sábado, 24 de fevereiro de 2024

Nos 97 anos de David Mourão-Ferreira


1989, Eugénio Lisboa com David Mourão-Ferreira

David Mourão Ferreira nasceu há 97 anos, no dia 24 de Fevereiro de 1927.Faleceu a 16 de Junho de 1996.  Foi uma das figuras  mais marcantes das nossas Letras. 
Recuperámos um belíssimo texto de outro grande escritor, Eugénio Lisboa, para homenagear o poeta, o crítico literário , o ensaista, o romancista , o professor de quem fui privilegiadamente aluna.   

David  Mourão-Ferreira: 
Memórias de uma amizade
por Eugénio Lisboa
“Conheci David Mourão-Ferreira, nos primeiros meses de 1955, quando lhe fui apresentado por José Régio, que viera, por poucos dias, a Lisboa. Eu acabara o serviço militar em Portalegre, em fim de Fevereiro desse ano, a mesma Portalegre em que o próprio David fora oficial aspirante miliciano poucos anos antes.
David era um príncipe solar, aberto, sorridente e infinitamente propiciador. Régio olhava-o, por então, de soslaio, obviamente seduzido, mas desconfiado. Não gostara de um ou outro gesto do David mas não apreciava, sobretudo, a desenvoltura com que o seu jovem amigo se movimentava na selva literária de Lisboa, que o autor de A Velha Casa tinha por corruptora, no mais alto grau.
Literariamente, eu simplesmente não existia a não ser pelo facto de o Régio me ter por essa altura convidado para fazer uma antologia da sua poesia – coisa a haver -, sem qualquer meu currículo anterior que sustentasse o convite. Principescamente, o David passou por cima disso, ignorando o facto óbvio de poder – e dever – ter sido ele o convidado: jovem autor que por então era, com um punhado de textos críticos e ensaísticos que o chumbavam, desde logo, à nossa história literária, e dois livros de poesia publicados que, de imediato, indiciavam nele um lírico de nome a reter. Mas, como disse, o David, criador genuíno, tinha a generosidade dos que têm para dar e vender. Acompanhou-me, deu-me informações às carradas, falou-me de autores que me poderiam interessar e emprestou-me um punhado de livros em que figuravam algumas admirações comuns: Thomas Mann, por exemplo, de que saíra, em francês, por essa altura, Le Mirage, livro que viria a ser traduzido para português, por Domingos Monteiro, com o título de O Cisne Negro.
Eu ia partir, dentro de muito pouco tempo, para Moçambique: tinha três estágios de engenharia a completar, com os respectivos relatórios a submeter e tinha, sobretudo, que organizar e prefaciar a antologia regiana, com todos os anexos da praxe. Ainda por cima, para uma colecção dirigida pelo João Gaspar Simões, que era um homem susceptível e a quem o Régio impusera o meu nome, isto é, o de um desconhecido. Tudo, em vésperas de partida para um futuro profissionalmente desconhecido e depois de, desenvoltamente, ter recusado uma boa oferta de emprego para uma grande indústria em Alverca. Há atrevimentos que só a leviandade da juventude ajuda a explicar. A manhã em que meti no correio,  para  Portalegre, o manuscrito da antologia, seguiu-se a várias noites sem dormir, a toque de muita anfetamina. Parti dias depois.
Durante os vinte e um anos que passei em Moçambique, os contactos com o David não foram nunca epistolares: o David, como é de todos sabido, não era dado a amizades epistolares: amizade, sim, epistolografia, não. Homem de muita e diversificada escrita, ele não sentia a atracção da epístola. Ainda assim, como eu vinha com alguma periodicidade a Lisboa, quando isso acontecia, lá estava o David a receber-nos galhardamente, a mim e a minha mulher, em sua casa (ou em suas casas), ou a sós, ou com alguns amigos, como o saudoso José Palla e Carmo – grande crítico e ensaísta que a banca e a doença cedo devoraram -, enchendo-me de novidades, de ideias, de seduções, de pistas, de ofertas, de contactos, de luz e de calor. Saía destas visitas revigorado e estimulado, com energias renovadas para ir cumprir o meu fado humilde mas iluminado, nas paragens longínquas de uma Lourenço Marques bonita, animada e intelectualmente longe de ser desprezível. O David ficava-me, em Lisboa, como referência que eu guardava dentro de mim até nova visita. Foi ele, é só um exemplo, que me chamou a atenção para um daqueles livros que muito me impressionaram e que comprei em Londres, logo a seguir a tê-lo visto recomendado pelo David, numa visita que fiz à sua casa na Rua dos Ferreiros: o volume de ensaios, editado pela Penguin, The Triple Thinkers, do grande ensaísta americano, de extracção marxista, Edmund Wilson.
Quando, em 1957, vivia eu então na Beira, a minha antologia regiana veio finalmente a lume, a recensão crítica feita pelo David foi das poucas que dedicaram ao livrinho simpatia e perspicácia: fazendo, com delicadeza, um ou outro justo reparo, o autor de Hospital das Letras “lera” sem dúvida o meu livro e compreendera o esforço de sondagem, em profundidade, que eu ali tentara – com achegas que eram novas e às quais o próprio Régio fora sensível. Já agora – e porque vem a talhe de foice – outro dos que “repararam” no livro foi o neo-realista António Ramos de Almeida, que não me conhecia, e dedicou ao meu labor crítico palavras de calorosa simpatia e generosa compreensão.
Fiquei a dever ao autor de Um Amor Feliz imensas dádivas dos mais diversos teores. Mas fiquei a dever-lhe, sobretudo, os dezassete inesquecíveis anos que passei em Londres, como conselheiro cultural na nossa embaixada. Encontrando-me em Estocolmo, em 1977, a leccionar na Universidade, vim a Lisboa, nas férias de verão , num carro comprado em 5ª mão e vertendo todo o óleo que tinha ao longo dos milhares de atormentados quilómetros entre a Escandinávia e o extremo ocidental da Ibéria. Como trazia um recado do Ministério da Cultura sueco para o Secretário de Estado da Cultura, David Mourão-Ferreira, fui vê-lo, no edifício da Avenida da República, ao pé do Restaurante Galeto. Era verão e o compromisso da universidade sueca comigo terminava em Dezembro. Eu não fazia a mínima ideia do que iria fazer a seguir, com família a sustentar – uma filha a entrar na universidade -, mãe a regressar, viúva, de uma África em delírio de prec local e duas irmãs de meu pai, também  regressadas de décadas africanas, sem meios, sem profissão, sem reformas-a-haver, e sem idade para começar vida, sem nada, para falar curto e certeiro.
Mal tinha transmitido ao David o meu recado oficial, que recebeu sem comentários, e antes que a conversa pudesse derivar para fofoquices literárias – eu nunca me atreveria a glosar, para o David, as minhas angústias pessoais – perguntou-me se me agradaria a ideia de ir ser conselheiro cultural na embaixada de Portugal, em Londres. A sugestão juntava o útil – salvar-me da débâcle – ao agradável – ir trabalhar naquilo de que gostava – e, mesmo, ao inimaginável: ir viver para Londres, o único sítio onde me via viver, em alternativa à vida que, durante 38 anos, tivera em Lourenço Marques. Sempre pensara que, se tivesse um dia que sair de África, era Londres e não Paris ou Lisboa que me atraía... E o David, como boa fada propiciatória e divinatória, ali estava a fazer-me a mais improvável das propostas. Temi que os deuses se estivessem a divertir comigo e perguntei, atarantado, se aquilo era apenas uma hipótese remota ou era mesmo a sério. O David, sorridente, deu logo pormenores e logo ali se ofereceu para telefonar – e telefonou! – ao embaixador Albano Nogueira, então Secretário Geral, no Ministério dos Negócios Estrangeiros, recomendando-lhe o meu nome, o qual foi prontamente aceite. Deixo de lado pormenores que aqui não interessam, mas terei que referir que a recomendação oficial, por escrito, que se juntou ao processo e trazia a assinatura do Secretário de Estado, David Mourão-Ferreira, era muito menos o produto das minhas capacidades culturais do que da inesgotável solidariedade e generosidade do poeta de Do Tempo ao Coração.
Dizia Henry Adams, professor em Harvard e celebrado autor da autobiografia The Education of Henry Adams, que “um amigo no poder é um amigo perdido”, mas o David, no poder ou fora dele, era sempre um amigo com quem se podia contar. O número de pessoas que poderia corroborar esta minha afirmação é muito elevado e não poucos estarão ainda vivos. Um conhecido primeiro ministro britânico gabava-se de ter tido os melhores amigos que já alguém teve. Mais modesto mas, ainda assim, infinitamente feliz, eu direi que tive apenas “alguns dos melhores” e não “os melhores” amigos. De entre esses, sobressai, sem dúvida, o autor de Órfico Ofício. Que nunca exerceu o poder como forma de arrogância, antes sempre o usou com o infalível instinto de fazer bem .
Enquanto conselheiro cultural da Embaixada de Portugal em Londres, tive ocasião, por mais de uma vez, de convidar David a ir proferir conferências em Londres, Oxford, Cardiff e Leeds. Foram ocasiões memoráveis: o nome do autor de Gaivotas em Terra era sempre um chamariz infalível: as salas enchiam-se e, falando de Pessoa, de Teixeira Gomes ou de Cesário, o grande ensaísta cativava, com o seu verbo bem colocado e musicalmente impecável, uma audiência que se deixava enfeitiçar pela claridade da exposição e pela arquitectura inatacável da construção. David era, a um tempo, audaciosamente inovador e clássico, iluminando e desassossegando, emitindo luz mas deixando que se suspeitasse da existência de sombras...
Nunca soube como pagar tanta dádiva, tanta generosidade, tanta luz e tanto calor. Em vida do David, escrevi sobre ele, dois únicos  textos: um, publicado no nº 61 da Colóquio/Letras, de Maio de 1981 e intitulado “Uma Claridade de Sombras e de Luzes: a «Obra Poética» de David Mourão-Ferreira”; o outro, sobre o ensaísta David Mourão-Ferreira, publicado no Jornal de Letras, como protesto sibilino contra uma inqualificável atitude do Secretário de Estado da Cultura, Santana Lopes.  Escrevi outros, depois do seu falecimento. Mas creio, tentando ser objectivo, que foi aquele texto, publicado há 25 anos, na Colóquio, a melhor homenagem que, dentro do que me limita, eu poderia ter dedicado à complexa riqueza do autor de Matura Idade. Porque faço nele uma sondagem que se não quis nem superficial, nem conformista com uma certa imagem-cliché que se tem vindo a construir em torno da sedutora figura de David Mourão-Ferreira: um príncipe solar, um predador dos alimentos terrestres, um cantor interminável do Eros e suas adjacências, um emissor de luz que nenhuma sombra desassossegou...Foi isto David? O seu canto é isto? Resume-se a isto? Rejeita ele o que não é isto? Acho que não, até porque os textos contam outra história, dizem outra coisa, como o dizia de resto a conversa e o comportamento quotidiano do amigo com quem muitos de nós privaram. Havia nele um óbvio rio subterrâneo de sombra e de funda angústia existencial que nenhuma solaridade demitia e muito menos apagava. Chego a pensar – e aqui coloco-me à beira do ultraje – que David foi, em muitos casos, bastante apreciado na proporção de não ter sido devidamente compreendido. Dizia Chamfort, um pensador aforista que David por certo admirou, que “muitos homens e mulheres gozam de estima popular, não porque são  conhecidos, mas sim porque são desconhecidos.”  A solaridade de David, o contentismo erótico de David têm sido pano para muita manga que lhe não assenta tão bem como se tem querido supor. Há no discurso criador do autor de In Memoriam Memoriae um indiscutível débito solar, mas trata-se de um sol, por isso mesmo que é sol, que exibe um perturbante teor de manchas ...solares. Toda a luz pressupõe treva e , como diz Eliot, na sua tragédia, Murder in the Cathedral, “a treva declara a glória da luz”. Muita da luz que o texto davidiano exibe é uma luz que a treva pressupõe e ostensivamente declara, quando é preciso. Assim como muita da treva que o seu texto faz explodir no nosso rosto é uma treva que a luz pressupõe e inequivocamente declara.
Neste mundo em que nada se perde ou ganha e tudo se transforma, até o inverno do nosso descontentamento, como dizia sibilinamente o Ricardo III de Shakespeare, se transforma em verão glorioso pela acção do sol de Iorque. Do mesmo modo que toda esta luz se despenhará no turvo e negro massacre que leva, primeiro, ao triunfo e ao poder, e depois, à derrota e à morte. Julieta, na peça do mesmo Shakespeare, é, como se sabe, o sol. E contudo...
Quando, no poema “Do tempo ao Coração”, nos diz:
 
“De milhões e milhões que rebentam com fome
Ao dom do caviar para abrir o apetite
Do canto gregoriano à música electrónica
Dos berros da oração ao silêncio de um grito
 
“De tanto a muito mais. De tudo a quase nada
Só não sei que tecido oscila entre os extremos
Se apenas o amor Se o vulto da amada
Se trevas Se uma luz Se o tempo em que vivemos,
 
David está a insinuar um desassossego entre luz e treva que, por muito outro lado, a sua obra revisita: “A lira é com certeza a mão esquerda de Orfeu / Mas é a mão direita que revolve o lodo”, diz um outro poema, intitulado, significativamente, “Ars Poetica”.  “Segredar num soneto a área do remorso” é o antepenúltimo verso do soneto “Interior” e peço licença para não ver aqui indícios ofuscantes da tal solaridade que tão frequentemente nos é sugerida. No centro do sol davidiano, explodem, de quando em quando, trevas como esta:
 
As noivas dos abetos vestiram-se de luto
As aias dos abutres caminhavam de rojo
Das trinta e nove amantes que me roubaram tudo
Trezentas e noventa desfizeram-se em lodo
 
Ou como esta:
 
Habita-me na sombra a luz de uma gaivota
Fulgura-te na luz a sombra de um espadarte
 
Textos que pedem a consagração de uma medalha, que podemos ir buscar ao melhor dos patronos, o Milton de Samson Agonistes:
 
“O dark, dark, dark, amid the blaze of noon”
(“Ó treva, treva, treva, no meio do fulgor do meio-dia”
 
É para esta treva que habita com força no fulgor do meio-dia do discurso poético e ficcional de David Mourão-Ferreira que eu hoje gostaria de chamar aqui – e de novo – a vossa atenção e a vossa devoção. “O próprio sol não passa de um simulacro e a luz é apenas a sombra de Deus”, dizia Sir Thomas Brown, oferecendo-nos esta óbvia epígrafe para a riqueza perturbada e perturbante que vivifica – com tónicos e venenos – o tecido sedutor, mas também intrigante, de todo o opus davidiano.”
Eugénio Lisboa

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