Ilustração: Susa Monteiro |
É
preciso agarrar a oportunidade pelos cabelos mas não esquecer que ela é careca
por António Lobo Antunes
"Não
somos um país, somos um enorme convento de carmelitas autistas em silenciosa
comunicação com o seu écranzinho que os põe em contacto com um estranho
universo inexistente, cheio de palavras e imagens irreais. Os humanos já não
falam: dialogam em silêncio com o nada, isto é com o que pensam ser os outros e
o mundoAndei
agora uma série de dias no estrangeiro e o que mais me surpreendeu foi não ter
visto uma única pessoa de iphone na mão, a carregar nas teclas, alheada do
mundo. Eu como todos os dias fora, num restaurante aqui perto, vou e venho a
pé, cruzo-me com gente na rua, passo por uma paragem de autocarro e é
extraordinário o que Portugal mudou. Por exemplo o que mais me aborrecia, nos
sítios onde almoçava e jantava, eram os guinchos de meninas e meninos a
correrem entre as mesas, enlouquecendo todo o mundo sob o olhar desvelado ou
ausente dos pais. Não é que as crianças se tenham tornado bem educadas, isso
seria pedir demais aos lusitanos, é que em lugar de gritarem, incomodarem e
empurrarem os vizinhos estão caladinhas ao lado dos adultos, cada uma com o seu
iphone, a carregarem nas teclas num autismo absoluto, concentradas num jogo
qualquer. Como os pais não conversam com elas ou entre si, ocupados a comerem,
de olhos no prato(se
calhar existem iphones escondidos no puré)completamente
sozinhos, tenho
a sensação de estar, com o bacalhau à Brás em frente, num silêncio de capela. A
mesma coisa nos transportes, a mesma coisa nas esplanadas, a mesma coisa nas
paragens de autocarro(há
semanas, ao passar por uma delas, vi sete pessoas sete à espera, todas de olhos
baixos, a picarem o seu quadradinho de plástico com o indicador, alheadas do
universo. Não somos um país, somos um enorme convento de carmelitas autistas em
silenciosa comunicação com o seu écranzinho que os põe em contacto com um
estranho universo inexistente, cheio de palavras e imagens irreais. Os humanos
já não falam: dialogam em silêncio com o nada, isto é com o que pensam ser os
outros e o mundo, trocando banalidades arrasadoras com criaturas e
acontecimentos tão fantasmáticos quanto elas. Não se relacionam entre si:
relacionam-se com silhuetas vazias, interessam-se por acontecimentos ocos, os
afectos transformam-se em siglas, a ternura em bjs sem carne, meia dúzia de
consoantes e de k estratégicos substituem os sentimentos e as emoções. Os
corpos transformam-se em silhuetas, a partilha em frases feitas, o amor no
supermercado do face book onde as pessoas se apaixonam por criaturas irreais,
ou seja fotografias minúsculas e ideias sem carne, encharcando os iphones de
lugares comuns patetas nos quais se sente o enorme peso de uma solidão
irremediável. Tenho muito dó desses infelizes fantasmas procurando
desesperadamente outros infelizes fantasmas na esperança de uma relação
fantasmática que, ao fim e ao cabo, não é possível porque não se pode amar uma
ausência sem espessura de gente. O poeta Fernando Pessoa, por exemplo,
parece-me não uma criatura mas um nada falante. Não é ao artista que me refiro
agora, é ao homem que tentava existir através da bebida na esperança de obter,
por intermédio de um substituto do leite materno, a densidade carnal que não
tinha e, portanto, os seus escritos não respiram. Fingem que respiram, num
sofrimento imenso. As criaturas dos iphones não pensam, não lhes interessa
pensar, interessa-lhes existir no vazio, relacionando-se com vazios tão brancos
quanto os deles, procurando desesperadamente bjs sem substância. Conversam com
ninguéns em diálogos de uma pobreza afectiva absoluta que é o único anteparo de
que são capazes para tentarem lutar contra a depressão, porque ao princípio não
era o Verbo, era a Depressão, e as nossas almas tão sozinhas, tão pobres. O que
queremos de facto, o que esperamos ainda é encontrar um modo de nos acharmos
menos desamparados, menos indefesos, menos perdidos, e esperamos, como crianças
que esqueceram o caminho para casa, que um bj nos aponte o caminho. E não
aponta porque nenhum bj se transforma em beijo, é uma metamorfose impossível.
Toma o meu bj, dá-me o teu bj em troca. E ficamos cada um com o bj do outro na
palma a pensar– O
que faço eu com isto? enquanto
as duas letras se dissolvem ou se evaporam num écranzinho que não responde.Na
fila dos automóveis de regresso a casa ao fim do dia vemos as pessoas sentadas
no carro, olhando fixamente em frente, imóveis e sérias. Se repararmos nos olhos
delas estão todas mortas atrás dos olhos. Não faz mal: o iphone está aqui no
bolso; em chegando a casa ligo-o e encontro outros desgraçados, tão defuntos
quanto eu, à espera de um colo que não existe. Há uma ausência apenas e lá ao
fundo, na cozinha, uma torneira que não veda bem a pingar no lava-loiças o
ritmo angustiado do nosso desespero. Talvez um bj ajude um bocadinho a torná-lo
suportável: é que somos tão pobres que nos contentamos com uma côdeazita de
nada. E amanhã encontraremos na fronha algumas migalhas que sobraram. Se as
metermos na boca têm um gosto a lágrimas.”António Lobo Antunes, em
Crónica publicada na VISÃO 1319 de 14 de Junho 2018
– O
que faço eu com isto?
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