Pôr a questão
por George Steiner
" As virtudes da democracia são teoricamente irrefutáveis. O próprio despotismo presta a sua homenagem hipócrita à palavra. Os seus méritos são os da existência de liberdades assentes na constituição , nas leis e no sufrágio. O exercício do poder é partilhado e limitado pela necessidade de uma aprovação baseada na participação. Os ideais democráticos tornam possível não só o desenvolvimento das potencialidades individuais de cada um, mas ainda, nas sociedades materialmente bem equipadas , um progresso sem precedentes nos níveis de vida e na criatividade científica e tecnológica. A dinâmica da mobilidade social, do investimento na educação e dos avanços da medicina constituem o " drama silencioso" - para evocar uma passagem das Leis de Platão - da democracia. Independentemente dos recuos parcelares, o elevador das oportunidades aumenta o nível de vida de geração para geração. Amanhã, por comparação com hoje, a condição do homem comum será mais próspera , mais segura, mais contemplada por oportunidades de escolha. «A felicidade é vivermos esta aurora», declarava Wordsworth quando a Revolução Francesa eclodiu. Quem negaria que persistem problemas graves? Que as realidades sociais ficam muitas vezes imensamente aquém da promessa democrática? Na própria América, há milhões de pobres e são muitos os excluídos dos mecanismos de protecção elementar na doença. As eleições são com demasiada frequência sombras espectrais. Um terço do eleitorado disponível bastou para escolher um presidente norte-americano. A candidatura a cargos políticos requer um grau de riqueza escandaloso. A actividade política não se abre senão a muitos poucos e, com demasiada frequência, aos que de entre eles são mais susceptíveis de corrupção. As anomalias sádicas multiplicam-se no interior do sistema legal: depois de passar mais de vinte anos no corredor da morte , um acusado cego e mutilado é vítima de uma execução solene. O igualitarismo pode, como já sustentei, reduzir a educação de massa a uma impostura. No interior das democracias parlamentares, tanto na Europa como nos Estados Unidos , as tensões e discriminações raciais revelam-se quase intratáveis. Todavia , no quadro do funcionamento democrático, estes males podem ser enfrentados, livremente criticados, potencialmente corrigidos. Nenhuma outra teoria ou prática política comporta intrinsecamente meios constitucionais que promovam assim a transformação positiva. A escravatura foi abolida e, do mesmo modo, em muitas das nações democráticas, também o foi a pena capital. A democracia honra em termos incomparáveis as esperanças do homem. Só um imbecil o ignora ou não lhe atribui um valor fundamental.
E no entanto. Talvez certas contradições entre a democracia e a excelência na vida do espírito sejam de ordem intrínseca. A democracia, que se compromete com uma exigência maioritária, aclama o homem comum. Cujo Deus é, em boa parte do planeta, o futebol. O credo das Luzes, o « melhorismo» do século XIX, que via no ensino de massa a via segura do progresso cultural, revelaram-se em boa parte ilusórios. A promoção da justiça social recuou. Até mesmo sob o feroz regime estalinista , persistiram o prestígio do saber e de uma cultura quase talmúdica , a par da afirmação, por vezes brutal e traumática, da supremacia das ideias nos assuntos humanos. Hoje, nas democracias de consumo e de comunicação de massa do Ocidente e do mundo em vias de desenvolvimento , deixou de ser possível separar o liberalismo político e o governo representativo do capitalismo. Houve esforços ardentes na busca de uma «terceira via». Um capitalismo humanizado e socializado obteve triunfos esporádicos em certas regiões bucólicas como a Escandinávia e a Suíça. Mas nas democracias pluralistas maduras é o dinheiro que impera. No sentido neutro e próprio do termo, as relações de poder são as de uma plutocracia mais ou menos dissimulada. O dinheiro exulta na sua omnipotência grosseira. Introduz-se em todas as frestas da existência pública e privada. O culto do futebolista , a idolatria da vedeta pop e a ostentação do magnate ecoam bem a sua riqueza desvairada. Ao mesmo tempo, o desprezo e a indiferença perante as paixões e a criação intelectuais quando estas não são rentáveis condizem na perfeição com a hierarquia financeira. O pintor é lavado a sério quando o clamor mediático atrinui à sua obra um valor monetário.
(.. ) A coerção que o Estado policial exerce sobre o pensamento e sobre as artes é efectivamente aterradora. (...) A democracia , sob a sua versão populista e tecnocrática , transformou-se no direito de fazer dinheiro e sempre mais dinheiro para além de toda a necessidade racional e de toda a dignidade humana. Daí o desencanto muitas vezes violento dos jovens e a atitude de abstenção crescente que adoptam em relação ao exercício da cidadania. Lenine pelo menos sabia que o melhor uso que se podia dar ao ouro era fazer com ele assentos de sentina.
As minhas posições políticas são a defesa da intimidade e da obsessão intelectual. Atendem à imemorial injunção que Dante pronuncia por meio da voz de Ulisses:« Não fomos feitos para viver como brutos , come bruti, mas para seguir a virtude e o conhecimento, onde quer que nos levem , e seja qual for o seu custo pessoal e social.». É possível que semelhante convicção seja, sob certos aspectos , patológica e autocomplacente. O pensamento sem concessões , a absorção na ciência e na arte são, talvez cancros do espírito. Fazem da justiça social «uma justiça pequena. » Muitas vezes sentem-se como em sua casa nas trevas da nossa condição. Ao mesmo tempo, parecem-me justificar o homem, engendrar o que por vezes o arranca ao inumano. Tudo o que espero de qualquer regime político é que ele conceda um espaço respirável para o que possa não ser utilitário ou colectivamente benéfico. E que respeite a dissidência, ainda que em relação ao dinheiro. Espero que possa ser algum modo salvaguarda do tumulto a intimidade do «partido de um só». Que todas as portas possíveis se abram ao talento. No melhor dos casos, concebo-me como um anarquista platónico.
Não é uma aposta rentável."
George Steiner, in Os livros que não escrevi, Gradiva Publicações, pp.280-285
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