Ilustração: Susa Monteiro |
O Vice-viajante
por Mia Couto
por Mia Couto
"Foi assim, dizem, que a doença se espalhou. A pele das crianças ficou coberta de escamas, as mães coçavam o corpo dos filhos e as crostas saltavam como se estivessem a preparar peixe. Morreu muita gente, dizem mesmo que morreram todos os habitantes
Sou de Quionga, onde termina o rio e começa o mar. Nasci no dia em que, num improvisado mastro da administração, içaram a bandeira de Moçambique. Logo ali, uns passos acima, a terra tem outro nome. Chama-se Tanzânia. Parte da minha família veio de lá, do outro lado da fronteira.
Estou a fugir do meu lugar por causa da guerra. Vou para um destino que não conheço. Para mim, esse destino chama-se Vida. Para trás, ficaram os meus pais, que foram mortos pelos terroristas. Cortaram-lhes a cabeça, os braços e as pernas. Escapei porque pensaram que não havia mais ninguém dentro da casa que incendiaram ao mesmo tempo que gritavam “Allahu Akbar”. Gritavam “Deus é Grande” e eu, que sou muçulmano, pensei na grandeza de Deus enquanto, numa mesma cova, juntava os restos dos meus pais.
Estou a fugir do meu lugar por causa da guerra. Vou para um destino que não conheço. Para mim, esse destino chama-se Vida. Para trás, ficaram os meus pais, que foram mortos pelos terroristas. Cortaram-lhes a cabeça, os braços e as pernas. Escapei porque pensaram que não havia mais ninguém dentro da casa que incendiaram ao mesmo tempo que gritavam “Allahu Akbar”. Gritavam “Deus é Grande” e eu, que sou muçulmano, pensei na grandeza de Deus enquanto, numa mesma cova, juntava os restos dos meus pais.
Assim que tudo voltou ao silêncio, meti-me pelos caminhos onde só andam os bichos. Deambulei durante horas. Desde o início estranhei o peso dos meus pés. Por que razão me cansava tanto, se viajava sem nenhum dos meus pertences? E pensei: levo o rio dentro das mãos.
Cheguei à estrada e cruzei com um camião que transportava madeira. O camionista deteve-se para me dar boleia. Antes que eu fizesse menção de entrar, o homem estendeu-me um pano e mandou que cobrisse o rosto e o atasse na nuca. Recusei. Eu vinha de uma matança em que os soldados estavam todos mascarados. Os panos desses assassinos eram negros. Mas eram panos. E era gente sem rosto.
O motorista levantou o braço a apressar a minha decisão: ou era como ele mandava, ou ele me deixava ali apeado. Obedeci. Instalei-me ao lado do condutor e ele pôs o veículo em marcha antes mesmo que eu fechasse a porta.
— Estás a fugir das balas para ir ao encontro da doença — disse ele.
Não entendi. E nada perguntei. O camião avançava a uma tal velocidade que alguns troncos foram tombando com aparato. Quando, finalmente, chegámos ao asfalto, o motorista suspirou e confessou que o melhor seria suspender a sua atividade enquanto não chegasse a paz.
— Perdi a conta do número de pessoas que salvei desta nova guerra — disse ele. — Trouxe-os na carroçaria, sentados em cima dos troncos, às dezenas.
— E agora onde me vai deixar?
— Vou deixar-te num campo de refugiados que acabaram de construir perto da cidade. Ali, vais ficar como todos os outros: juntos, mas separados. Nunca ouviste falar do distanciamento social?
Depois, o caminho fez-se entre silêncio e poeira. Observei as duas bermas da estrada e pensei como a guerra e a doença caminham juntas, como os dois braços de um mesmo corpo. Olho para o meu lado: o motorista não quer ser vencido pelo sono. Pede-me que o distraia. Foi então que me ocorreu uma história que se contava na minha família. E conto essa história ao motorista como se, ao narrar esse passado, a minha casa ressurgisse das cinzas.
Quando veio a epidemia da varíola, a aldeia do meu avô ficou deserta. Mais do que deserta: amaldiçoada. Os pés de quem a visitava convertiam-se em pedra. Uma aldeia sem gente deixa de ter céu: as nuvens desabam no chão, brancos panos sem uso.
E sucedeu aos vivos o que acontece com os falecidos: ninguém mais podia dizer o seu nome. Quem trouxe essa doença? — perguntavam. As doenças não se trazem. Acendem-se. É como o fogo: aquilo já lá está. Nós somos apenas fósforos. E somos a palha que arde e a cinza que resta.
Na altura, ninguém deu conta, mas aquela epidemia chegou de braço dado com a guerra. E ninguém se apercebeu porque essa guerra era entre ingleses, portugueses e alemães. E aconteceu assim: os primeiros europeus que visitaram a nossa aldeia foram os alemães. Aconteceu antes de o meu avô ter nascido. Sem dúvida, esses alemães eram brancos, mas de outra raça, tinham descido por outros mares, de portos mais longínquos. Por isso, traziam os olhos mais azulados e os cabelos mais deslavados.
Quando se instalaram em Quionga, esses estrangeiros olharam o rio e acharam-no muito largo. Mandaram que os habitantes do lugar estreitassem o rio. Os aldeões deixaram a tarefa para a noite. Iriam executar o trabalho quando estivessem a dormir. Durante o sono, todos saíram dos seus corpos e empurraram as margens do rio, que se foram estreitando até que, num certo ponto, elas se tocaram. Assim, os brancos puderam transpor o rio sem ter de erguer pontes nem esperar por barcos.
Depois de um tempo, os alemães mandaram que a nossa gente voltasse a alargar o rio. Havia uma guerra e eles tinham medo de que os ingleses os cercassem a partir da margem Norte. Queriam fazer do rio Rovuma uma fortaleza. Derrubaram as pontes e queimaram os barcos. O rio foi reposto no seu antigo lugar. Os alemães ali se mantiveram instalados, como se fossem donos do mundo. Quem tem armas pode mandar nas pessoas. Mas não pode mandar nos rios nem no mar.
E foi pelos rios e pelo mar que, numa certa noite, chegaram os atacantes. Deu-se uma grande batalha. Morreram muitos soldados europeus. Os seus corpos foram levados pelo rio e arrastados pelas correntes marinhas. À medida que eram engolidos pelas águas, esses europeus convertiam-se em peixes. Nos dias seguintes, as crianças de Quionga recolheram milhares de escamas que brilhavam sobre a areia branca. Os meninos e as meninas colocaram as escamas sobre os ombros, esperando que uma outra raça lhes fosse concedida.
Foi assim, dizem, que a doença se espalhou. A pele das crianças ficou coberta de escamas, as mães coçavam o corpo dos filhos e as crostas saltavam como se estivessem a preparar peixe. Morreu muita gente, dizem mesmo que morreram todos os habitantes. Os que escaparam foi porque, sem sobreviventes, a própria morte podia morrer. Assim, uns tantos foram devolvidos à vida. E o primeiro a regressar foi o meu avô. E é por isso que ele nunca se cansou de perpetuar esta lembrança.
Foi esta a história que contei durante a viagem. O dono do camião pediu-me se não tinha mais histórias. Quando me calei, estávamos já a entrar no campo de refugiados. O motorista despediu-se de mim sem desligar o motor da viatura. Já me tinha instalado numa das dezenas de tendas, quando escutei a insistente buzina do camião. Corri para a entrada do campo e vi o motorista acenando.
— Junta as tuas coisas e vem comigo — ordenou.
— As minhas coisas? — estranhei.
— Vais ficar em minha casa — afirmou o motorista — Passas a ser meu ajudante de viagens.
E ainda hoje é isso que eu faço: ajudo o motorista a viajar. Sentado ao seu lado, vou contando histórias. Há apenas um pormenor: estamos ambos sentados na varanda. O camião está parado, avariado e sem pneus. O motorista há um tempo que está adoentado. Veio uma brigada da Saúde fazer os testes. Mas o resultado deu negativo. A esposa do condutor diz que tudo aquilo são saudades de andar pelo mundo. Mas eu sei que a enfermidade do motorista é verdadeira. Porque sofro da mesma doença. Para nos curarmos vai ser preciso que a estrada volte a ser um rio. E que a corrente leve a guerra e lave a doença.
Com as minhas histórias vou empurrando as margens do rio. O motorista me agradece a ilusão de uma ininterrupta viagem. E eu devolvo a gratidão: cada história minha será sempre uma reza junto à anónima cova onde se deitaram os meus pais."
Mia Couto , em artigo publicado na revista VISÃO 1431, de 14 de Agosto 2020
Sem comentários:
Enviar um comentário