quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Petrarca e Boccacio

"A Idade Média deu lugar ao Renascimento quando, na Sexta-Feira Santa de 1327, numa igreja da cidade papal de Avinhão, Francesco Petrarca viu Laura di Sade, cuja delicada beleza, duplicada pela modéstia, fê-lo esquecer todas as outras divindades.
Laura recebeu com calma a adoração do poeta e deu à sua paixão todo o estímulo da negação: ao longo dos 26 anos que se seguiram, Petrarca compôs 207 poemas - todos sobre ela - na mais requintada das músicas e na mais requintada das línguas.
(...) Os poemas de Petrarca , a sua sensibilidade à beleza feminina, à natureza, à literatura e à arte  deu voz  a um estado de espírito italiano básico e a sua busca apaixonada  e a tradução dos manuscritos clássicos tornou-o estimado entre os poetas e os prelados de toda a Europa Ocidental.
Em Roma, a 8 de Abril de 1341, uma procissão colorida de jovens e senadores escoltou Petrarca até à escadaria do Capitólio, e aí lhe colocaram uma coroa de louros sobre a cabeça. A partir desse dia reis e papas  receberam-no com prazer  nas suas cortes como o príncipe reinante das letras europeias.  Boccacio equiparava-o aos "antigos ilustres", e Itália proclamava que Virgílio havia renascido.
Boccacio tinha nessa altura 28 anos.  Começara a sua vida em Paris, em consequência de um entendimento cordial não premeditado entre o seu pai , um mercador  florentino e uma rapariga francesa de princípios libertinos. O seu nascimento não programado e a sua origem semigaulesa influenciam provavelmente o seu carácter  e o seu estilo.
Em 1331 - quatro anos antes do êxtase de Petrarca -, Boccacio apaixonou-se quando rezava numa igreja napolitana. A dama era a bela Maria d'Aquino, conhecida pela sua piedade e o seu cabelo dourado. Boccacio chamou-lhe  Fiammeta - pequena chama - e aspirava chamuscar-se no seu fogo. Durante cinco anos , Boccacio perseguiu-a  com a sua poesia e a sua prosa.  Maria deixou-o ficar à espera  até que as outras bolsas se esgotaram, e depois aceitou-o até que a sua bolsa se esgotou. Boccacio deixou Nápoles e instalou-se em Florença. 
Aí, em 1348, chegou o grande flagelo da Peste Negra, que matou metade dos seus 100 mil habitantes. O  Decameron de Boccacio começa com uma descrição assustadora  da mortalidade : quase todas as famílias de Florença estavam condenadas a assistir à morte dos seus membros, vendo partir os infectados para morrerem anónimos , nas  ruas. Em Decameron, Boccacio inspira-se na peste: sete jovens mulheres , parentes ou vizinhas, encontram-se numa igreja e combinam sair juntas  de Florença , com as suas criadas, e esperar numa villa do campo até que a peste desapareça. Como maneira agradável de mitigar o aborrecimento, elas convidam três amigos para as acompanhar. Instalam-se numa casa espaçosa e, para passar o tempo, decidem todos os dias contar uma história , à vez. Como ficaram juntas dez dias , contaram cem histórias.  Foi por isso que Boccacio intitulou a sua colecção de Decameron , que em grego significa " dez dias" ( deka hemerai). Algumas destas novelas  são cruamente sensuais , como a do viril Masetto, que tomava conta de um convento  de freiras; algumas são histórias de amor virtuoso, como a da paciente Griselda; algumas têm um conteúdo filosófico, como a lenda dos três anéis igualmente preciosos, simbolizando  os credos judaico, cristão e muçulmano. Deduzimos  que Boccacio representava uma classe média  que estava a perder a fé  num cristianismo literal, e até mesmo no código moral cristão.
Assim, logo na sua infância, o Renascimento propunha prazeres no mundo terreno em vez dos prazeres hipotéticos de um paraíso pós-morte.  O Renascimento restaurou não só a literatura da Antiguidade clássica, mas igualmente a sua procura de uma liberdade hedonista. Foi, em parte, a libertação pagã dos sentidos  de pois de mil anos de disciplina moral assente em crenças sobrenaturais. " 
Will Durand , in  "Breve História da Civilização", Editores Clube do Autor, S.A., Lisboa, Portugal, 1ª edição, Outubro de 2014, pp. 213-216

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