David Mourão Ferreira nasceu há 97 anos, no dia 24 de Fevereiro de 1927.Faleceu a 16 de Junho de 1996. Foi uma das figuras mais marcantes das nossas Letras.
Recuperámos um belíssimo texto de outro grande escritor, Eugénio Lisboa, para homenagear o poeta, o crítico literário , o ensaista, o romancista , o professor de quem fui privilegiadamente aluna.
David Mourão-Ferreira:
Memórias
de uma amizade
por
Eugénio Lisboa
“Conheci
David Mourão-Ferreira, nos primeiros meses de 1955, quando lhe fui apresentado
por José Régio, que viera, por poucos dias, a Lisboa. Eu acabara o serviço
militar em Portalegre, em fim de Fevereiro desse ano, a mesma Portalegre em que
o próprio David fora oficial aspirante miliciano poucos anos antes.
David
era um príncipe solar, aberto, sorridente e infinitamente propiciador. Régio
olhava-o, por então, de soslaio, obviamente seduzido, mas desconfiado. Não
gostara de um ou outro gesto do David mas não apreciava, sobretudo, a
desenvoltura com que o seu jovem amigo se movimentava na selva literária de
Lisboa, que o autor de A Velha Casa tinha por corruptora, no mais alto
grau.
Literariamente,
eu simplesmente não existia a não ser pelo facto de o Régio me ter por essa
altura convidado para fazer uma antologia da sua poesia – coisa a haver -, sem
qualquer meu currículo anterior que sustentasse o convite. Principescamente, o
David passou por cima disso, ignorando o facto óbvio de poder – e dever – ter
sido ele o convidado: jovem autor que por então era, com um punhado de textos
críticos e ensaísticos que o chumbavam, desde logo, à nossa história literária,
e dois livros de poesia publicados que, de imediato, indiciavam nele um lírico
de nome a reter. Mas, como disse, o David, criador genuíno, tinha a
generosidade dos que têm para dar e vender. Acompanhou-me, deu-me informações
às carradas, falou-me de autores que me poderiam interessar e emprestou-me um
punhado de livros em que figuravam algumas admirações comuns: Thomas Mann, por
exemplo, de que saíra, em francês, por essa altura, Le Mirage, livro que
viria a ser traduzido para português, por Domingos Monteiro, com o título de O
Cisne Negro.
Eu
ia partir, dentro de muito pouco tempo, para Moçambique: tinha três estágios de
engenharia a completar, com os respectivos relatórios a submeter e tinha,
sobretudo, que organizar e prefaciar a antologia regiana, com todos os anexos
da praxe. Ainda por cima, para uma colecção dirigida pelo João Gaspar Simões,
que era um homem susceptível e a quem o Régio impusera o meu nome, isto
é, o de um desconhecido. Tudo, em vésperas de partida para um futuro
profissionalmente desconhecido e depois de, desenvoltamente, ter recusado uma
boa oferta de emprego para uma grande indústria em Alverca. Há atrevimentos que
só a leviandade da juventude ajuda a explicar. A manhã em que meti no
correio, para Portalegre, o manuscrito da antologia,
seguiu-se a várias noites sem dormir, a toque de muita anfetamina. Parti dias
depois.
Durante
os vinte e um anos que passei em Moçambique, os contactos com o David não foram
nunca epistolares: o David, como é de todos sabido, não era dado a amizades
epistolares: amizade, sim, epistolografia, não. Homem de muita e diversificada
escrita, ele não sentia a atracção da epístola. Ainda assim, como eu vinha com
alguma periodicidade a Lisboa, quando isso acontecia, lá estava o David a
receber-nos galhardamente, a mim e a minha mulher, em sua casa (ou em suas
casas), ou a sós, ou com alguns amigos, como o saudoso José Palla e Carmo –
grande crítico e ensaísta que a banca e a doença cedo devoraram -, enchendo-me
de novidades, de ideias, de seduções, de pistas, de ofertas, de contactos, de
luz e de calor. Saía destas visitas revigorado e estimulado, com energias
renovadas para ir cumprir o meu fado humilde mas iluminado, nas paragens
longínquas de uma Lourenço Marques bonita, animada e intelectualmente longe de
ser desprezível. O David ficava-me, em Lisboa, como referência que eu guardava
dentro de mim até nova visita. Foi ele, é só um exemplo, que me chamou a
atenção para um daqueles livros que muito me impressionaram e que comprei em
Londres, logo a seguir a tê-lo visto recomendado pelo David, numa visita que
fiz à sua casa na Rua dos Ferreiros: o volume de ensaios, editado pela Penguin,
The Triple Thinkers, do grande ensaísta americano, de extracção
marxista, Edmund Wilson.
Quando,
em 1957, vivia eu então na Beira, a minha antologia regiana veio finalmente a
lume, a recensão crítica feita pelo David foi das poucas que dedicaram ao
livrinho simpatia e perspicácia: fazendo, com delicadeza, um ou outro justo
reparo, o autor de Hospital das Letras “lera” sem dúvida o meu livro e
compreendera o esforço de sondagem, em profundidade, que eu ali tentara – com
achegas que eram novas e às quais o próprio Régio fora sensível. Já agora – e
porque vem a talhe de foice – outro dos que “repararam” no livro foi o
neo-realista António Ramos de Almeida, que não me conhecia, e dedicou ao meu
labor crítico palavras de calorosa simpatia e generosa compreensão.
Fiquei
a dever ao autor de Um Amor Feliz imensas dádivas dos mais diversos
teores. Mas fiquei a dever-lhe, sobretudo, os dezassete inesquecíveis anos que
passei em Londres, como conselheiro cultural na nossa embaixada. Encontrando-me
em Estocolmo, em 1977, a leccionar na Universidade, vim a Lisboa, nas férias de
verão , num carro comprado em 5ª mão e vertendo todo o óleo que tinha ao longo
dos milhares de atormentados quilómetros entre a Escandinávia e o extremo
ocidental da Ibéria. Como trazia um recado do Ministério da Cultura sueco para
o Secretário de Estado da Cultura, David Mourão-Ferreira, fui vê-lo, no
edifício da Avenida da República, ao pé do Restaurante Galeto. Era verão e o
compromisso da universidade sueca comigo terminava em Dezembro. Eu não fazia a
mínima ideia do que iria fazer a seguir, com família a sustentar – uma filha a
entrar na universidade -, mãe a regressar, viúva, de uma África em delírio de
prec local e duas irmãs de meu pai, também
regressadas de décadas africanas, sem meios, sem profissão, sem
reformas-a-haver, e sem idade para começar vida, sem nada, para falar curto e
certeiro.
Mal
tinha transmitido ao David o meu recado oficial, que recebeu sem comentários, e
antes que a conversa pudesse derivar para fofoquices literárias – eu nunca me
atreveria a glosar, para o David, as minhas angústias pessoais – perguntou-me
se me agradaria a ideia de ir ser conselheiro cultural na embaixada de
Portugal, em Londres. A sugestão juntava o útil – salvar-me da débâcle – ao
agradável – ir trabalhar naquilo de que gostava – e, mesmo, ao inimaginável: ir
viver para Londres, o único sítio onde me via viver, em alternativa à
vida que, durante 38 anos, tivera em Lourenço Marques. Sempre pensara que, se
tivesse um dia que sair de África, era Londres e não Paris ou Lisboa que me
atraía... E o David, como boa fada propiciatória e divinatória, ali estava a
fazer-me a mais improvável das propostas. Temi que os deuses se estivessem a
divertir comigo e perguntei, atarantado, se aquilo era apenas uma hipótese
remota ou era mesmo a sério. O David, sorridente, deu logo pormenores e logo
ali se ofereceu para telefonar – e telefonou! – ao embaixador Albano Nogueira,
então Secretário Geral, no Ministério dos Negócios Estrangeiros,
recomendando-lhe o meu nome, o qual foi prontamente aceite. Deixo de lado
pormenores que aqui não interessam, mas terei que referir que a recomendação
oficial, por escrito, que se juntou ao processo e trazia a assinatura do
Secretário de Estado, David Mourão-Ferreira, era muito menos o produto das
minhas capacidades culturais do que da inesgotável solidariedade e generosidade
do poeta de Do Tempo ao Coração.
Dizia
Henry Adams, professor em Harvard e celebrado autor da autobiografia The
Education of Henry Adams, que “um amigo no poder é um amigo perdido”, mas o
David, no poder ou fora dele, era sempre um amigo com quem se podia contar. O
número de pessoas que poderia corroborar esta minha afirmação é muito elevado e
não poucos estarão ainda vivos. Um conhecido primeiro ministro britânico
gabava-se de ter tido os melhores amigos que já alguém teve. Mais modesto mas,
ainda assim, infinitamente feliz, eu direi que tive apenas “alguns dos
melhores” e não “os melhores” amigos. De entre esses, sobressai, sem dúvida, o
autor de Órfico Ofício. Que nunca exerceu o poder como forma de
arrogância, antes sempre o usou com o infalível instinto de fazer bem .
Enquanto
conselheiro cultural da Embaixada de Portugal em Londres, tive ocasião, por
mais de uma vez, de convidar David a ir proferir conferências em Londres,
Oxford, Cardiff e Leeds. Foram ocasiões memoráveis: o nome do autor de Gaivotas
em Terra era sempre um chamariz infalível: as salas enchiam-se e, falando
de Pessoa, de Teixeira Gomes ou de Cesário, o grande ensaísta cativava, com o
seu verbo bem colocado e musicalmente impecável, uma audiência que se deixava
enfeitiçar pela claridade da exposição e pela arquitectura inatacável da
construção. David era, a um tempo, audaciosamente inovador e clássico,
iluminando e desassossegando, emitindo luz mas deixando que se suspeitasse da
existência de sombras...
Nunca
soube como pagar tanta dádiva, tanta generosidade, tanta luz e tanto calor. Em
vida do David, escrevi sobre ele, dois únicos
textos: um, publicado no nº 61 da Colóquio/Letras, de Maio de
1981 e intitulado “Uma Claridade de Sombras e de Luzes: a «Obra Poética» de
David Mourão-Ferreira”; o outro, sobre o ensaísta David Mourão-Ferreira,
publicado no Jornal de Letras, como protesto sibilino contra uma
inqualificável atitude do Secretário de Estado da Cultura, Santana Lopes. Escrevi outros, depois do seu falecimento.
Mas creio, tentando ser objectivo, que foi aquele texto, publicado há 25 anos,
na Colóquio, a melhor homenagem que, dentro do que me limita, eu poderia
ter dedicado à complexa riqueza do autor de Matura Idade. Porque faço
nele uma sondagem que se não quis nem superficial, nem conformista com uma
certa imagem-cliché que se tem vindo a construir em torno da sedutora figura de
David Mourão-Ferreira: um príncipe solar, um predador dos alimentos terrestres,
um cantor interminável do Eros e suas adjacências, um emissor de luz que
nenhuma sombra desassossegou...Foi isto David? O seu canto é isto? Resume-se a
isto? Rejeita ele o que não é isto? Acho que não, até porque os textos contam
outra história, dizem outra coisa, como o dizia de resto a conversa e o
comportamento quotidiano do amigo com quem muitos de nós privaram. Havia nele
um óbvio rio subterrâneo de sombra e de funda angústia existencial que nenhuma
solaridade demitia e muito menos apagava. Chego a pensar – e aqui coloco-me à
beira do ultraje – que David foi, em muitos casos, bastante apreciado na
proporção de não ter sido devidamente compreendido. Dizia Chamfort, um pensador
aforista que David por certo admirou, que “muitos homens e mulheres gozam de
estima popular, não porque são
conhecidos, mas sim porque são desconhecidos.” A solaridade de David, o contentismo erótico
de David têm sido pano para muita manga que lhe não assenta tão bem como se tem
querido supor. Há no discurso criador do autor de In Memoriam Memoriae um
indiscutível débito solar, mas trata-se de um sol, por isso mesmo que é sol,
que exibe um perturbante teor de manchas ...solares. Toda a luz pressupõe treva
e , como diz Eliot, na sua tragédia, Murder in the Cathedral, “a treva
declara a glória da luz”. Muita da luz que o texto davidiano exibe é uma luz
que a treva pressupõe e ostensivamente declara, quando é preciso. Assim como
muita da treva que o seu texto faz explodir no nosso rosto é uma treva que a
luz pressupõe e inequivocamente declara.
Neste
mundo em que nada se perde ou ganha e tudo se transforma, até o inverno do
nosso descontentamento, como dizia sibilinamente o Ricardo III de Shakespeare,
se transforma em verão glorioso pela acção do sol de Iorque. Do mesmo modo que
toda esta luz se despenhará no turvo e negro massacre que leva, primeiro, ao
triunfo e ao poder, e depois, à derrota e à morte. Julieta, na peça do mesmo
Shakespeare, é, como se sabe, o sol. E contudo...
Quando,
no poema “Do tempo ao Coração”, nos diz:
“De
milhões e milhões que rebentam com fome
Ao
dom do caviar para abrir o apetite
Do
canto gregoriano à música electrónica
Dos
berros da oração ao silêncio de um grito
“De
tanto a muito mais. De tudo a quase nada
Só
não sei que tecido oscila entre os extremos
Se
apenas o amor Se o vulto da amada
Se
trevas Se uma luz Se o tempo em que vivemos,
David
está a insinuar um desassossego entre luz e treva que, por muito outro lado, a
sua obra revisita: “A lira é com certeza a mão esquerda de Orfeu / Mas é a mão
direita que revolve o lodo”, diz um outro poema, intitulado,
significativamente, “Ars Poetica”.
“Segredar num soneto a área do remorso” é o antepenúltimo verso do
soneto “Interior” e peço licença para não ver aqui indícios ofuscantes da tal
solaridade que tão frequentemente nos é sugerida. No centro do sol davidiano,
explodem, de quando em quando, trevas como esta:
As
noivas dos abetos vestiram-se de luto
As
aias dos abutres caminhavam de rojo
Das
trinta e nove amantes que me roubaram tudo
Trezentas
e noventa desfizeram-se em lodo
Ou
como esta:
Habita-me
na sombra a luz de uma gaivota
Fulgura-te
na luz a sombra de um espadarte
Textos
que pedem a consagração de uma medalha, que podemos ir buscar ao melhor dos
patronos, o Milton de Samson Agonistes:
“O dark, dark, dark, amid the blaze
of noon”
(“Ó
treva, treva, treva, no meio do fulgor do meio-dia”
É
para esta treva que habita com força no fulgor do meio-dia do discurso poético
e ficcional de David Mourão-Ferreira que eu hoje gostaria de chamar aqui – e de
novo – a vossa atenção e a vossa devoção. “O próprio sol não passa de um
simulacro e a luz é apenas a sombra de Deus”, dizia Sir Thomas Brown,
oferecendo-nos esta óbvia epígrafe para a riqueza perturbada e perturbante que
vivifica – com tónicos e venenos – o tecido sedutor, mas também intrigante, de
todo o opus davidiano.”
Eugénio
Lisboa