terça-feira, 22 de dezembro de 2020

A propósito do último Jornal de Letras

PRO MEMORIA
SOMOS O PASSADO DE AMANHÃ
(Algumas observações cândidas sobre Eduardo Lourenço)
por Eugénio Lisboa
We are tomorrow’s past 
Mary Webb

“O texto que vem a seguir não visa de modo nenhum ser antipático com a figura do autor de Pessoa Revisitado. Que fique desde já claro: seria estulto e ingrato não reconhecer a forte marca que a sua intervenção cultural teve no nosso meio intelectual. Mas vou falar sobretudo – e parece-me fundamental fazê-lo – no modo um pouco inquietante, unanimista e incontinente da homenagem que se tem andado a fazer e que deixa muito a desejar, quando se vise um escrutínio sereno, objectivo e inteligente, que a obra de Lourenço requer e merece. Isto, de resto, não se tem passado só com Eduardo Lourenço: algumas figuras de algum porte, recentemente desaparecidas, foram também alvo de intemperadas ejaculatórias fora de qualquer equilibrado senso crítico. Não é, a meu ver, a melhor maneira de se homenagear um morto que deixou marca entre os vivos. António Sérgio e José Régio passaram a vida a fazer a pedagogia de uma metodologia feita de cautela, de bom senso, de obstinação fecunda, de aprofundamento gradativo e sereno, evitando o excesso ditirâmbico e, afinal, pouco fundamentado e pouco crítico. O grande físico, Albert Einstein, incomodado com o verdadeiro culto a que votaram a sua figura de grande intérprete do universo, declarou que “o culto da pessoa humana [lhe pareceu] sempre injustificado”. Eu diria mais: perigoso e pouco fecundo. Andar a descobrir, dia sim, dia não, um novo génio de serviço que vem e arrasa tudo quanto antes se fez é puro provincianismo, o qual, ao contrário do pensamento vigente, não habita preferencialmente na província. Lourenço foi um homem muito inteligente, mas com óbvios limites, como toda a gente. Para começar, como já algures observei, o seu estilo de escrita nem de longe era o mais adequado a um bom prosador de ideias. Os grandes modelos de veiculadores de ideias, de Antero a Orlando Ribeiro, passando por António Sérgio, José Régio ou Sílvio Lima, entre outros, ou por alguns dos maiores filósofos de qualquer nacionalidade, oferecem-nos uma prosa límpida, intrepidamente descascada, alheia a “fioretti” e a maneirismos gongorizantes, que só servem para atravancar o fluir asseado das ideias. São inúmeras as pessoas – sobretudo, mas não só, pessoas que vivem fora de Portugal e estão habituadas a outras leituras mais arejadas – a queixarem-se da obscuridade das prestações ensaísticas de Eduardo Lourenço. E têm alguma razão. As boas ideias não devem esconder-se por detrás de vestes complicadas e apinocadas, que as tornem de doloroso acesso. O filósofo Vauvenargues, que Voltaire tanto estimava, deixou-nos um aforismo célebre, que não me canso de recomendar a académicos fascinados pelo valor da opacidade: “A clareza é a boa fé dos filósofos.” E o filósofo Wittgenstein, mais citado do que realmente lido, ia mais longe, quando dizia que um pensamento que se não consegue exprimir com simplicidade e clareza é indício de que ainda não está maduro para ser expresso. Mas estar na posse de um pensamento amadurecido e torná-lo deliberadamente obscuro, pela vestimenta que se lhe acrescenta, é propriamente inaceitável. E impróprio de um filósofo. Lourenço gostava, obviamente, de aprimorar e apinocar o veículo das suas ideias (o estilo), o que talvez agradasse aos amantes de algum gongórico, mas servia mal os verdadeiros amantes de ideias. Esconder, com berloques, a nudez de uma ideia pode levantar a suspeita de que se quer ocultar a fragilidade dessa ideia. Eis por que me revejo mais, em termos de veículos de ideias e de sólidos argumentos de avaliação literária, nos textos de ensaístas como Sérgio, Régio, Sílvio Lima, David Mourão-Ferreira, Jacinto do Prado Coelho, Álvaro Lins, Alceu Amoroso Lima e, noutra área, na admirável e clarificante prosa de um Bertrand Russell ou de um Bergson.
Mas as reservas que aqui quero trazer são mais dirigidas aos admiradores e aduladores de Lourenço, aos emissores de epitáfios incontinentes, do que ao próprio ensaísta. Quando querem fazer dele o argonauta que “desvendou” Portugal e Pessoa aos portugueses, estão a assassinar os factos eruditos e a cometer uma clamorosa injustiça. Aqui, repito, o pecador não é o autor de O Labirinto da Saudade, mas sim os seus aduladores pouco informados ou muito esquecidos. Todo o excesso de admiração é sempre suspeito e revela, em geral, pouco senso crítico e péssimo conhecimento da obra idolatrada. André Gide, que era, além de notável ficcionista e diarista, um finíssimo crítico e ensaísta, raramente dado a desmedidos ditirambos, observava, judiciosamente, que, quando se tem pouca coisa a dizer de alguém ou de uma obra, até não calha mal berrar, e que o excesso é frequentemente uma marca de penúria, pois que a verdadeira abundância arrasta consigo uma espécie de ponderação. O excesso, além de normalmente implicar um défice de conhecimento, é, repito, perigoso. O poeta William Blake dizia que o caminho do excesso leva ao palácio da sabedoria. Pode ser que sim: depende de que excesso se trata, porque o excesso de admiração pode levar ao palácio do erro e da injustiça.
Pessoa não precisou de Lourenço para ser descoberto, lido, estudado, promovido e traduzido. Dizer que Lourenço, por mais admirável que seja a sua sondagem pessoana, “desvendou” Pessoa aos lusíadas, esquecendo o admirável trabalho de quem, de muito longe, o precedeu é cometer os pecados capitais de ou esquecimento, ou desatenção, ou ignorância ou leviandade. Já em 1925 – ainda Lourenço gatinhava – José Régio arriscava a sua licenciatura, apresentando à conservadora Universidade de Coimbra, uma dissertação sobre as modernas tendências da poesia portuguesa, na qual dava palco generoso aos três argonautas do Orpheu. E aí coroava Pessoa com o estatuto de Mestre. Esta dissertação seria depois publicada, com o título de Pequena História da Moderna Poesia Portuguesa, em 1941. Nesta altura, Lourenço já não andava de bibe, mas tinha apenas 18 anos e, entretanto vigorara a revista presença, de 1927 a 1940, a qual deu larguíssima atenção e palco a Pessoa e aos seus principais heterónimos. E ignorar Jacinto do Prado Coelho que, com a sua tese seminal – Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa – deve ter feito solevar mais do que uma perturbada sobrancelha na Universidade de Lisboa, é mais ou menos tão grave como ignorar personalidades como Jorge de Sena, João Gaspar Simões, Adolfo Casais Monteiro, Teresa Rita Lopes, David Mourão-Ferreira e tantos outros (perdoem-me se os não cito) a quem a aura pessoana tanto deve.
Do mesmo modo, dar ao autor de Labirinto da Saudade os créditos de pioneiro solitário no desvendar de Portugal aos portugueses é cometer outra injustiça de truz: então o Antero das Causas da Decadência dos Povos Peninsulares, o Eça, que tão bem sondou as misérias, os tics e as cómicas megalomanias da sociedade portuguesa, com uma arte inigualável, o Oliveira Martins do Portugal Contemporâneo, o Miguel Torga, do belíssimo livro Portugal, dos vibrantes e inesquecíveis dezasseis volumes do Diário  e dos contos admiráveis dos Novos Contos da Montanha ou o António Sérgio, dos oito límpidos e clarividentes Ensaios, além de muitas outras notáveis e corajosas intervenções, não colaboraram nada para desvendar Portugal aos portugueses? Nada disto conta? Lourenço veio pisar terra virgem? (Não foi ele quem o disse, foram os seus intemperados aduladores). Olhem que a injustiça é feio pecado e o autor do admirável Sentido e Forma da Poesia Neo-Realista não precisa de favores espúrios.
Outro aspecto que gostaria de aqui sublinhar é este: Eduardo Lourenço aceitou sempre muito mal e de muito mau humor os raríssimos reparos que, em vida, confrontou. Visou sempre, com prodigioso trabalho de formiga, uma saboreada unanimidade, sem vestígios de contraditório. E conseguiu-o, o que não fica bem a um meio cultural adulto. Nisto, não seguiu a fecunda pista de Karl Popper, que descreveu a lógica do progredir científico, por via da aceitação da “falsificação” (acto de mostrar que é falsa uma hipótese de trabalho), a qual permite passar o mais rapidamente possível, de uma hipótese revelada frágil, para outra mais competente. Entrincheirar-se o “clerc” na “sua” hipótese, como se fosse um ganho definitivo não é muito próprio de quem quer avançar no conhecimento. O sábio Samuel Johnson, biógrafo de poetas e o autor do primeiro verdadeiro dicionário da língua inglesa, além de ser o protagonista da mais elogiada biografia de sempre (Life of Johnson, de James Boswell) foi um dia abordado por uma senhora meticulosa, a qual encontrara no Dicionário de Johnson um erro: atribuição de um sentido errado a um certo vocábulo. Intrigada, perguntou-lhe por que tinha ele cometido tal erro. O sábio respondeu com suave candura: “Ignorância, minha Senhora. Pura ignorância!” Assim falam os sábios que se não importam de errar e gostam de progredir.
Para terminar, gostaria de voltar a sublinhar que esquecer a contribuição dos que nos antecederam e contribuíram para o nosso conhecimento é abrir um mau precedente. Como diz a epígrafe de Mary Webb, que antepus a este texto, “somos o passado de amanhã”. O que fizermos aos que nos antecederam será provavelmente o que nos farão os que nos sucederem.
Eugénio Lisboa,
em artigo publicado no JL, número 1310, de 16 a 29 de Dezembro de 2020, edição especial  dedicada a Eduardo Lourenço , com capa ou 1ª página preenchida com fotografia do homenageado,  sob o título “O universo de EDUARDO LOURENÇO, 1923-2020”.

No mesmo Jornal de Letras , em Editorial “ Eduardo Lourenço – Uma presença viva”, o seu director, José Carlos Vasconcelos,  explicita , entre várias considerações e evocações ao estatuto de grande amigo , muito chegado do autor de “  O Labirinto da saudade”, com quem  teve íntimo e profícuo convívio nos últimos 20 a 30 anos, quatro razões para lhe dedicar esta edição especial.  Dessas razões  , transcreve-se a última por se distanciar das anteriores , quer no tom quer na veemência com que ataca algum ousado rival, que apesar de  ter "imaginários" êxitos,  se despeita com "a glória" do seu amigo , homem de "singular personalidade" e de  "uma forma de ser e  estar raras" .

e) A  singular personalidade de EL, que se distinguiu pela simplicidade, a cordialidade, mesmo a humildade, sem qualquer estratégia de “ glória “ ou similar  - exatamente o avesso do intelectual  vaidoso, convencido, às vezes mesmo arrogante, de seus êxitos,  mesmo imaginários, sempre ufano , como sempre despeitado com os êxitos  alheios, tanto mais quanto maiores  eles forem.  Uma forma de ser e estar raras, a de Eduardo, sobre a qual  quereria  contar agora  algumas histórias, e dar testemunho, seu muito próximo amigo e que como poucos o acompanhou nestes últimos 20  a 30 anos – o que, porém, tem de ficar para   próxima oportunidade.

Eugénio Lisboa, tal como Eduardo Lourenço,  é colaborador do JL quase desde a sua fundação. Intelectual de  comprovada erudição, servida por um  espírito independente, tem exercido, ao longo de décadas,  um continuado magistério de crítica literária,   que nos tem enriquecido. É uma voz diferente  e é nessa diferença que se afirma e nos desbrava caminho. Num país de egrégios heróis, não é através de um inopinado unanimismo histriónico que se valoriza e conhece a dimensão da obra de quem acaba de desaparecer.  Eugénio Lisboa tem leitura própria  e  a serena e arguta   capacidade de denunciar quão prejudicial é para qualquer um   o louvor  a uma voz. A adulação tolda e não beneficia uma discernente homenagem.  
É contra isso que escreveu este último  PRO MEMORIA, coluna que lhe pertence e que nos tem feito  procurar este Jornal de Letras, de que somos leitores ancestrais.
Talvez para o director do JL, José Carlos Vasconcelos, a única homenagem possível ao seu grande amigo, falecido a 1 de Dezembro, deva ser feita a um só tom.
As palavras de Eugénio Lisboa romperam com a homogeneidade desejada e apurada. Assim, contrário ao espírito plural e aberto que qualquer Jornal deve ter, lançou, com desbocada pontaria , farpas a quem ousou um tom diferente e próprio. Eugénio Lisboa sentiu-as e e deu por finda a sua longa colaboração com o Jornal de Letras. 
Perdeu o Jornal e perdemos todos nós, mas o país da voz única, feito de vozes reprimidas, acabou há quarenta e seis anos. Todos nós o sabemos e saudamos. 

Eis a carta de Eugénio Lisboa ao director do JL:

José Carlos de Vasconcelos, quero comunicar-lhe que não volto a colaborar no JL. Enquanto o fiz, procurei sempre dizer, com “franc parler” que devo a bons e íntegros mestres, aquilo que penso: com admiração, quando ela é devida, mas sem idolatrias próprias de ditaduras de terceiro mundo.
Para este número, dedicado a Eduardo Lourenço, enviei-lhe um texto a seu pedido. Isso convocava, da sua parte, no mínimo, neutralidade e cortesia, não as farpas envenenadas da sua editorial.  A minha colaboração de tantos anos, que não é de qualidade “imaginária” – ou, se é, porque continuou a mantê-la? – não justifica um ataque tão enviesado. A minha visão do Eduardo Lourenço é a minha, a que sinceramente tenho e posso garantir-lhe que não estou só.
Seja como for, não voltarei a incomodá-lo com os meus textos e desejo bom futuro ao JL.
                                                   16.12. 2020

Eugénio Lisboa

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