terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

Desafios da filosofia no século XXI

  


Desafios da filosofia no século XXI: ciência e sabedoria
por Ivan Domingues 
"Ao juntar filosofia, ciência e sabedoria numa oportunidade como esta, por ocasião das festividades da entrega do Prêmio Fundep e no contexto da aula inaugural da FAFICH, duas coisas que me tocaram fundo e muito me honraram, minha intenção é celebrar as humanidades (afinal, fui premiado na área de humanidades e artes) e, no interior delas, destacar a situação da filosofia (pois, é a área da qual eu venho e à qual devo tudo ou quase tudo). Eu digo celebrar, porque as velhas humanidades, tais como elas surgiram do medievo, passaram pela renascença e chegaram à modernidade, reuniam a filosofia, a ciência e a sabedoria num só campo de conhecimento. Trata-se de uma época em que as distinções dos campos disciplinares eram mais elásticas, as especializações mais fluidas e a filosofia moral garantia a ligação da filosofia e da ciência com o mundo da ação, ligação requerida por toda a sabedoria que se preze, do Oriente e do Ocidente. Ora, é justamente esse liame da filosofia, da ciência e da sabedoria que se rompeu no curso da modernidade, gerando a conhecida situação de uma ciência sem filosofia e sem sabedoria, bem como de uma filosofia sem sabedoria e sem ciência. Minha tentativa ao longo da conferência, uma vez convencido de que esse estado de coisas não pode persistir, sob pena de pôr tudo a perder, será justamente a de restabelecer as pontes entre a filosofia, a ciência e a sabedoria (bem entendido: a sabedoria não é uma disciplina, mas um olhar e uma atitude), tendo por foco a filosofia contemporânea e por eixo os grandes desafios do pensamento no século XXI.
Passemos à filosofia e examinemos sua situação. Vista no mundo antigo como a rainha do saber, a filosofia perdeu o privilégio na idade média para a teologia, assim como na modernidade para a física, depois de um breve interregno em que recuperou o antigo status e exerceu a primazia nos séculos XVI e XVII. Passado mais um lapso de tempo, ao se chegar ao século XX e à curva do XXI, a situação mais uma vez mudou, tendo a física cedido o posto para a biologia (ou alguém duvida de que a bola da vez é a biologia?) e ficando a filosofia cada vez mais à margem: espécie de rainha da Inglaterra, nobre porém inútil, como todo roi fait-néant das monarquias constitucionais. Todavia, paralelamente à perda de status, o problema que me preocupa não é a questão pragmatista dos serviços da filosofia, se ela é útil, se ela serve ou não serve para alguma coisa, como se fosse um martelo ou uma outra ferramenta, mas algo diferente. Ou seja, junto com a perda de status, o que me preocupa e o que eu gostaria de compartilhar com vocês é a perda de relevância da filosofia, questão bem mais grave, pois quando isso acontece, quando algo perde a relevância e ninguém dá mais a mínima, o melhor que alguém pode fazer, como viu Bill Gates, é fechar o boteco e trancar as portas. A meu ver, essa é a situação a que chegou a filosofia no século XX, com o fim da cultura humanista e o ocaso das humanidades, dando lugar a uma cultura pragmatista e ao império das tecno-ciências, ao qual voltarei daqui a pouco.
Um sinal eloqüente da perda da importância, se não da irrelevância da filosofia, malgrado os grandes ícones como Husserl na primeira metade do século e Heidegger e Wittgenstein na segunda, é o Prêmio Nobel. Criado em 1901, há Nobels de física, de química, de medicina (ou fisiologia), de literatura, de paz e de economia (este, desde 1969), e nenhum de filosofia. Em quatro ocasiões, não a filosofia, mas quatro filósofos foram honrados com o Prêmio: um certo Rudolf Eucken, em 1908, de linhagem espiritualista, mestre de Max Scheller, bastante influente na Suíça e na Alemanha da época, e hoje um ilustre desconhecido; Henri Bergson, em 1927, então no auge de sua carreira; Bertrand Russell, em 1950, lógico brilhante e renomado pacifista; Jean-Paul Sartre, em 1964, que declinou do Prêmio. A nota curiosa é que todos eles, inclusive Sartre, ganharam o Prêmio Nobel de literatura, sem dúvida um lugar menos inóspito para acolhê-los do que a física, a química ou a medicina, porém, ao que parece, mais em virtude de seus talentos literários (patente em Bergson, duvidoso em Eucken) do que propriamente filosóficos. Haveria outras coisas a considerar dos três premiados e da recusa de Sartre, mas vou ficando por aqui. Sob esse aspecto, aliás, a situação da filosofia não difere muito da sociologia, lingüística, história e outras disciplinas das ciências humanas, que também não têm Prêmio Nobel. Tal foi durante algum tempo o caso da matemática: na época em que a Academia da Suécia criou a honraria, a velha ciência partilhava o mesmo teto com a física e foi deixada de lado como área do conhecimento, o que não quer dizer que matemáticos não tenham sido premiados ... como físicos. A situação vai ser alterada depois, com a hiper-especialização da irmã física e sua crescente tecnologização, motivando os matemáticos a criarem o seu prêmio, longe de Estocolmo, a Medalha Field. Tal não é o caso da filosofia: além de estar excluída do prêmio famoso, não tem uma medalha como a da matemática.
Para avaliar a situação, com a intenção tanto de fazer o diagnóstico dos males que afligem a filosofia (a falta de relevância) quanto de indicar a terapêutica e encontrar-lhe os remédios, eu proponho que voltemos mais uma vez os olhos ao séc. XX e procuremos sondar, nas águas movediças de Chronos, o que nos aguarda no séc. XXI. Eu disse antes, ao tentar situá-la no sistema do saber, que a filosofia, tendo ocupado o posto de rainha das ciências, foi destronada primeiro pela teologia, na idade média, e depois pela física, ciência que no início dos tempos modernos – acrescento eu agora – trocou a filosofia pela matemática. Disse também que esta situação foi alterada no século XX – eu preciso agora, na segunda metade do século XX –, quando foi a vez de a física ser destronada, ao ceder o posto de rainha do saber para a biologia, mais precisamente a genética, a qual deverá ocupar toda a cena do conhecimento ao longo do séc. XXI. Voltando a essas duas afirmações, com a intenção de pensar o lugar da filosofia, a qual vai aparecer junto com as artes em muitos filósofos (Sartre, Heidegger, Rorty, Bergson), eu direi que nada é mais certo e, também, nada é mais inexato do que esses pensamentos. Mais certo, porque de fato houve esses deslocamentos e troca de posições no ranking do saber. Mais inexato, porque nos dá uma idéia parcial do que de fato sucedeu no séc. XX: simplesmente, o século XX instala o império das tecno-ciências e leva ao destronamento da ciência pela tecnologia ou das ciências básicas pelas ciências aplicadas, que passam a ocupar toda a cena, para desconforto do físico e do biólogo. Desde então, se não é errado dizer que os séculos XVIII-XIX assistiram à assunção da física, que passou a ser a rainha do saber, não é menos inexato que o século XX foi o século da física e da engenharia, ao passo que o século XXI será o século da biologia e das biotecnologias, ao patrocinar a fusão da engenharia e da genética. Os resultados desse processo são bastante conhecidos: junto com a instauração do império das tecno-ciências, foi todo um novo modo de produzir conhecimento que veio ao mundo (laboratórios em rede, fusão da ciência com a indústria, taylorização do trabalho intelectual etc) e todo um mundo que foi posto de ponta-cabeça, ao trocar as incertezas do saber empírico e as substâncias da natureza pelos engenhos da tecnologia e os artifícios do aparato técnico. E as conseqüências, extraordinárias: nunca foi gerado tanto conhecimento e se produziu tantos cientistas e engenheiros como no século XX; nunca, também, se engenhou tanto e se criaram tantas engenhocas; nunca a técnica foi tão pródiga e tão grande seu raio de ação, desde as tecnologias materiais, ao colocar à disposição dos humanos as substâncias das matérias junto com as forças ocultas da natureza, passando pela agro-indústria (engenharia de alimentos etc), até chegar ao homem e ao mundo humano, primeiro ao corpo, depois às instituições, enfim à mente, modificando-os, re-engenhando-os e potencializando-os (dispositivos, chips etc); nunca o sonho prometeico foi tão longe: da conquista do cosmo infinito à imortalidade do homem – tudo é uma questão de labor e de tempo. Em contraste com as promessas e as realizações da técnica no século XX – de alcance e impacto tão extraordinários quando os engenhos surgiram, e ao mesmo tempo tão domesticados e tão banais ao se instalarem em nossos lares e escritórios: nunca saberemos agradecer todas as potencialidades e comodidades da vida que devemos aos engenheiros! –, em contraste com tudo isso, nunca se matou tanto quanto no século XX (as duas guerras mundiais, as guerras civis na Rússia e na China, as guerras civis cotidianas nos quatro cantos do planeta etc...) e nunca houve no Ocidente uma crise de valores tão profunda e de efeitos tão devastadores: nihilismo moral, deserção do social, abandono da política. Ora, o que aconteceu, justamente nesse ponto e num quadro desolador como esse, em que a filosofia é chamada e em que o filósofo tem algo a dizer, foi justamente o encapsulamento da filosofia e o recolhimento do filósofo – a filosofia, ao trocar a companhia da ciência e da técnica pela arte, ela mesma nihilista, como em Heidegger, que a julgou imunizada contra o mal, ou então pelo senso comum e o silêncio místico, como no segundo Wittgenstein; o filósofo, vítima de uma vertigem abissal e tomado de um sentimento de impotência invencível, virou as costas ao mundo, encastelou-se em sua mente ou então nos textos e se refugiou em tecnicidades. Não obstante, Heidegger e Wittgenstein foram filósofos genuínos, e eu mesmo já tive a ocasião de celebrar em artigos a grande importância do austríaco e do alemão na filosofia contemporânea.
Tal é, pois, o quadro e a situação da filosofia no séc. XX. Dos grandes filósofos, daqueles considerados gênios ou gigantes, Husserl foi o último a colocar a filosofia em compasso com a ciência, ao pensar o fundamento das matemáticas, bem como a tentar pôr a filosofia em sintonia com seu tempo, ao pensar a crise da civilização européia – porém, quem se lembra dele hoje? e quem se há de lembrar depois que Weber, melhor do que ele, pensou o destino do Ocidente n'A ética protestante e o espírito do capitalismo? Heidegger, por seu turno, continuou a trilhar a senda do idealismo alemão ao trocar a metafísica pela ontologia e, sem ter o que dizer a respeito da ciência, depois de juntar filosofia e arte, refugiou-se em sua cabana na Floresta Negra e lá ficou à espera do clarão e do chamado, quer dizer, como Schopenhauer e Wittgenstein, agarrou-se à saída mística. Quanto à Wittgenstein, ao que parece, ao trocar o cristal puro do Tractatus pela antropologia cultural difusa das Investigações filosóficas, deixou intocado o silêncio místico. Não os wittgensteinianos, que trocaram a mística pelo pragmatismo, muitas vezes um pragmatismo ralo, cuja consistência e maior densidade vão buscar no culturalismo e relativismo das inúmeras visões de mundo disponíveis no mercado das crenças de Londres, Nova York e São Francisco. Lá, como alhures, em São Paulo, em Berlim e em Nova Delhi, os wittgensteinianos – não todos, evidentemente –, continuarão, despreocupados e seduzidos, a reverenciar as extravagâncias do indivíduo incomum e a cultuar a mente divina do mestre, sem se darem conta de que os sociólogos, antropólogos e lingüistas, além de melhor aparelhados, estão mais bem aquinhoados nesse terreno, eu digo, o terreno da cultura e da história.
Nos últimos anos, em artigos e conferências venho chamando a atenção dos colegas e alunos para esse estado de coisas, e hoje volto novamente ao ponto. O ponto, a meu ver, é que tudo isso aconteceu depois que o idealismo alemão, tendo rompido o liame da filosofia com a arte, a ciência e o mundo da vida e da ação, encastelou a filosofia na mente do filósofo e passou a fazer filosofia – com a intenção de fundar uma super-ciência, o saber absoluto – entregando-se de corpo inteiro aos atos puros do pensamento, sem dar a mínima para a experiência e fiando-se tão-só nas virtudes especulativas da mente. O resultado foi uma floresta de idéias, cujas sandices e impertinências foram impiedosamente atacadas por A. Humboldt, depois de ler a filosofia da história de Hegel. E mais – perdoem-me os colegas hegelianos, por eu falar desse jeito, mas sou forçado (é Hegel que me obriga, e eu mesmo já fui hegeliano, ou quase) – junto com a floresta de idéias, uma arrogância intelectual nunca vista antes. Arrogância evidenciada ao propor um saber absoluto acima da arte, da religião e da ciência, capaz de desprezar Newton (o idiota da atração universal) e de rebaixar as matemáticas (nem propedêutica é: trata-se de um cálculo mecanizável). Arrogância associada a uma atividade mental desmesurada e uma especulação sem peias (pois a dialética das idéias e o poder especulativo da mente são vistos como as credenciais da filosofia e as ferramentas do filósofo), deixando como herança, além das extravagâncias do filósofo (como o "eu metafísico" distinto da consciência e do sujeito, de Fichte), o legado tenebroso e chauvinista da filosofia moral (sacralização do estado, virilidade dos teutos, pan-germanismo, hegemonismo alemão). Ora, foi justamente contra esse estado de coisas que se insurgiram Marx, Nietzsche, Feuerbach, Kierkegaard, Schopenhauer, Heidegger, dando origem ao processo de dissolução do idealismo alemão, iniciado no séc. XIX, continuando no séc. XX e que está longe de ter-se encerrado.
Entendo que uma das tarefas mais importantes da filosofia ao longo do séc. XXI será justamente aprofundar e levar até o fim o processo de dissolução do idealismo alemão. Outra tarefa, não menos importante, será levar adiante o fim da virada lingüística na filosofia, depois de ter cumprido a missão de franquear à reflexão filosófica o mundo ruidoso da linguagem – até então paradoxalmente, salvo poucas exceções, reduzido ao silêncio – e motivada pela necessidade – verdadeira urgência – de livrar a filosofia contemporânea da inflação de linguagem e de filosofias da linguagem. Junto com a desinflação, o desafio será disponibilizar à reflexão filosófica um outro lugar onde inscrever a mente, para além da linguagem, da frase, do signo, do pragma e do arqui-traço da filosofia analítica, da hermenêutica pós-romântica, do neo-pragmatismo, do pós-estruturalismo e do pensamento da desconstrução. Tendo-se esgotada a filosofia analítica e convertida numa espécie de escolástica, como bem viu Richard Rorty, ao dizer que aquela corrente acabou e que o sinal disso é que há décadas ela perdeu seu império nos dois lados do Atlântico, há quem esteja à espera de uma nova virada. Não de uma nova virada lingüística, que já se esgotou e já disse a que veio, ao percorrer todos os caminhos possíveis e dimensões da linguagem, com a guinada adquirindo um tríplice viés sintático, semântico e pragmático em diferentes correntes filosóficas, mas da virada cognitivista, que colocaria a filosofia a mercê dos programas do cérebro das agências americanas, bem como de inteligência artificial do CALTECH e do MIT. Porém, por mais que procure, a filosofia não encontrará a mente na cuba de formol, nem na tela do computador. Ao apresentar minhas reservas em relação à filosofia da mente, não quero dizer que a questão da mente seja trivial ou que esteja resolvida. Além de não estar decidida, estou convencido de que a questão entrará cada vez mais na agenda da filosofia no séc. XXI, que terá diante de si a tarefa difícil de incorporar os resultados das neurociências, as quais, alheias às disputas filosóficas, estão puxando o carro neste terreno.
Por isso, ao pensar a situação atual da filosofia, as tarefas em curso e os desafios a serem vencidos, minha proposta é límpida em seu propósito e metodologicamente bastante simples em sua operacionalização: em vez de procurar uma arché para o pensamento ou um lugar privilegiado onde inscrever o pensamento ou a célula originária ou a matriz do real e do pensamento (como a Mente, a Imaginação, a Vontade, a Linguagem, o Desejo etc), trata-se de tomar a filosofia como o lugar da reflexão e da experiência do pensamento, vale dizer do pensamento reflexivo, de sorte que se a filosofia perdeu a relevância e se esterilizou é porque o filósofo, entregue às tecnicidades, renunciou ao pensamento e não quis mais pensar. Esta tomada de posição, que nada tem de arrogante e de misteriosa – pois, como é sabido, o cultivo do logos define a atividade da filosofia e o ethos do filósofo desde os gregos –, levará a recolocar a relação da filosofia com o real em novas bases, bem como a delimitar o espaço próprio onde vão se delinear e inscrever as relações da filosofia com a sabedoria e a ciência. A idéia que eu vou sustentar é que o lugar da filosofia e o locus do pensamento filosófico não é exatamente o real ou o empírico, mas o abstrato e o virtual. Vem a ser, o lugar do questionamento, da desestabilização e da crítica, e como tal a um tempo conectado com o real (porém, o virtual, como aliás o pensamento, é real, e o real, virtual), perguntando por mundos possíveis, abrindo-se a fantasias e utopias, e resistindo enquanto pode às solicitações do cotidiano. Daí, a exemplo do artista e à diferença do cientista, o filósofo não ter compromisso com a realidade, no sentido de realidade factual ou de real empírico, e no exercício de suas funções ser um a-polis, termo que vem do historiador grego Luciano e que quer dizer um intelectual apátrida, desterrado de seu país e um verdadeiro cidadão do mundo, sem habitar qualquer país em particular. Todavia, essa a-topia a marcar a conduta e o pensamento do intelectual universal, junto com a resistência ao paroquial e ao chauvinismo local, em busca de horizontes mais largos, não afasta a necessidade de dar aos pensamentos o quadro e às ações o contexto, como no meu caso ao indagar pela situação e os desafios da filosofia no séc. XXI, e nesta tarefa todo cuidado é pouco."
Conferência ( excerto) de Ivan Domingues (Professor titular de filosofia da UFMG- Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil ) 

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