sábado, 12 de dezembro de 2020

... sempre à espera do extraordinário - 100 anos de Clarice Lispector

Morte de uma baleia
por Clarice Lispector
"Em minutos espalhara-se a notícia: uma baleia no Leme e outra no Leblon haviam surgido na arrebentação de onde tinham tentado sair sem no entanto poder voltar. Eram descomunais apesar de apenas filhotes. Todos foram ver. Eu não fui: corria o boato de que ela agonizava já há oito horas e que até atirar nela haviam atirado mas ela continuava agonizando e sem morrer.
Senti um horror diante do que contavam e que talvez não fossem estritamente os factos reais, mas a lenda já estava formada em torno do extraordinário que enfim, enfim! Acontecia, pois por pura sede de vida melhor estamos sempre à espera do extraordinário que talvez nos salve de uma vida contida. Se fosse um homem que estivesse agonizando na praia durante oito horas nós o santificaríamos, tanto precisamos de crer no que é impossível.
Não, não fui vê-la: detesto a morte. Deus, o que nos prometeis em troca de morrer? Pois o céu e o inferno nós já os conhecemos – cada um de nós em segredo quase de sonho já viveu um pouco do próprio apocalipse. E a própria morte.
Fora das vezes em que quase morri para sempre, quantas vezes num silêncio humano – que é o mais grave de todos do reino animal –, quantas vezes num silêncio humano minha alma agonizando esperava por uma morte que não vinha. E como escárnio, por ser o contrário do martírio em que minha alma sangrava, era quando o corpo mais florescia. Como se meu corpo precisasse dar ao mundo uma prova contrária de minha morte interna para esta ser mais secreta ainda. Morri de muitas mortes e mantê-las-ei em segredo até que a morte do corpo venha, e alguém, adivinhando, diga: esta, esta viveu.
Porque aquele que mais experimenta o martírio é dele que se poderá dizer: este, sim, este viveu.
O mais estranho é que todas as vezes em que era só o corpo que estava à morte, a alma o desconhecia: da última vez em que meu corpo quase morreu, ignorando o que sucedia, tinha uma espécie de rara alegria como se ela estivesse enfim liberta enquanto o corpo doía como o Inferno. Uma das vezes, só depois que passou é que me disseram: eu havia estado três dias entre vida e morte, e nada garantiam os médicos, senão que tudo tentariam. E eu tão inocente do que estava acontecendo que estranhava não permitirem visitas. Mas eu quero visitas, dizia, elas me distraem da dor terrível. E todos os que não obedeceram à placa “Silêncio”, todos foram recebidos por mim, gemendo de dor, como numa festa: eu tinha-me tornado falante e minha voz era clara: minha alma florescia como um áspero cacto. Até que o médico, realmente muito zangado e num tom definitivo, disse-me: mais uma só visita e lhe darei alta no estado mesmo em que você está. “O estado em que eu estava” eu o desconhecia, nunca nesses dias notei que estava no limiar da morte. Parece-me que eu vagamente sentia que, enquanto sofresse fisicamente de um modo tão insuportável, isso seria a prova de estar vivendo ao máximo.
Lembro-me agora de uma vez que ao olhar um pôr do sol interminável e escarlate também eu agonizei com ele lentamente e morri, e a noite veio para mim cobrindo-me de mistério, de insónia clarividente e, finalmente por cansaço, sucumbindo num sono que completava a minha morte. E quando acordei, surpreendi-me docemente. Nos primeiros ínfimos instantes de acordada pensei: então quando se está morta se conserva a consciência? Até que o corpo habituado a mover-se automaticamente me fez fazer um gesto muito meu: o de passar a mão pelos cabelos. Então num susto percebi que meu corpo e minha alma tinham sobrevivido. Tudo isto – a certeza de estar morta e a descoberta de que eu estava viva – tudo isto não durou, creio, mais que dois ínfimos segundos ou talvez menos ainda. Mas que de hoje em diante todos saibam através de mim que não estou mentindo: em menos de dois segundos podem-se viver uma vida e uma morte e uma vida de novo. Esses dois ínfimos segundos como forma de contar toscamente o tempo devem ser a diferença entre o ser humano e o animal: assim como Deus talvez conte o tempo em frações de século dos séculos: cada século um instante. Quem sabe se Deus conta a nossa vida em termos de dois segundos: um para nascer e outro para morrer. E o intervalo, meu Deus, talvez seja a maior criação do Homem: a vida, uma vida. Lembro-me de um amigo que há poucos dias citou o que um dos apóstolos disse de nós: vós sois deuses.
Sim, juro que somos deuses. Porque eu também já morri de alegria muitas vezes na minha vida. E quando passava essa espécie de gloriosa e suave morte, eu me surpreendia de que o mundo continuasse ao meu redor, de que houvesse uma disciplina para cada coisa, e de que eu mesma, a começar por mim, tinha o meu nome e já entrara na rotina: pensara que o tempo tinha parado e os homens subitamente se tinham imobilizado no meio do gesto que estivessem executando – enquanto eu vivera a morte por alegria.
Não fui ver a baleia que estava a bem dizer à porta de minha casa a morrer. Morte, eu te odeio.
Enquanto isso as notícias misturadas com lendas corriam pela cidade do Leme. Uns diziam que a baleia do Leblon ainda não morrera mas que sua carne retalhada em vida era vendida por quilos pois carne de baleia era ótimo de se comer, e era barato, era isso que corria pela cidade do Leme. E eu pensei: maldito seja aquele que a comerá por curiosidade, só perdoarei quem tem fome, aquela fome antiga dos pobres.
Outros, no limiar do horror, contavam que também a baleia do Leme, embora ainda viva e arfante, tinha seus quilos cortados para serem vendidos. Como acreditar que não se espera nem a morte para um ser comer outro ser? Não quero acreditar que alguém desrespeite tanto a vida e a morte, nossa criação humana, e que coma vorazmente, só por ser uma iguaria, aquilo que ainda agoniza, só porque é mais barato, só porque a fome humana é grande, só porque na verdade somos tão ferozes como um animal feroz, só porque queremos comer daquela montanha de inocência que é uma baleia, assim como comemos a inocência cantante de um pássaro. Eu ia dizer agora com horror: a viver desse modo, prefiro a morte.
E exatamente não é verdade. Sou uma feroz entre os ferozes seres humanos – nós, os macacos de nós mesmos, nós, os macacos que idealizaram tornarem-se homens, e esta é também a nossa grandeza. Nunca atingiremos em nós o ser humano: a busca e o esforço serão permanentes. E quem atinge o quase impossível estágio de Ser Humano, é justo que seja santificado.
Porque desistir de nossa animalidade é um sacrifício."
Clarice Lispector, in " Clarice na Cabeceira, Crónicas" Editora Rocco, Brasil, 2010
Sobre o livro
"Reunião de vinte textos escolhidos por convidados afeitos à obra de Clarice Lispector, Clarice na cabeceira apresenta uma leitura seleccionada de narrativas curtas publicadas entre 1962 e 1973, na revista Senhor e no Jornal do Brasil, e posteriormente agrupadas nos livros A descoberta do mundo e Para não esquecer. Abordando temas tão diversos quanto as memórias da infância, a vida, a morte, o amor, o acto de escrever, o silêncio, a maternidade e a indignação, as crónicas ganham sabor especial quando apresentadas por amigos e admiradores de Clarice, que compartilham o impacto da escritora e de sua obra nas suas vidas, como Eduardo Portella, Ferreira Gullar, Marília Pêra, Maria Bonomi e Naum Alves de Souza, entre outros. Com organização de Teresa Montero, autora de Eu sou uma pergunta – Uma biografia de Clarice Lispector, publicada pela Rocco, Clarice na cabeceira é a oportunidade de conhecer “perfeitos momentos da literatura brasileira moderna, perfeitos momentos da vida nas palavras, perfeitos momentos”, como descreve Caetano Veloso ao falar sobre o sentimento que a leitura de Clarice provoca. 
Assim, cada crónica é uma introdução não só ao universo literário de Clarice Lispector, mas à mulher que, em suas próprias palavras, nasceu para amar os outros, para escrever e para criar os filhos, tema da extraordinária “As três experiências”. O texto é apresentado por Lygia Fagundes Telles, que oferece ao leitor uma belíssima e emocionante homenagem a Clarice,  numa crônica na qual relembra a amizade das duas e a experiência vivida na noite em que a escritora faleceu. Já em “Morte de uma baleia”, escolhida por Silviano Santiago, duas baleias encalhadas, uma no Leme e outra no Leblon, praias da Zona Sul carioca, são o mote para que Clarice discuta a mortalidade – a sua e a dos outros. 
Temas mais leves, mas igualmente pertinentes à reflexão sobre o estar no mundo desde a mais tenra idade também estão presentes, como em “Banhos de mar”, opção de Aparecida Maria Nunes na qual uma extasiada Clarice relembra as idas à praia antes do sol nascer junto com o pai, na Olinda de sua infância; e em “Cem anos de perdão”, seleccionada por Naum Alves de Souza, em que a escritora sentencia que ladrões de rosas e pitangas – como a menina que ela foi em Recife – têm cem anos de perdão. 
Roteirista e mestre em Literatura Brasileira com uma dissertação sobre Clarice, Lícia Manzo, autora publicada pela Rocco, relembra como a descoberta da obra da escritora a fez sentir acolhida em sua inadequação adolescente. Sua escolha, apropriadamente, é “Se eu fosse eu”, um fragmento sobre a árdua legitimação de ser quem se é. O autoconhecimento está presente também em “As caridades odiosas”, apresentada por Rosiska Darcy de Oliveira, uma brutal análise dos sentimentos humanos, do amor à compaixão, passando pela vergonha e pela raiva. O mesmo mote, abordado com mais humor, perpassa “Mal-estar de um anjo”, seleccionada por Joaquim Ferreira dos Santos, quando um simples acto de generosidade se transforma em arrependimento da caridade praticada. 
A paixão pelos filhos Pedro e Paulo, grandes amores da vida de Clarice, aparecem em “Come, meu filho”, que tem apresentação de Bianca Romaneda, e “O caso da caneta de ouro”, escolha de Ferreira Gullar na qual a reacção de cada um dos meninos diante da possibilidade de herdar uma caneta de ouro da mãe permite à autora conhecer melhor suas crianças. Há ainda “Lição de filho”, sugerida pela escritora Thalita Rebouças, comovente crónica sobre como o filho adolescente ajuda Clarice a lidar com as suas emoções. 
A Editora Rocco doou uma colecção das obras completas de Clarice Lispector para cada uma das bibliotecas indicadas pelos leitores convidados. "

 
Documentário | Clarice Lispcetor | 100 Anos 
"Nas comemorações do centenário de Clarice Lispector, a TV Cultura exibe um programa especial sobre a obra da escritora. O programa inclui entrevistas com o biógrafo de Clarice, Benjamim Moser, e com o editor de seus livros na Editora Rocco, Pedro Vasquez. Também foram resgatados trechos de entrevista que ela concedeu ao repórter Julio Lerner, da TV Cultura, que foi exibida no programa Panorama, em 1977"

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