SOMOS O PASSADO DE AMANHÃ
(Algumas observações cândidas sobre Eduardo Lourenço)
por Eugénio Lisboa
Mas as reservas que aqui quero trazer são mais dirigidas aos admiradores e aduladores de Lourenço, aos emissores de epitáfios incontinentes, do que ao próprio ensaísta. Quando querem fazer dele o argonauta que “desvendou” Portugal e Pessoa aos portugueses, estão a assassinar os factos eruditos e a cometer uma clamorosa injustiça. Aqui, repito, o pecador não é o autor de O Labirinto da Saudade, mas sim os seus aduladores pouco informados ou muito esquecidos. Todo o excesso de admiração é sempre suspeito e revela, em geral, pouco senso crítico e péssimo conhecimento da obra idolatrada. André Gide, que era, além de notável ficcionista e diarista, um finíssimo crítico e ensaísta, raramente dado a desmedidos ditirambos, observava, judiciosamente, que, quando se tem pouca coisa a dizer de alguém ou de uma obra, até não calha mal berrar, e que o excesso é frequentemente uma marca de penúria, pois que a verdadeira abundância arrasta consigo uma espécie de ponderação. O excesso, além de normalmente implicar um défice de conhecimento, é, repito, perigoso. O poeta William Blake dizia que o caminho do excesso leva ao palácio da sabedoria. Pode ser que sim: depende de que excesso se trata, porque o excesso de admiração pode levar ao palácio do erro e da injustiça.
Pessoa não precisou de Lourenço para ser descoberto, lido, estudado, promovido e traduzido. Dizer que Lourenço, por mais admirável que seja a sua sondagem pessoana, “desvendou” Pessoa aos lusíadas, esquecendo o admirável trabalho de quem, de muito longe, o precedeu é cometer os pecados capitais de ou esquecimento, ou desatenção, ou ignorância ou leviandade. Já em 1925 – ainda Lourenço gatinhava – José Régio arriscava a sua licenciatura, apresentando à conservadora Universidade de Coimbra, uma dissertação sobre as modernas tendências da poesia portuguesa, na qual dava palco generoso aos três argonautas do Orpheu. E aí coroava Pessoa com o estatuto de Mestre. Esta dissertação seria depois publicada, com o título de Pequena História da Moderna Poesia Portuguesa, em 1941. Nesta altura, Lourenço já não andava de bibe, mas tinha apenas 18 anos e, entretanto vigorara a revista presença, de 1927 a 1940, a qual deu larguíssima atenção e palco a Pessoa e aos seus principais heterónimos. E ignorar Jacinto do Prado Coelho que, com a sua tese seminal – Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa – deve ter feito solevar mais do que uma perturbada sobrancelha na Universidade de Lisboa, é mais ou menos tão grave como ignorar personalidades como Jorge de Sena, João Gaspar Simões, Adolfo Casais Monteiro, Teresa Rita Lopes, David Mourão-Ferreira e tantos outros (perdoem-me se os não cito) a quem a aura pessoana tanto deve.
Do mesmo modo, dar ao autor de Labirinto da Saudade os créditos de pioneiro solitário no desvendar de Portugal aos portugueses é cometer outra injustiça de truz: então o Antero das Causas da Decadência dos Povos Peninsulares, o Eça, que tão bem sondou as misérias, os tics e as cómicas megalomanias da sociedade portuguesa, com uma arte inigualável, o Oliveira Martins do Portugal Contemporâneo, o Miguel Torga, do belíssimo livro Portugal, dos vibrantes e inesquecíveis dezasseis volumes do Diário e dos contos admiráveis dos Novos Contos da Montanha ou o António Sérgio, dos oito límpidos e clarividentes Ensaios, além de muitas outras notáveis e corajosas intervenções, não colaboraram nada para desvendar Portugal aos portugueses? Nada disto conta? Lourenço veio pisar terra virgem? (Não foi ele quem o disse, foram os seus intemperados aduladores). Olhem que a injustiça é feio pecado e o autor do admirável Sentido e Forma da Poesia Neo-Realista não precisa de favores espúrios.
Outro aspecto que gostaria de aqui sublinhar é este: Eduardo Lourenço aceitou sempre muito mal e de muito mau humor os raríssimos reparos que, em vida, confrontou. Visou sempre, com prodigioso trabalho de formiga, uma saboreada unanimidade, sem vestígios de contraditório. E conseguiu-o, o que não fica bem a um meio cultural adulto. Nisto, não seguiu a fecunda pista de Karl Popper, que descreveu a lógica do progredir científico, por via da aceitação da “falsificação” (acto de mostrar que é falsa uma hipótese de trabalho), a qual permite passar o mais rapidamente possível, de uma hipótese revelada frágil, para outra mais competente. Entrincheirar-se o “clerc” na “sua” hipótese, como se fosse um ganho definitivo não é muito próprio de quem quer avançar no conhecimento. O sábio Samuel Johnson, biógrafo de poetas e o autor do primeiro verdadeiro dicionário da língua inglesa, além de ser o protagonista da mais elogiada biografia de sempre (Life of Johnson, de James Boswell) foi um dia abordado por uma senhora meticulosa, a qual encontrara no Dicionário de Johnson um erro: atribuição de um sentido errado a um certo vocábulo. Intrigada, perguntou-lhe por que tinha ele cometido tal erro. O sábio respondeu com suave candura: “Ignorância, minha Senhora. Pura ignorância!” Assim falam os sábios que se não importam de errar e gostam de progredir.
Eugénio Lisboa, em artigo publicado no JL, número 1310, de 16 a 29 de Dezembro de 2020, edição especial dedicada a Eduardo Lourenço , com capa ou 1ª página preenchida com fotografia do homenageado, sob o título “O universo de EDUARDO LOURENÇO, 1923-2020”.
No
mesmo Jornal de Letras , em Editorial “ Eduardo
Lourenço – Uma presença viva”, o seu director, José Carlos Vasconcelos,
explicita , entre várias considerações e evocações ao estatuto de grande
amigo , muito chegado do autor de “ O Labirinto
da saudade”, com quem teve íntimo e
profícuo convívio nos últimos 20 a 30 anos, quatro razões para lhe dedicar esta
edição especial. Dessas razões , transcreve-se a última por se distanciar
das anteriores , quer no tom quer na veemência com que ataca algum ousado
rival, que apesar de ter "imaginários"
êxitos, se despeita com "a glória" do
seu amigo , homem de "singular personalidade" e de "uma forma de ser e estar raras" .
e) A singular personalidade de EL, que se
distinguiu pela simplicidade, a cordialidade, mesmo a humildade, sem qualquer
estratégia de “ glória “ ou similar -
exatamente o avesso do intelectual
vaidoso, convencido, às vezes mesmo arrogante, de seus êxitos, mesmo imaginários, sempre ufano , como sempre
despeitado com os êxitos alheios, tanto
mais quanto maiores eles forem. Uma forma de ser e estar raras, a de Eduardo,
sobre a qual quereria contar agora
algumas histórias, e dar testemunho, seu muito próximo amigo e que como
poucos o acompanhou nestes últimos 20 a
30 anos – o que, porém, tem de ficar para
próxima oportunidade.
Para este número, dedicado a Eduardo Lourenço, enviei-lhe um texto a seu pedido. Isso convocava, da sua parte, no mínimo, neutralidade e cortesia, não as farpas envenenadas da sua editorial. A minha colaboração de tantos anos, que não é de qualidade “imaginária” – ou, se é, porque continuou a mantê-la? – não justifica um ataque tão enviesado. A minha visão do Eduardo Lourenço é a minha, a que sinceramente tenho e posso garantir-lhe que não estou só.
Seja como for, não voltarei a incomodá-lo com os meus textos e desejo bom futuro ao JL.
16.12. 2020
Eugénio Lisboa
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