quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Ano Novo


ANO NOVO
por Eugénio Lisboa


            O futuro já não é o que era.

           Bernard Levin

Nas vésperas de um novo ano, é costume dizermos coisas pias, palavras cheias de esperança, optimismos vazios de conteúdo, coisas, enfim, que as pessoas gostam de ouvir. Mas parece-me que se impõem, desta vez, palavras menos complacentes.

Temos andado a abusar do planeta, como quem se suicida sem dar por isso. O capitalismo selvagem, boçal e criminoso tem-se posto a depredar o planeta, destruindo tudo o que é vital e poluindo tudo o que é essencial à vida.

Acredita-se hoje muito na inteligência infalível de quem sabe enriquecer, mas a verdade é que não há ninguém tão pouco inteligente e tão pouco sábio como, em geral, o milionário. Não é preciso grande inteligência, para se enriquecer – basta ter uma boa dose de falta de escrúpulos – mas é preciso uma enorme sabedoria para que a vida prevaleça na Terra.

A ideia de que um milionário é o ideal condutor de nações ou o ideal conselheiro a ter em conta é um dos preconceitos mais perigosos para a continuação da vida no nosso planeta. Enriquecer a todo o custo, não olhando às consequências, pode levar-nos direitinhos ao apocalipse. O homem que insensatamente acumula biliões, sem olhar ao que isso custa à saúde do planeta, é, frequentemente o maior inimigo da vida, no futuro. O milionário tem pressa, atropela etapas, porque lhe interessa o seu paraíso, no curto período da sua vida, não pensando nas gerações futuras. É um genocida-a-haver. O milionário é, quase sempre, um idiota perigoso e sem visão: só sabe fazer aquela coisa pequenina que é ganhar muito dinheiro.

Precisamos, todos, de encontrar uma visão nova e lúcida e não egoísta, com vista a um futuro diferente, em que vivamos com mais sabedoria e menos pompa (para alguns). O grande escritor inglês, G. K. Chesterton, criador desse personagem inesquecível de candura e perspicácia, que foi o Padre Brown, deixou-nos esta pérola de sabedoria, que vale bem mais do que um milhão de milionários boçais: “O objectivo de um ano novo não é termos um ano novo. É termos uma alma nova.”

Se quisermos que o futuro volte a ter futuro, tenhamos a coragem de mudar radicalmente de vida e de aprender a andar mais devagar e com mais ponderação. O sábio Buda deixou-nos uma pequena folha do seu livro de sabedoria, quando disse: “Não importa o quanto tu vás devagar, desde que não pares.” Não estar parado é uma virtude. Desatar a correr, atropelando tudo no caminho, é um crime."

                                                                                Dezembro de 2020

Eugénio Lisboa, em  Crónica inédita que nos apraz  muito publicar e de quem ficamos felizes  devedores .

terça-feira, 29 de dezembro de 2020

O Fazedor

O Fazedor 
por Jorge Luis Borges 
"Nunca se tinha demorado nos prazeres da memória. As impressões resvalavam sobre ele, momentâneas e vívidas; o vermelhão de um oleiro, a abóbada carregada de estrelas que também eram deuses, a lua, de onde tinha caído um leão, a lisura do mármore sob as lentas gemas sensíveis, o sabor da carne de javali, que gostava de rasgar com dentadas brancas e bruscas, uma palavra fenícia, a sombra negra que uma lança projecta na areia amarela, a proximidade do mar ou das mulheres, o pesado vinho cuja aspereza o mel mitigava podiam abarcar por inteiro o âmbito da sua alma. Conhecia o terror, mas também a cólera e a coragem, tendo sido uma vez o primeiro a escalar um muro inimigo. Ávido, curioso, casual, sem outra lei que a do gozo e da indiferença imediata, andou pela terra vária e olhou, numa e noutra margem do mar, as cidades dos homens e os seus palácios. Nos mercados populosos ou no sopé de uma montanha de cume incerto, onde bem podia haver sátiros, tinha escutado complica­das histórias que recebeu como recebia a realidade, sem indagar se eram verdadeiras ou falsas. 
Gradualmente, o formoso universo foi-o abandonando; uma teimosa neblina confundiu-lhe as linhas da mão, a noite despovoou-se de estre­las, a terra era insegura sob os seus pés. Tudo se afastava e confundia. Quando soube que estava a ficar cego, gritou; o pudor estóico ainda não fora inventado e Heitor podia fugir sem deslustre. «Já não verei — percebeu — nem o céu cheio de pavor mitológico, nem esta cara que os anos transformarão.» Dias e noites passaram sobre esse desespero na sua carne, mas uma manhã acordou, olhou (já sem espanto) as indistintas coisas que o rodeavam e inexplicavelmente sentiu, como quem reconhece uma música ou uma voz, que tudo isso já lhe tinha acontecido e que o encarara com temor, mas também com júbilo, esperança e curiosidade. Então desceu à sua memória, que lhe pareceu interminável, e conseguiu tirar daquela vertigem a recordação perdida que reluziu como uma moe­da sob a chuva, talvez porque nunca a tivesse olhado, salvo, quem sabe, num sonho. 
A recordação era assim. Outra criança havia-o insultado e ele fora ter com o seu pai e tinha-lhe contado a história. Este deixou-o falar como se o não ouvisse ou compreendesse e despendurou da parede um punhal de bronze, belo e carregado de poder, que a criança tinha furtivamente cobiçado. Agora segurava-o nas mãos e a surpresa da posse anulou a injúria sofrida, mas a voz do pai dizia: «Que alguém saiba que és um homem», e havia uma ordem na voz. A noite cegava os caminhos; abraçado ao punhal, em que pressentia uma força mágica, desceu a brusca ladeira que rodeava a casa e correu até à beira-mar, julgando-se Ájax ou Perseu e povoando de feridas e batalhas a obscuridade salobra. O que procurava era o preciso sabor daquele momento; não lhe importava o resto: as afrontas do desafio, o torpe combate, o regresso com a lâmina ensanguentada. 
Outra recordação, em que também havia uma noite e uma iminência de aventura, brotou daquela. Uma mulher, a primeira que lhe enviaram os deuses, tinha-o esperado na sombra de um hipogeu, e ele procurou-a por galerias que eram como redes de pedra e por declives que se afundavam na sombra. Porque lhe chegavam essas memórias e porque lhe chegariam elas sem amargura, como uma mera prefiguração do presente? 
Com grave assombro compreendeu. Nessa noite dos seus olhos mortais, onde agora descia, aguardavam-no também o amor e o risco. Ares e Afrodite, porque já adivinhava (já o cercava) um rumor de glória e de hexâmetros, um rumor de homens que defendem um templo que os deu­ses não salvarão e de baixéis negros que procuram no mar uma ilha querida, o rumor das Odisseias e Ilíadas que era seu destino cantar e deixar ressoando concavamente na memória humana. Sabemos estas coisas, mas não as que sentiu ao descer à última sombra.”
Jorge Luis Borges, O Fazedor, Difel, Abril de 2002

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

Um ponto azul

"Observe o ponto uma vez mais. É aqui. É a nossa casa. Somos nós. Nele vivem ou viveram todas as pessoas que ama, todas as pessoas que conhece, todas as pessoas de que ouviu falar, todos os seres humanos que alguma vez existiram. A conjunção da nossa alegria e do nosso sofrimento, milhares de religiões confiantes, ideologias e doutrinas económicas, todos os caçadores e recolectores, todos os heróis e cobardes, todos os criadores e destruidores da civilização, todos os reis e camponeses, todos os jovens casais apaixonados, todas as mães e pais, crianças esperançadas, inventores e exploradores, todos os professores de moral, todos os políticos corruptos, todas as «superestrelas», todos os «líderes supremos», todos os santos e pecadores da história da nossa espécie viveram lá – numa partícula de poeira suspensa num raio solar. A Terra é um palco muito diminuto na vasta arena cósmica. Pensemos nos rios de sangue vertidos por todos aqueles generais e imperadores para que, em glória e triunfo, pudessem ser momentaneamente os senhores de uma fracção de um ponto. Pensemos nas crueldades intermináveis infligidas aos habitantes de um dos cantos do pixel pelos dificilmente discerníveis habitantes de outro canto, na frequência dos seus desentendimentos, na ânsia de se matarem uns aos outros, no fervor dos seus ódios. A nossa posição, a nossa auto-importância imaginada, a ilusão de que ocupamos um lugar privilegiado no universo são desafiadas por este pequeno ponto de luz clara. O nosso planeta é uma partícula solitária numa imensa escuridão cósmica envolvente. Na nossa obscuridade, em toda esta vastidão, não há nenhum indício que venha a surgir alguma ajuda do exterior para nos salvar de nós próprios."
Carl Sagan, in O Ponto Azul-Claro ,Editora Gradiva, Julho de 2011

domingo, 27 de dezembro de 2020

Ao Domingo Há Música

O Sol já se escondeu...
Precisamente quando, 
feliz,
eu desatei a cantar.
(Só por feliz eu cantei.)

Agora quero acabar,
que já me dói a garganta,
mas vou ainda cantando,
temendo
dar por mim de novo triste
assim que esteja calado.
(...Como se a minha Alegria
nascesse de eu ter cantado.)
Sebastião da Gama, in "Serra-Mãe", Edições Ática, Abril de 1968, p.61

Há um provérbio popular que diz que Quem canta seu mal espanta. Nem sempre se espanta qualquer mal, mas cantar faz bem à alma. E, quando a voz e a melodia são de encantar, não há quem lhes fique indiferente. A Música desata nós , abre corações e sugere o caminho para a redenção .
Havasi , o pianista-compositor , no texto introdutório ao seu projecto "Voices of Change",  afirma : "Durante as nossas vidas, continuamos sempre a crescer e aprender com aquilo por que passamos. Aprendemos continuamente uns com os outros através das influências que nos afectam e, claro, com nossas próprias acções.
Alguns mudam por meio da religião, outros ajudando as pessoas e outros ainda pela força positiva da música. O que importa é a mudança positiva em si, não a maneira como cada um a consegue.
Voices Of Change diz que, embora nasçamos em continentes diferentes, falamos a mesma língua no fundo de nossos corações. E essa linguagem comum é a linguagem da Música. " 
Voices Of Change é um dos maiores empreendimentos artísticos do HAVASI:   o mundo musical especial do pianista-compositor está envolvido em mais uma fusão, desta vez com a melodia de Amazing Grace e a cultura gospel americana.  Ao tentar fundir o tom do Amazing Grace e a cultura do Gospel Americano, Havasi coloca o grandioso movimento de uma das canções sagradas cristãs mais famosas de todos os tempos ,no contexto sinfónico e mundial da sua  música.
HAVASI , em Voices of Change , com o Harlem Gospel Choir e Gigi Radics.
 

sábado, 26 de dezembro de 2020

Nós somos


Nós somos

Como uma pequena lâmpada subsiste
e marcha no vento, nestes dias,
na vereda das noites, sob as pálpebras do tempo.

Caminhamos, um país sussurra,
dificilmente nas calçadas, nos quartos,
um país puro existe, homens escuros,
uma sede que arfa, uma cor que desponta no muro,
uma terra existe nesta terra,
nós somos, existimos

Como uma pequena gota às vezes no vazio,
como alguém só no mar, caminhando esquecidos,
na miséria dos dias, nos degraus desconjuntados,
subsiste uma palavra, uma sílaba de vento,
uma pálida lâmpada ao fundo do corredor,
uma frescura de nada, nos cabelos nos olhos,
uma voz num portal e a manhã é de sol,
nós somos, existimos.

Uma pequena ponte, uma lâmpada, um punho,
uma carta que segue, um bom dia que chega,
hoje, amanhã, ainda, a vida continua,
no silêncio, nas ruas, nos quartos, dia a dia,
nas mãos que se dão, nos punhos torturados,
nas frontes que persistem,
nós somos,
existimos.
António Ramos Rosa ,in "Sobre o Rosto da Terra", Covilhã: Livraria Nacional, col. Pedras Brancas, 1961; "Antologia Poética", prefácio, bibliografia e selecção de Ana Paula Coutinho Mendes, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001, p. 72

sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

Ave Maria


Ave Maria 
Piena di grazia
Il Signore è con te Tu sei benedetta fra le donne E benedetto è il frutto del ventre tuo, Gesù 
Santa Maria, Madre di Dio,
Prega per noi peccatori, 
Ora e nell’ora della nostra morte
 Amen
Santa Maria Madre di Dio 
Prega per noi peccatori
Ora e nell’ora della nostra morte
 Amen

 Andrea Bocelli , em Ave Maria do novo álbum "Believe".
Sobre esta canção,  Bocelli   confessa: “Não me considero um compositor , contudo sou um músico e, por vezes, algumas melodias chegam ao meu espírito com a harmonia essencial. A Música bate à porta da minha alma e eu recebo-a com alegria e começo a escrevê-la."
Foi assim que Andrea Bocelli criou este inspirador arranjo  para a "Ave Maria", que tinha composto em Março de 2020.
AVE MARIA , com letra da Liturgia e  Música de  Andrea Bocelli. A orquestração é de  Steven Mercurio e no   Violino  Anastasia Petrysha.  
Publiicada por Sugarmusic S.p.a. / Almud Edizioni Musicali S.r.l
Andrea Bocelli & Aida Garifullina, em  "Ave Maria Pietas", num espectáculo ao vivo.  A música  é de  Danijel Vuletic e Mauro Malavasi e a letra da Liturgia . O registo faz parte do Álbum Sí, de Andrea Bocelli , de 2018.
.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

Todos os anos Jesus nasce


"Na imaginação das crianças , todos os anos Jesus nasce: todos os anos têm o seu Jesus pequenino.
Não se dará o mesmo na imaginação das pessoas que são como crianças?
Por isso não só todos os anos nasce Jesus no seu coração: mas todos os anos e todos os dias; e todas as horas e todos os momentos.
Bem-aventurados estes, - para quem é sempre Natal!"
José Régio, in " Colheita da tarde ", volume póstumo das Obras completas,  1ª edição- 1971, Brasília Editora, p.59

Carol of the Bells , por Jennifer Thomas do álbum Winter Symphony, num espectáculo em Dezembro 2015 , no Benaroya Hall, em Seattle, com a Ensign Symphony & Chorus.

 
Aleluia, aleluia, aleluia. 
" Eu vos trago a boa-nova de uma grande alegria: é que hoje vos nasceu o Salvador, Cristo, o Senhor (Lc 2,10s). 
Proclamação do Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas
Aconteceu que, naqueles dias, César Augusto publicou um decreto, ordenando o recenseamento de toda a terra. Esse primeiro recenseamento foi feito quando Quirino era governador da Síria. Todos iam registrar-se, cada um na sua cidade natal. Por ser da família e descendência de Davi, José subiu da cidade de Nazaré, na Galileia, até a cidade de David, chamada Belém, na Judeia, para registrar-se com Maria, sua esposa, que estava grávida. Enquanto estavam em Belém, completaram-se os dias para o parto, e Maria deu à luz o seu filho primogénito. Ela o enfaixou e o colocou na manjedoura, pois não havia lugar para eles na hospedaria. Naquela região havia pastores que passavam a noite nos campos, tomando conta do seu rebanho. Um anjo do Senhor apareceu aos pastores, a glória do Senhor os envolveu em luz, e eles ficaram com muito medo. O anjo, porém, disse aos pastores: “Não tenhais medo! Eu vos anuncio uma grande alegria, que o será para todo o povo: hoje, na cidade de David, nasceu para vós um salvador, que é o Cristo Senhor. Isto vos servirá de sinal: encontrareis um recém-nascido envolvido em faixas e deitado numa manjedoura”. E, de repente, juntou-se ao anjo uma multidão da corte celeste. Cantavam louvores a Deus, dizendo: ″Glória a Deus no mais alto dos céus, e paz na terra aos homens por ele amados”. Palavra da salvação. Evangelho: Lucas 2,1-14

terça-feira, 22 de dezembro de 2020

A propósito do último Jornal de Letras

PRO MEMORIA
SOMOS O PASSADO DE AMANHÃ
(Algumas observações cândidas sobre Eduardo Lourenço)
por Eugénio Lisboa
We are tomorrow’s past 
Mary Webb

“O texto que vem a seguir não visa de modo nenhum ser antipático com a figura do autor de Pessoa Revisitado. Que fique desde já claro: seria estulto e ingrato não reconhecer a forte marca que a sua intervenção cultural teve no nosso meio intelectual. Mas vou falar sobretudo – e parece-me fundamental fazê-lo – no modo um pouco inquietante, unanimista e incontinente da homenagem que se tem andado a fazer e que deixa muito a desejar, quando se vise um escrutínio sereno, objectivo e inteligente, que a obra de Lourenço requer e merece. Isto, de resto, não se tem passado só com Eduardo Lourenço: algumas figuras de algum porte, recentemente desaparecidas, foram também alvo de intemperadas ejaculatórias fora de qualquer equilibrado senso crítico. Não é, a meu ver, a melhor maneira de se homenagear um morto que deixou marca entre os vivos. António Sérgio e José Régio passaram a vida a fazer a pedagogia de uma metodologia feita de cautela, de bom senso, de obstinação fecunda, de aprofundamento gradativo e sereno, evitando o excesso ditirâmbico e, afinal, pouco fundamentado e pouco crítico. O grande físico, Albert Einstein, incomodado com o verdadeiro culto a que votaram a sua figura de grande intérprete do universo, declarou que “o culto da pessoa humana [lhe pareceu] sempre injustificado”. Eu diria mais: perigoso e pouco fecundo. Andar a descobrir, dia sim, dia não, um novo génio de serviço que vem e arrasa tudo quanto antes se fez é puro provincianismo, o qual, ao contrário do pensamento vigente, não habita preferencialmente na província. Lourenço foi um homem muito inteligente, mas com óbvios limites, como toda a gente. Para começar, como já algures observei, o seu estilo de escrita nem de longe era o mais adequado a um bom prosador de ideias. Os grandes modelos de veiculadores de ideias, de Antero a Orlando Ribeiro, passando por António Sérgio, José Régio ou Sílvio Lima, entre outros, ou por alguns dos maiores filósofos de qualquer nacionalidade, oferecem-nos uma prosa límpida, intrepidamente descascada, alheia a “fioretti” e a maneirismos gongorizantes, que só servem para atravancar o fluir asseado das ideias. São inúmeras as pessoas – sobretudo, mas não só, pessoas que vivem fora de Portugal e estão habituadas a outras leituras mais arejadas – a queixarem-se da obscuridade das prestações ensaísticas de Eduardo Lourenço. E têm alguma razão. As boas ideias não devem esconder-se por detrás de vestes complicadas e apinocadas, que as tornem de doloroso acesso. O filósofo Vauvenargues, que Voltaire tanto estimava, deixou-nos um aforismo célebre, que não me canso de recomendar a académicos fascinados pelo valor da opacidade: “A clareza é a boa fé dos filósofos.” E o filósofo Wittgenstein, mais citado do que realmente lido, ia mais longe, quando dizia que um pensamento que se não consegue exprimir com simplicidade e clareza é indício de que ainda não está maduro para ser expresso. Mas estar na posse de um pensamento amadurecido e torná-lo deliberadamente obscuro, pela vestimenta que se lhe acrescenta, é propriamente inaceitável. E impróprio de um filósofo. Lourenço gostava, obviamente, de aprimorar e apinocar o veículo das suas ideias (o estilo), o que talvez agradasse aos amantes de algum gongórico, mas servia mal os verdadeiros amantes de ideias. Esconder, com berloques, a nudez de uma ideia pode levantar a suspeita de que se quer ocultar a fragilidade dessa ideia. Eis por que me revejo mais, em termos de veículos de ideias e de sólidos argumentos de avaliação literária, nos textos de ensaístas como Sérgio, Régio, Sílvio Lima, David Mourão-Ferreira, Jacinto do Prado Coelho, Álvaro Lins, Alceu Amoroso Lima e, noutra área, na admirável e clarificante prosa de um Bertrand Russell ou de um Bergson.
Mas as reservas que aqui quero trazer são mais dirigidas aos admiradores e aduladores de Lourenço, aos emissores de epitáfios incontinentes, do que ao próprio ensaísta. Quando querem fazer dele o argonauta que “desvendou” Portugal e Pessoa aos portugueses, estão a assassinar os factos eruditos e a cometer uma clamorosa injustiça. Aqui, repito, o pecador não é o autor de O Labirinto da Saudade, mas sim os seus aduladores pouco informados ou muito esquecidos. Todo o excesso de admiração é sempre suspeito e revela, em geral, pouco senso crítico e péssimo conhecimento da obra idolatrada. André Gide, que era, além de notável ficcionista e diarista, um finíssimo crítico e ensaísta, raramente dado a desmedidos ditirambos, observava, judiciosamente, que, quando se tem pouca coisa a dizer de alguém ou de uma obra, até não calha mal berrar, e que o excesso é frequentemente uma marca de penúria, pois que a verdadeira abundância arrasta consigo uma espécie de ponderação. O excesso, além de normalmente implicar um défice de conhecimento, é, repito, perigoso. O poeta William Blake dizia que o caminho do excesso leva ao palácio da sabedoria. Pode ser que sim: depende de que excesso se trata, porque o excesso de admiração pode levar ao palácio do erro e da injustiça.
Pessoa não precisou de Lourenço para ser descoberto, lido, estudado, promovido e traduzido. Dizer que Lourenço, por mais admirável que seja a sua sondagem pessoana, “desvendou” Pessoa aos lusíadas, esquecendo o admirável trabalho de quem, de muito longe, o precedeu é cometer os pecados capitais de ou esquecimento, ou desatenção, ou ignorância ou leviandade. Já em 1925 – ainda Lourenço gatinhava – José Régio arriscava a sua licenciatura, apresentando à conservadora Universidade de Coimbra, uma dissertação sobre as modernas tendências da poesia portuguesa, na qual dava palco generoso aos três argonautas do Orpheu. E aí coroava Pessoa com o estatuto de Mestre. Esta dissertação seria depois publicada, com o título de Pequena História da Moderna Poesia Portuguesa, em 1941. Nesta altura, Lourenço já não andava de bibe, mas tinha apenas 18 anos e, entretanto vigorara a revista presença, de 1927 a 1940, a qual deu larguíssima atenção e palco a Pessoa e aos seus principais heterónimos. E ignorar Jacinto do Prado Coelho que, com a sua tese seminal – Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa – deve ter feito solevar mais do que uma perturbada sobrancelha na Universidade de Lisboa, é mais ou menos tão grave como ignorar personalidades como Jorge de Sena, João Gaspar Simões, Adolfo Casais Monteiro, Teresa Rita Lopes, David Mourão-Ferreira e tantos outros (perdoem-me se os não cito) a quem a aura pessoana tanto deve.
Do mesmo modo, dar ao autor de Labirinto da Saudade os créditos de pioneiro solitário no desvendar de Portugal aos portugueses é cometer outra injustiça de truz: então o Antero das Causas da Decadência dos Povos Peninsulares, o Eça, que tão bem sondou as misérias, os tics e as cómicas megalomanias da sociedade portuguesa, com uma arte inigualável, o Oliveira Martins do Portugal Contemporâneo, o Miguel Torga, do belíssimo livro Portugal, dos vibrantes e inesquecíveis dezasseis volumes do Diário  e dos contos admiráveis dos Novos Contos da Montanha ou o António Sérgio, dos oito límpidos e clarividentes Ensaios, além de muitas outras notáveis e corajosas intervenções, não colaboraram nada para desvendar Portugal aos portugueses? Nada disto conta? Lourenço veio pisar terra virgem? (Não foi ele quem o disse, foram os seus intemperados aduladores). Olhem que a injustiça é feio pecado e o autor do admirável Sentido e Forma da Poesia Neo-Realista não precisa de favores espúrios.
Outro aspecto que gostaria de aqui sublinhar é este: Eduardo Lourenço aceitou sempre muito mal e de muito mau humor os raríssimos reparos que, em vida, confrontou. Visou sempre, com prodigioso trabalho de formiga, uma saboreada unanimidade, sem vestígios de contraditório. E conseguiu-o, o que não fica bem a um meio cultural adulto. Nisto, não seguiu a fecunda pista de Karl Popper, que descreveu a lógica do progredir científico, por via da aceitação da “falsificação” (acto de mostrar que é falsa uma hipótese de trabalho), a qual permite passar o mais rapidamente possível, de uma hipótese revelada frágil, para outra mais competente. Entrincheirar-se o “clerc” na “sua” hipótese, como se fosse um ganho definitivo não é muito próprio de quem quer avançar no conhecimento. O sábio Samuel Johnson, biógrafo de poetas e o autor do primeiro verdadeiro dicionário da língua inglesa, além de ser o protagonista da mais elogiada biografia de sempre (Life of Johnson, de James Boswell) foi um dia abordado por uma senhora meticulosa, a qual encontrara no Dicionário de Johnson um erro: atribuição de um sentido errado a um certo vocábulo. Intrigada, perguntou-lhe por que tinha ele cometido tal erro. O sábio respondeu com suave candura: “Ignorância, minha Senhora. Pura ignorância!” Assim falam os sábios que se não importam de errar e gostam de progredir.
Para terminar, gostaria de voltar a sublinhar que esquecer a contribuição dos que nos antecederam e contribuíram para o nosso conhecimento é abrir um mau precedente. Como diz a epígrafe de Mary Webb, que antepus a este texto, “somos o passado de amanhã”. O que fizermos aos que nos antecederam será provavelmente o que nos farão os que nos sucederem.
Eugénio Lisboa,
em artigo publicado no JL, número 1310, de 16 a 29 de Dezembro de 2020, edição especial  dedicada a Eduardo Lourenço , com capa ou 1ª página preenchida com fotografia do homenageado,  sob o título “O universo de EDUARDO LOURENÇO, 1923-2020”.

No mesmo Jornal de Letras , em Editorial “ Eduardo Lourenço – Uma presença viva”, o seu director, José Carlos Vasconcelos,  explicita , entre várias considerações e evocações ao estatuto de grande amigo , muito chegado do autor de “  O Labirinto da saudade”, com quem  teve íntimo e profícuo convívio nos últimos 20 a 30 anos, quatro razões para lhe dedicar esta edição especial.  Dessas razões  , transcreve-se a última por se distanciar das anteriores , quer no tom quer na veemência com que ataca algum ousado rival, que apesar de  ter "imaginários" êxitos,  se despeita com "a glória" do seu amigo , homem de "singular personalidade" e de  "uma forma de ser e  estar raras" .

e) A  singular personalidade de EL, que se distinguiu pela simplicidade, a cordialidade, mesmo a humildade, sem qualquer estratégia de “ glória “ ou similar  - exatamente o avesso do intelectual  vaidoso, convencido, às vezes mesmo arrogante, de seus êxitos,  mesmo imaginários, sempre ufano , como sempre despeitado com os êxitos  alheios, tanto mais quanto maiores  eles forem.  Uma forma de ser e estar raras, a de Eduardo, sobre a qual  quereria  contar agora  algumas histórias, e dar testemunho, seu muito próximo amigo e que como poucos o acompanhou nestes últimos 20  a 30 anos – o que, porém, tem de ficar para   próxima oportunidade.

Eugénio Lisboa, tal como Eduardo Lourenço,  é colaborador do JL quase desde a sua fundação. Intelectual de  comprovada erudição, servida por um  espírito independente, tem exercido, ao longo de décadas,  um continuado magistério de crítica literária,   que nos tem enriquecido. É uma voz diferente  e é nessa diferença que se afirma e nos desbrava caminho. Num país de egrégios heróis, não é através de um inopinado unanimismo histriónico que se valoriza e conhece a dimensão da obra de quem acaba de desaparecer.  Eugénio Lisboa tem leitura própria  e  a serena e arguta   capacidade de denunciar quão prejudicial é para qualquer um   o louvor  a uma voz. A adulação tolda e não beneficia uma discernente homenagem.  
É contra isso que escreveu este último  PRO MEMORIA, coluna que lhe pertence e que nos tem feito  procurar este Jornal de Letras, de que somos leitores ancestrais.
Talvez para o director do JL, José Carlos Vasconcelos, a única homenagem possível ao seu grande amigo, falecido a 1 de Dezembro, deva ser feita a um só tom.
As palavras de Eugénio Lisboa romperam com a homogeneidade desejada e apurada. Assim, contrário ao espírito plural e aberto que qualquer Jornal deve ter, lançou, com desbocada pontaria , farpas a quem ousou um tom diferente e próprio. Eugénio Lisboa sentiu-as e e deu por finda a sua longa colaboração com o Jornal de Letras. 
Perdeu o Jornal e perdemos todos nós, mas o país da voz única, feito de vozes reprimidas, acabou há quarenta e seis anos. Todos nós o sabemos e saudamos. 

Eis a carta de Eugénio Lisboa ao director do JL:

José Carlos de Vasconcelos, quero comunicar-lhe que não volto a colaborar no JL. Enquanto o fiz, procurei sempre dizer, com “franc parler” que devo a bons e íntegros mestres, aquilo que penso: com admiração, quando ela é devida, mas sem idolatrias próprias de ditaduras de terceiro mundo.
Para este número, dedicado a Eduardo Lourenço, enviei-lhe um texto a seu pedido. Isso convocava, da sua parte, no mínimo, neutralidade e cortesia, não as farpas envenenadas da sua editorial.  A minha colaboração de tantos anos, que não é de qualidade “imaginária” – ou, se é, porque continuou a mantê-la? – não justifica um ataque tão enviesado. A minha visão do Eduardo Lourenço é a minha, a que sinceramente tenho e posso garantir-lhe que não estou só.
Seja como for, não voltarei a incomodá-lo com os meus textos e desejo bom futuro ao JL.
                                                   16.12. 2020

Eugénio Lisboa

segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

A origem do mundo

"Há poucos anos que terminara a  guerra de Espanha , e a cruz e a espada reinavam sobre as ruínas da República. Um dos vencidos, um operário anarquista, acabado de sair  da cadeia, procurava trabalho. Em vão, revirava céu e terra. Não havia trabalho para um comuna. Todos lhe mostravam má cara, encolhiam os  ombros ou lhe viravam as costas. Com ninguém se dava , ninguém o ouvia. O vinho era o único amigo que lhe restava. À noite, diante  dos pratos vazios, suportava calado  as censuras  da sua beata mulher, mulher de missa diária, enquanto o filho, um menino ,  lhe recitava o catecismo. Muito tempo depois, Josep Verdura, o filho deste  operário maldito, contou - me esta história. Contou-me  em Barcelona, quando cheguei ao exílio. Contou-me que  ele era um menino desesperado que queria salvar o pai da condenação eterna  , mas o diacho do ateu , do  teimoso, não queria saber.
 — Mas papá— disse-lhe   Josep,  a chorar. — Se Deus não existe, quem fez o mundo? 
— Tonto— disse o operário, cabisbaixo, quase em  segredo. — Tonto.  O  mundo fizemo-lo  nós, os pedreiros."
Eduardo Galeano, in "O Livro dos Abraços",  Antígona Editores, 1ª edição, Março de 2018, p 8

domingo, 20 de dezembro de 2020

Ao Domingo Há Música

Io ti penso amore
Quando il bagliore del sole risplende sul mare
Io ti penso amore
Quando ogni raggio della luna si dipinge sulle fonti 

Io ti vedo
Quando sulle vie lontane
Si solleva la polvere 
Quando per lo stretto sentiero trema il viandante
Nella notte profonda 
Nella notte profonda

Io ti sento amore 
Quando col cupo suono si muovono le onde 
Nel placido boschetto caro
Spesso ad ascoltare seduto alla luce

Io sono con te 
Anche se tu sei lontano
Sei vicino a me
Anche se tu sei lontano 
O fossi qui 
O fossi qui 

"Ser sábio e amar / excede o poder dos homens " , escreveu Shakespeare, em Troilus and Cressida. Todos os grandes bardos se socorreram do amor. A Literatura é atravessada por múltiplos filamentos de grandes amores. Muitos apenas platónicos ou cerebrais. Outros vernaculamente carnais , passionais. E alguns que passam para lá do possível : o sublime. Feito de assombro, de sedução, de paixão , de carinho, amor  é  uma dor que desatina sem doer, um querer a sangue e fogo,   um fogo que arde sem se ver , dado de graça,  semeado no vento. Essa teia de seda que a garganta tece. 
Amor é primo da morte, e da morte vencedor, por mais que o matem (e matam) a cada instante de amor.!…
Tal como a música,  o amor não tem fronteiras. Em todas as ruas encontro, em todas as ruas o perco. E Ah! podem voar mundos, morrer astros, Que Amor  é como Deus: princípio e fim!

Io Ti Penso Amore, interpretada pelo violinista David Garrett  e pela magnífica voz da cantora Nicole Scherzinger, é uma bela canção, um grito de  amor .
Com a melodia do  segundo movimento do Concerto para violino  N° 4, de Niccolò Paganini e  a letra do poema de Johann Wolfgang von Goethe "Ich denke dein", traduzida para  italiano, David Garret montou  esta belíssima ária para o filme The Devil’s Violinist .
Niccolò Paganini (Génova, 27 de Outubro de 1782 — Nice, 27 de Maio de 1840)  foi um compositor e um virtuoso violinista italiano de tão grande talento que era conhecido como “The Devil’s Violinist". 
Esta canção integra o  Álbum Caprice (2014), de David Garret.
   

quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

Celebrar 250 anos de Beethoven

A Nona Sinfonia Choral-Mvt. 4., de Ludwig van Beethoven, por  Anna Samuil (soprano), Waltraud Meier (mezzo-soprano), René Pape (bass),o National Youth Choir of Great Britain e a West-Eastern Divan Orchestra, sob a direcção do Maestro Daniel Barenboim, no Royal Albert Hall, em Julho de 2018, em Londres (Proms 2018).
A Nona Sinfonia, a primeira da história a utilizar coro, foi concluída em 1824, quando Beethoven já não ouvia nada, a não ser as reverberações do piano. A surdez começou a dar sinais quando ele tinha menos de 30 anos. Devido à importância universal do Hino à Alegria da 9.ª Sinfonia de Beethoven, a UE escolheu este tema como seu hino.
Nasceu há 250 anos um dos maiores génios da música clássica Ludwig van Beethoven (Bonn,17 de Dezembro de 1770 — Viena, 26 de Março de 1827). "Alguns musicólogos dizem que, se existisse um trono para a música, ele deveria ser repartido entre Bach, Mozart e Beethoven. Outros só concordam com essa repartição se a coroa for apenas para Beethoven. Bach já havia morrido quando ele nasceu na cidade de Bonn em 17 de Dezembro de 1770. 
Beethoven teve aulas com professores de renome, incluindo Joseph Haydn, figura importante também na vida de Mozart. Mas, quando se estabeleceu em Viena, já com a Revolução Francesa em andamento, o génio rompeu com a estética de todos para trilhar o próprio caminho.
Quase um  visionário , um revolucionário, Beethoven não se conformou com o que estava feito. Foi para além do cânone. Com a sua  imaginação,  talento e criatividade  introduziu novos padrões que marcaram para sempre a História da Música. Morreu surdo  aos 56 anos de idade . É actualmente um dos compositores clássicos mais procurados no mundo.

Ludwig Van Beethoven por Joseph Karl Stieler ,
 em 1820, segurando a partitura de“Missa Solemnis in D#” 

                                                                          A vibração no ar da respiração de Deus fala à alma dos homens. 
Música é a linguagem de Deus. Nós, músicos , estamos o mais 
perto que os homens podem estar de Deus. Escutamos a sua voz. 
Lemos os seus lábios . Damos a luz aos filhos de Deus. Contamos 
as suas preces. Isso é o que os músicos são. 
                                                                Beethoven
Missa Solene, Op.  123, de Beethoven

Não é solene esta música, 
ao contrário do nome e da intenção.
Clamores portentosos, violência obsessiva
( por sob apelos doces, lacrimosos)
de um ritmo orquestral continuado,
tanta paixão gritada, tanto contraponto
que teimosamente impede que na tessitura 
das vozes e dos timbres se interponha hiato
não de silêncio mas de um fio só
de melodia, por onde a morte 
penetre interrompendo a vida.

É medo, um medo-orgulho, feito
de solidão e de desconfiança. Não
piedosa tentativa para captar um Deus,
ou ardente anseio de união com Ele.
Não é também, com tanta majestade,
a exigência de que Ele exista,
porque o mereça quem assim O inventa.

É um medo comovente de que O não haja
para remissão dos pecados, bálsamo
das feridas, consolo
das amarguras, dádiva
do que se não teve nunca
ou se perdeu para sempre. É
desejo ansioso de que um Agnus Dei
se interponha (ao contrário da morte) mediador e humano 
entre um nada feito música
e outro possivelmente Deus.
E a esperança desesperada de que seja
uma grandeza nossa quanto fique,
de pé, no intervalo entre ambos.
                       2 de Novembro 64
Jorge de Sena, in " Versos e alguma prosa de Jorge de Sena, Prefácio e Selecção de textos de Eugénio Lisboa", Co-edição de Arcádia e Moraes, 1979  p. 82

Não sei dizer quantas e quantas vezes tenho ouvido Beethoven. A Missa Solemnis, Op. 123 é a obra que mais me encanta, que mais procuro. A peça é contemporânea da Sonata Hammerklavier, a 9ª Sinfonia e das últimas três sonatas para piano. 
"Das principais Missas, consideradas clássicas (Bach e Bruckner), a de Beethoven possui uma forma sinfónica,em 5 movimentos: Kyrie, Gloria, Credo, Sanctus e Agnus Dei. A obra possui um estilo dramático, é só observar as palavras do próprio Beethoven: “do coração! Que possa retornar aos corações”.
Ludwig van Beethoven compôs duas missas e um singular oratório intitulado Cristo no Monte das Oliveiras, além de duas cantatas compostas na juventude; essa foi toda a sua produção religiosa. A segunda missa, a impressionante Missa Solemnis, op. 123, por sua alta qualidade musical já seria suficiente para garantir a Beethoven um lugar na história da música. Composta para homenagear o arquiduque Rudolfo da Áustria, a Missa Solemnis é tão extraordinária que a sua audição fora de uma sala de concertos é praticamente impossível. Os elementos que necessita para a sua execução extrapolam as dimensões de uma igreja de tamanho normal: quatro solistas (soprano, contralto, tenor e baixo), um grande coro, uma orquestra de cordas, duas flautas, dois oboés, dois clarinetes, dois fagotes, corno de bassetto, quatro trompas, dois trompetes, três trombones, timbales e um órgão. A estrutura segue as secções tradicionais de Kyrie, Gloria, Credo, Sanctus/Benedictus e Agnus Dei, apesar de ser longa demais para a utilização litúrgica convencional. Além disso, os textos em certas partes  afastam-se do dogma católico. Tremendamente complexa, a Missa Solemnis não se parece a nada: é única.
Missa Solemnis, en Re mayor, Op. 123. Ludwig van Beethoven (Latin/ Engl./ Span. subtitles)
Título de la obra: Missa para solistas, coro e orquesta, em Re mayor ("Missa Solemnis"), Opus 123. Compositor: Ludwig van Beethoven (1770-1827). 
 Tonalidade: Re maior.
 1ª interpretação: San Petersburgo, 7 de abril de 1824. 
Dedicatória: Archiduque Rudolph de Austria (1788-1831). 1ª edição: B. Schott Söhne (Maguncia), 1827. 
O registo que se segue  foi  realizado no Royal Albert Hall de Londres (BBC Proms 2014). A interpretação é de:  Lucy Crowe, soprano Jennifer Johnston, mezzo-soprano Michael Spyres, tenor Mathew Rose, baixo,  acompanhados  pelo   Monteverdi Choir e   Orchestre Révolutionnaire et Romantique , sob a direcção do Maestro John Eliot Gardiner. 


"Assim o Kyrie, é um hino piedoso e solene, deve ser cantado com devoção. A parte central em forma de moteto (si menor e fa# menor) , é cantada pelos solistas e termina em pianíssimo. A volta do Kyrie, reintroduz a tonalidade principal e intensifica a harmonia numa bela alternância do coro e dos solistas em comovida prece que se extingue lentamente. O texto sagrado conduz aos movimentos seguintes, o Gloria e o Credo. Enquanto que na Missa em si menor de Bach, e o Gloria é cheio de alegria sobre humana, o canto de louvor de Beethoven encontra-se animado de incessante agitação. O Et in terra pax, traz o primeiro repouso porém o arrebatamento retorna com o Laudamus Te. A expressão, bem como a tonalidade é a seguir variável, até que a tonalidade principal seja reencontrada com o Pater omnipotens. A segunda parte do Gloria contem um expressivo Larghetto, o Qui tollis peccata mundi, que Beethoven concebeu como lamento é uma prece de tão comovente humanidade,  que ele próprio acrescentou um “o” para os solistas, e um “ah” para o coro, antes dos apelos finais do Miserere. A parte conclusiva deste movimento principia na tonalidade principal com um Quoniam tu solus Sanctus, espantosamente curto e agitado, culminando na grandiosa fuga coral do In gloria Dei Patris, onde Beethoven desenvolve uma arte contrapontística excepcional. Na conclusão, o início do Gloria que retorna acelerado até ao Presto dá desta maneira uma unidade sinfónica ao movimento.
O Credo, em si b maior, de acordo com o carácter do texto, é ainda mais variado e expressivo. Desde o início, sentimos o esforço tremendo que Beethoven realiza para nos transmitir a sua fé. O Et incarnatus est e as outras secções que se seguem, falando da vida, crucificação, ressurreição e ascensão de Cristo; em Cuius regni non erit finis, a palavra non é expressamente repetida para maior ênfase, do mesmo modo que mais tarde a palavra credo. O final constitui, em duas fugas sobre o mesmo tema, a visão da vida eterna, Et vitam venturi saeculi, e nas exclamações finais do Amen, reaparece o tema original do Credo.
No Sanctus, o canto de louvores reflecte uma prece humana, um Adágio e a meditação. Após o curto Pleni sunt coeli, fugado, e o Osanna, a meditação se expande em figuração. A melodia o solo de violino, desce flutuando das mais elevadas paragens, reconstitui o milagre da descida de Jesus e da transubstanciação. O Benedictus, é no amplo sentido, a música de transição, cujo carácter se infiltra no desenvolvimento posterior, indo além da repetição do Osanna.
O Agnus Dei, constitui o Finale desta grande sinfonia coral. Miserere nobis! É aqui, com o solo inicial do baixo, em si menor, e após com o expressivo refrão do coro, que a lamentação alcança maior profundidade. Depois a severidade diminui e a prece de paz que é o Dona nobis pacem, introduz e faz retornar suavemente a tonalidade original de re maior. Sem embargo, ainda não reina paz no mundo exterior. Oração pela paz interior e exterior, foi o substituto anotado pelo autor para esta parte. O primeiro interlúdio orquestral sugere uma perturbação na paz exterior. O equilíbrio íntimo parece se estabelecer. Dona nobis pacem soa como se fora uma fuga solene. O tema é uma reminiscência do Messias de Haendel, cujo texto Der Herr regiert von nun na auf ewig (Agora o Senhor reinará para sempre). Todavia não são as tempestades exteriores as que verdadeiramente nos perturbam; são os da alma. O Scherzo orquestral que se segue é extraordinário pelo rude, veemente contraponto. O Dona nobis pacem, que se sucede, é cantado pelo coro, na tonalidade de sib maior, e constitui autêntico apelo pela paz. Então a tonalidade principal de re maior e o compasso de 6/8, são alcançados após um lento desdobramento. Nessa atmosfera de esperança ante a paz ainda incerta do Dona nobis pacem do coro final, ouvimos os tímpanos em si bemol ribombarem ainda duas vezes – eco da paz perturbada. Beethoven conclui a missa sem acrescentar o grande final redentor.” In Repertório Beethoven

quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

BREVE NOTA SOBRE A IDOLATRIA

BREVE NOTA SOBRE A IDOLATRIA

por Eugénio Lisboa
"A idolatria foi condenada por três religiões diferentes – e nem sempre convergentes – como um dos piores pecados que um ser humano pode cometer. A Bíblia, a Tora e o Alcorão convergem nisso sem a mais pequena reserva. O homem que idolatra não admira com fundamento: adora com fanatismo e vê, nos que ponham reservas a tão aquecida paixão, um inimigo arrogante, um desmancha-prazeres e um convencido. Quiçá um herético ou um infiel a abater. A idolatria renega o equilíbrio, a saúde mental e o sentido crítico.
Sobre a idolatria, o grande dramaturgo irlandês, George Bernard Shaw, disse várias coisas saborosas, entre elas, esta: “O selvagem dobra-se diante ídolos de madeira e de pedra, o homem civilizado, diante de ídolos de carne e osso.” 
A nossa vida intelectual, depois de quarenta e seis anos de democracia e de muitas décadas de saudável pedagogia libertadora de um António Sérgio, vive ainda no comprimento de onda da mais provinciana e infecunda idolatria, como se torna evidente com a histeria obituária que por aí se despenha, de cada vez que se assinala o passamento de um vulto de algum modo mais destacado, no nosso meio cultural. A falta de perspectiva e de aconselhável comedimento que então nos assola é simplesmente assustadora. Uma avaliação honesta, modesta, comedida, e fora das ejaculações mais intemperadas é considerada inveja, mau feitio e desmancha-prazeres. O cronista A, o romancista B, o poeta C, o filósofo D são, no mínimo, verdadeiros gigantes, só que ninguém dá por eles, nos verdadeiros areópagos. Há nesta loucura não tão mansa como isso algo de muito doentio: uma espécie de sobrecompensação para a nossa pequenez e relativa pouca relevância internacional. Debita-se para aí uma ladainha de Bandarra, com promessas férvidas de triunfos que nos compensem de infortúnios pretéritos. Escrevemos então o melhor romance dos últimos cem anos, um poema tão grande como os Lusíadas e temos, entre nós, o melhor filósofo dos últimos três séculos ou mesmo de sempre. E fazemos uma festa com grande espalhafato, que só não nos torna mais ridículos porque ninguém, lá fora, dá por isso. 
Na África do Sul, na língua Afikander, há uma palavra capitosa que significa um peixe considerado grande porque habita num lago pequeno. Se eu fosse linguista, inventava, em português, um vocábulo que se ajustasse a este conceito. Teríamos bom uso para ele. 
O pior das idolatrias é que são um terrível entrave ao progresso do conhecimento. Este sempre se fez de um necessário acolhimento à contradição e ao encontrar sucessivo de melhores respostas para as nossas perplexidades. A admiração não faz mal, mas o embevecimento é de mau aviso. Além do mais, o idólatra tende a reduzir o diâmetro do foco da sua atenção: só vê o idolatrado e nada mais à sua volta ou para trás, numa espécie de “criacionismo” que a ciência de há muito rejeita. 
Para terminar, direi que o Portugal de Bento Caraça, de Aniceto Monteiro, de Aurélio Quintanilha, de Tiago Oliveira, de António Sérgio, de Sílvio Lima, de Jaime Cortesão, de Raul Proença, de José Régio, de Rui Luis Gomes, de Abel Salazar, de Jorge de Sena e de tantos bons argonautas da Seara Nova não merece que lhe suceda um Portugalinho idólatra, provinciano, unânime e contente. Alguém dizia que um Professor é um cavalheiro de opinião diferente. Um verdadeiro pensador, um verdadeiro investigador, um verdadeiro artista criador é também isso mesmo: um cavalheiro de opinião diferente A idolatria não acolhe a opinião diferente e é sempre um triste sinal de atraso. Por mim, enquanto o vigor me não abandonar, terei sempre muito orgulho em pertencer à tribo dos cavalheiros de opinião diferente. Até porque, mesmo com a minha provecta idade, não quero ficar parado. "
Eugénio Lisboa, 16.12.2020

Uma semana sem grandes incidentes


Eugénio Lisboa é um dos mais brilhantes intelectuais portugueses. Criador de uma vasta e multifacetada obra  que se estende pela Crítica Literária, Ensaio, Poesia, Crónica, Memórias,  Diários , este erudito escritor  foi além de gestor de Companhias Petrolíferas,  professor universitário e Conselheiro Cultural da Embaixada Portuguesa, em Londres,  durante 17 anos consecutivos, de  1978 a 1995. 
Da sua obra diarística , tem publicados dois volumes. O verbete que vamos publicar  pertence ao segundo volume , quando ainda exercia diplomacia cultural , em Londres

"Londres, 12.12.1993 (Domingo) – Uma semana sem grandes incidentes. Segunda feira, o Saramago veio à embaixada falar a cerca de 120 pessoas sobre o tema: “Da canção ao romance, do romance à canção”. O tema é interessante e, de facto, algum romance parece dar mostras de querer regressar à vastidão, à compreensividade e ao informe da canção de gesta original. Mas é mais do que duvidoso que todo o romance moderno evidencie essa vocação. E é também duvidoso que só agora ela se esteja a manifestar. O romance, como grande construção ambiciosa, capaz de abarcar toda a sabedoria de uma época, existiu no século XVIII, no século XIX e na primeira metade do século XX.
Enfim, o Saramago. 
Pena que as perguntas, no final da exposição, tenham sido quase todas um tanto paroquiais e se tenham dirigido mais ao guru do que ao escritor (como muito bem observou, dias depois, em conversa comigo, o Luis de Sousa Rebelo). 
Esta semana, tivemos cá ainda a visita do Luis Santos Ferro, sempre vivo, mordaz e eloquente. Falámos disto e daquilo e fomos ao teatro ver uma peça do Pinter (Moonlight), elogiadíssima pela crítica. A mim, deixou-me un peu sur ma soif. Ele não corta a angústia e o pathos com o humorismo ou com a farsa, à Pirandello. Ele corta-os com gelo afiado. Ameaça-nos… com quê? Agride-nos, para quê? O mistério, a ameaça, a dureza, a agressão parecem não vir de lado nenhum e não levar a lado nenhum. Talvez seja isso mesmo que ele nos quer dizer. Mas então? 
Descubro um grande ensaísta americano: Joseph Epstein, de quem leio um livro intitulado Partial Payments – Essays on Writers and their Lives. Inteligente, invulgarmente perceptivo, sereno, urbano, profundo, eminentemente civilizado. Belos e corajosos e lúcidos e subtis ensaios sobre Maugham, Larkin, Barbara Pym, V. S. Naipaul, Tcheckov. Um espírito raro, um modelo de ensaísta, brilhante sem ser vistoso, claro mas profundo, corajoso mas sereno. 
E leio também, com prazer, o Livro de Prefácios, de Borges. 
Neste fim de semana, na televisão, revejo um filme de Franklin Schafner que não via havia mais de vinte anos e que não pouco me impressionara: The War Lord, com Charlton Heston. Parte da magia foi-se, mas deve ser da idade. Em suma, gostei de rever mas não voltei completamente ao encanto da primeira vez.
Esteve cá também o Vasco Graça Moura, com quem negociei, na companhia do Kim Taylor, a concessão de uma bolsa de investigação ao John Villiers, para escrever uma biografia do Vasco da Gama. Associar-se-iam ao Vasco Graça Moura a Fundação Oriente e a Gulbenkian. Vamos ver. 
Na sexta feira (dia 10), almoço na embaixada, oferecido ao Ferrer Correia, actual presidente da Gulbenkian. Oitenta e tal em cada pé: a cair da tripeça. Agradece o almoço, num discurso cheio de floreados à antiga, atapetado de vocábulos de antanho – “recepção fidalga” - que deixam a filha da Ana Gomes (minha colega) de boca entreaberta: a nova geração não está habituada a estas subtilezas. 
Toda a semana, a Igreja Anglicana a digladiar-se por causa do Príncipe Carlos. Se deve ou não deve ser rei, se deve ou não deve ser Chefe da Igreja Anglicana. Para mim, é tudo o sexo dos anjos. Para começar, não levo a sério uma Igreja que tem como seu chefe… o rei. Só os ingleses são capazes destas “sínteses”. Ou destes “compromissos”. Tudo, é claro, por causa de o Carlos ter dormido (e gostado) com a Camila Parker Bowles. Sim, acho que o pior foi ter gostado: o sexo não é para isso. 
O Jim dorme a meu lado, felina, pacífica e extasiadamente. Já lhe disse: na próxima encarnação, quero eu ser o gato dele, sendo ele, portanto, o meu dono. Olhou-me com desprezo felino."
Eugénio Lisboa, in "Aperto Libro, Páginas de Diário II- 1991-1994", Opera Omnia editora, Outubro de 2019, pp.184,185,186

terça-feira, 15 de dezembro de 2020

Em cima do poema

Coisas de partir

Tento empurrar-te de cima do poema
para não o estragar na emoção de ti:
olhos semi-cerrados, em precauções de tempo,
a sonhá-lo de longe, todo livre sem ti.

Dele ausento os teus olhos, sorriso, boca, olhar:
tudo coisas de ti, mas coisas de partir…
E o meu alarme nasce: e se morreste aí,
no meio de chão sem texto que é ausente de ti?

E se já não respiras? Se eu não te vejo mais
por te querer empurrar, lírica de emoção?
E o meu pânico cresce: se tu não estiveres lá?
E se tu não estiveres onde o poema está?

Faço eroticamente respiração contigo:
primeiro um advérbio, depois um adjectivo,
depois um verso todo em emoção e juras.

E termino contigo em cima do poema,
presente indicativo, artigos às escuras.
Ana Luísa Amaral, in Coisas de partir, Lisboa, Gótica, 2001

domingo, 13 de dezembro de 2020

Ao Domingo Há Música

Casa onde nasceu Beethoven em Bona

Quem entende a minha música nunca mais será infeliz.
                                                            Beethoven

"Até mesmo 250 anos após o seu nascimento em Bona, à beira do rio Reno, a música de Ludwig van Beethoven emociona, inspira e une as pessoas em todo o mundo" 
Ludwig van Beethoven (Bona,17 de Dezembro de 1770 — Viena, 26 de Março de 1827) é um dos maiores compositores de sempre. A sua música é um legado imortal para a humanidade. Será impossível dizer quantas audições  têm sido feitas da sua obra, quantos concertos foram  e continuam a ser promovidos e  de quantos estudiosos e artistas se dedicaram à sua música. 
Neste ano do seu 250º aniversário, as homenagens repetiram-se  pelo mundo, numa revisitação  das suas mais variadas composições por grandes intérpretes. Entre eles, Anne-Sophie Mutter, Daniel Barenboim e Yo-Yo Ma, três dos mais destacados intérpretes  de música clássica , resolveram juntar-se para gravar Triple Concerto in C Major em celebração  do 250º aniversario de Beethoven.  Este álbum pretendeu também marcar  o 20º aniversário da West-Eastern Divan Orchestra.  
O Triplo Concerto tem um lugar especial na obra de Beethoven, revelando o  seu espírito revolucionário e uma arquitectura musical  especial e sofisticada. Criativo , original e detentor de  um extraordinário e surpreendente talento construiu uma melodia  que é um copioso banquete musical.
Triple Concerto C Major, Op. 56, No. 2,  Largo de  Ludwig van Beethoven  , por três dos mais respeitados  intérpretes de música clássica e de Beethoven,   Anne-Sophie Mutter, Yo-Yo Ma e Daniel Barenboim, acompanhados pela West-Eastern Divan Orchestra. 

sábado, 12 de dezembro de 2020

... sempre à espera do extraordinário - 100 anos de Clarice Lispector

Morte de uma baleia
por Clarice Lispector
"Em minutos espalhara-se a notícia: uma baleia no Leme e outra no Leblon haviam surgido na arrebentação de onde tinham tentado sair sem no entanto poder voltar. Eram descomunais apesar de apenas filhotes. Todos foram ver. Eu não fui: corria o boato de que ela agonizava já há oito horas e que até atirar nela haviam atirado mas ela continuava agonizando e sem morrer.
Senti um horror diante do que contavam e que talvez não fossem estritamente os factos reais, mas a lenda já estava formada em torno do extraordinário que enfim, enfim! Acontecia, pois por pura sede de vida melhor estamos sempre à espera do extraordinário que talvez nos salve de uma vida contida. Se fosse um homem que estivesse agonizando na praia durante oito horas nós o santificaríamos, tanto precisamos de crer no que é impossível.
Não, não fui vê-la: detesto a morte. Deus, o que nos prometeis em troca de morrer? Pois o céu e o inferno nós já os conhecemos – cada um de nós em segredo quase de sonho já viveu um pouco do próprio apocalipse. E a própria morte.
Fora das vezes em que quase morri para sempre, quantas vezes num silêncio humano – que é o mais grave de todos do reino animal –, quantas vezes num silêncio humano minha alma agonizando esperava por uma morte que não vinha. E como escárnio, por ser o contrário do martírio em que minha alma sangrava, era quando o corpo mais florescia. Como se meu corpo precisasse dar ao mundo uma prova contrária de minha morte interna para esta ser mais secreta ainda. Morri de muitas mortes e mantê-las-ei em segredo até que a morte do corpo venha, e alguém, adivinhando, diga: esta, esta viveu.
Porque aquele que mais experimenta o martírio é dele que se poderá dizer: este, sim, este viveu.
O mais estranho é que todas as vezes em que era só o corpo que estava à morte, a alma o desconhecia: da última vez em que meu corpo quase morreu, ignorando o que sucedia, tinha uma espécie de rara alegria como se ela estivesse enfim liberta enquanto o corpo doía como o Inferno. Uma das vezes, só depois que passou é que me disseram: eu havia estado três dias entre vida e morte, e nada garantiam os médicos, senão que tudo tentariam. E eu tão inocente do que estava acontecendo que estranhava não permitirem visitas. Mas eu quero visitas, dizia, elas me distraem da dor terrível. E todos os que não obedeceram à placa “Silêncio”, todos foram recebidos por mim, gemendo de dor, como numa festa: eu tinha-me tornado falante e minha voz era clara: minha alma florescia como um áspero cacto. Até que o médico, realmente muito zangado e num tom definitivo, disse-me: mais uma só visita e lhe darei alta no estado mesmo em que você está. “O estado em que eu estava” eu o desconhecia, nunca nesses dias notei que estava no limiar da morte. Parece-me que eu vagamente sentia que, enquanto sofresse fisicamente de um modo tão insuportável, isso seria a prova de estar vivendo ao máximo.
Lembro-me agora de uma vez que ao olhar um pôr do sol interminável e escarlate também eu agonizei com ele lentamente e morri, e a noite veio para mim cobrindo-me de mistério, de insónia clarividente e, finalmente por cansaço, sucumbindo num sono que completava a minha morte. E quando acordei, surpreendi-me docemente. Nos primeiros ínfimos instantes de acordada pensei: então quando se está morta se conserva a consciência? Até que o corpo habituado a mover-se automaticamente me fez fazer um gesto muito meu: o de passar a mão pelos cabelos. Então num susto percebi que meu corpo e minha alma tinham sobrevivido. Tudo isto – a certeza de estar morta e a descoberta de que eu estava viva – tudo isto não durou, creio, mais que dois ínfimos segundos ou talvez menos ainda. Mas que de hoje em diante todos saibam através de mim que não estou mentindo: em menos de dois segundos podem-se viver uma vida e uma morte e uma vida de novo. Esses dois ínfimos segundos como forma de contar toscamente o tempo devem ser a diferença entre o ser humano e o animal: assim como Deus talvez conte o tempo em frações de século dos séculos: cada século um instante. Quem sabe se Deus conta a nossa vida em termos de dois segundos: um para nascer e outro para morrer. E o intervalo, meu Deus, talvez seja a maior criação do Homem: a vida, uma vida. Lembro-me de um amigo que há poucos dias citou o que um dos apóstolos disse de nós: vós sois deuses.
Sim, juro que somos deuses. Porque eu também já morri de alegria muitas vezes na minha vida. E quando passava essa espécie de gloriosa e suave morte, eu me surpreendia de que o mundo continuasse ao meu redor, de que houvesse uma disciplina para cada coisa, e de que eu mesma, a começar por mim, tinha o meu nome e já entrara na rotina: pensara que o tempo tinha parado e os homens subitamente se tinham imobilizado no meio do gesto que estivessem executando – enquanto eu vivera a morte por alegria.
Não fui ver a baleia que estava a bem dizer à porta de minha casa a morrer. Morte, eu te odeio.
Enquanto isso as notícias misturadas com lendas corriam pela cidade do Leme. Uns diziam que a baleia do Leblon ainda não morrera mas que sua carne retalhada em vida era vendida por quilos pois carne de baleia era ótimo de se comer, e era barato, era isso que corria pela cidade do Leme. E eu pensei: maldito seja aquele que a comerá por curiosidade, só perdoarei quem tem fome, aquela fome antiga dos pobres.
Outros, no limiar do horror, contavam que também a baleia do Leme, embora ainda viva e arfante, tinha seus quilos cortados para serem vendidos. Como acreditar que não se espera nem a morte para um ser comer outro ser? Não quero acreditar que alguém desrespeite tanto a vida e a morte, nossa criação humana, e que coma vorazmente, só por ser uma iguaria, aquilo que ainda agoniza, só porque é mais barato, só porque a fome humana é grande, só porque na verdade somos tão ferozes como um animal feroz, só porque queremos comer daquela montanha de inocência que é uma baleia, assim como comemos a inocência cantante de um pássaro. Eu ia dizer agora com horror: a viver desse modo, prefiro a morte.
E exatamente não é verdade. Sou uma feroz entre os ferozes seres humanos – nós, os macacos de nós mesmos, nós, os macacos que idealizaram tornarem-se homens, e esta é também a nossa grandeza. Nunca atingiremos em nós o ser humano: a busca e o esforço serão permanentes. E quem atinge o quase impossível estágio de Ser Humano, é justo que seja santificado.
Porque desistir de nossa animalidade é um sacrifício."
Clarice Lispector, in " Clarice na Cabeceira, Crónicas" Editora Rocco, Brasil, 2010
Sobre o livro
"Reunião de vinte textos escolhidos por convidados afeitos à obra de Clarice Lispector, Clarice na cabeceira apresenta uma leitura seleccionada de narrativas curtas publicadas entre 1962 e 1973, na revista Senhor e no Jornal do Brasil, e posteriormente agrupadas nos livros A descoberta do mundo e Para não esquecer. Abordando temas tão diversos quanto as memórias da infância, a vida, a morte, o amor, o acto de escrever, o silêncio, a maternidade e a indignação, as crónicas ganham sabor especial quando apresentadas por amigos e admiradores de Clarice, que compartilham o impacto da escritora e de sua obra nas suas vidas, como Eduardo Portella, Ferreira Gullar, Marília Pêra, Maria Bonomi e Naum Alves de Souza, entre outros. Com organização de Teresa Montero, autora de Eu sou uma pergunta – Uma biografia de Clarice Lispector, publicada pela Rocco, Clarice na cabeceira é a oportunidade de conhecer “perfeitos momentos da literatura brasileira moderna, perfeitos momentos da vida nas palavras, perfeitos momentos”, como descreve Caetano Veloso ao falar sobre o sentimento que a leitura de Clarice provoca. 
Assim, cada crónica é uma introdução não só ao universo literário de Clarice Lispector, mas à mulher que, em suas próprias palavras, nasceu para amar os outros, para escrever e para criar os filhos, tema da extraordinária “As três experiências”. O texto é apresentado por Lygia Fagundes Telles, que oferece ao leitor uma belíssima e emocionante homenagem a Clarice,  numa crônica na qual relembra a amizade das duas e a experiência vivida na noite em que a escritora faleceu. Já em “Morte de uma baleia”, escolhida por Silviano Santiago, duas baleias encalhadas, uma no Leme e outra no Leblon, praias da Zona Sul carioca, são o mote para que Clarice discuta a mortalidade – a sua e a dos outros. 
Temas mais leves, mas igualmente pertinentes à reflexão sobre o estar no mundo desde a mais tenra idade também estão presentes, como em “Banhos de mar”, opção de Aparecida Maria Nunes na qual uma extasiada Clarice relembra as idas à praia antes do sol nascer junto com o pai, na Olinda de sua infância; e em “Cem anos de perdão”, seleccionada por Naum Alves de Souza, em que a escritora sentencia que ladrões de rosas e pitangas – como a menina que ela foi em Recife – têm cem anos de perdão. 
Roteirista e mestre em Literatura Brasileira com uma dissertação sobre Clarice, Lícia Manzo, autora publicada pela Rocco, relembra como a descoberta da obra da escritora a fez sentir acolhida em sua inadequação adolescente. Sua escolha, apropriadamente, é “Se eu fosse eu”, um fragmento sobre a árdua legitimação de ser quem se é. O autoconhecimento está presente também em “As caridades odiosas”, apresentada por Rosiska Darcy de Oliveira, uma brutal análise dos sentimentos humanos, do amor à compaixão, passando pela vergonha e pela raiva. O mesmo mote, abordado com mais humor, perpassa “Mal-estar de um anjo”, seleccionada por Joaquim Ferreira dos Santos, quando um simples acto de generosidade se transforma em arrependimento da caridade praticada. 
A paixão pelos filhos Pedro e Paulo, grandes amores da vida de Clarice, aparecem em “Come, meu filho”, que tem apresentação de Bianca Romaneda, e “O caso da caneta de ouro”, escolha de Ferreira Gullar na qual a reacção de cada um dos meninos diante da possibilidade de herdar uma caneta de ouro da mãe permite à autora conhecer melhor suas crianças. Há ainda “Lição de filho”, sugerida pela escritora Thalita Rebouças, comovente crónica sobre como o filho adolescente ajuda Clarice a lidar com as suas emoções. 
A Editora Rocco doou uma colecção das obras completas de Clarice Lispector para cada uma das bibliotecas indicadas pelos leitores convidados. "

 
Documentário | Clarice Lispcetor | 100 Anos 
"Nas comemorações do centenário de Clarice Lispector, a TV Cultura exibe um programa especial sobre a obra da escritora. O programa inclui entrevistas com o biógrafo de Clarice, Benjamim Moser, e com o editor de seus livros na Editora Rocco, Pedro Vasquez. Também foram resgatados trechos de entrevista que ela concedeu ao repórter Julio Lerner, da TV Cultura, que foi exibida no programa Panorama, em 1977"