. Era como se
estivesse por fora do tempo. Gravitava num tempo que não era real ,mas que a fazia
projectar no tempo dos outros. E surgiu-lhe a casa numa dimensão real. Os irmãos ainda muito pequenos enchiam aquele espaço de sons e ruídos. A casa da
infância onde a mãe se propunha
organizar o seu nascimento.
Ana mandava
abrir a gaveta da cómoda grande onde os lençóis de linho, com rendas feitas
pelas fiandeiras da Quinta de Chãos, se sobrepunham numa ordem quase natural. A
gaveta era pesada e se não fossem os braços fortes de Fernanda seria impossível
puxá-la.
Era necessário
organizar rapidamente a casa para o nascimento deste filho. Estava-se em Agosto
e a família de João viria encher
totalmente o que restava ainda de vazio naquela casa . Sempre fora assim. A
família vinha sempre!
Nem sempre se
sentia bem nesta altura. Sentia-se pesada e uma certa ansiedade tomava-a.
Ninguém a notava. Só ela e aquele pequeno ser que partilhava todos os seus
segredos. Vivia aninhado num berço recôndito dentro de si. Acariciava-o e
afagava-o com segredos únicos que ficariam selados até à eternidade , se ela
descesse para ambos.
Nos anos anteriores, esforçara-se para realizar,
com o rigor que a todos habituara, a
festa do nascimento dos outros filhos.
Ainda hoje
recorda a alegria que experimentara.
Estava grávida
do terceiro filho e isso enchia toda a sua vida e todo o seu tempo.
Por vezes sentia que nada mais lhe interessava a não ser a maternidade. Era qualquer coisa que a transcendia , mas a tornava
imensamente feliz e segura de um destino que nunca antevira.
A memória. Ah , a memória traz a saudade dos dias
felizes. E a saudade nasceu ontem, virá
amanhã e é hoje o dia de todos os dias: o meu.
Maria
José Vieira de Sousa, in “O Tempo da
Memória”
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