Lourenço Marques, Moçambique
Começar
por Eugénio Lisboa
"O nosso mundo – o meu e dos meus
irmãos, o Fernando, mais velho do que eu um ano, e o Ilídio, mais novo também
um ano – era o do Largo João Albasini, do Alto‑Mahe, com incursões
pela Latino Coelho, paralela à 24 de Julho, para o lado do aeroporto e das Mahotas. Na Latino Coelho, havia a
loja do sr. Pimentel, onde passávamos as tardes a “lançar” piões, que ele nos
deixava “experimentar”, ainda que não tivéssemos dinheiro para consumar a
compra. É que não tínhamos mesmo cheta. Namorávamos os piões, os amendoins e as
castanhas de caju, mas era tudo platónico.Havia, também, a praia, enorme, de boa areia fina, e um Índico que nunca mais acabava. Falar do mar é um risco, porque acabamos a fazer retórica barata e o mar não o merece. O gozão do Flaubert, caçoando com as banalidades sumptuosas que os poetas para aí virados debitam de vez em quando, aludindo ao mar, dizia do líquido elemento, no seu Dictionnaire des Idées Reçues: “Donne de grandes pensées”. Grandes pensamentos, acho que o Índico não mos deu, por então, mas deu‑me grandes visões e estranhas ambições. Um dia, cavalgaria o oceano e iria por ali fora ver outras terras e outras gentes. Estava‑me prometida uma grande viagem.
Seja como for, durante todo o período da minha infância e adolescência, nunca dei por que o clima me incomodasse. Nunca tinha conhecido outro, portanto... Mesmo quando, após uma correria ou uma zaragata, em pleno verão, ficava a pingar suor, com a camisa encharcada e as faces a arder, não me parecia que houvesse ali qualquer particular desconforto. Era assim o mundo ou, pelo menos, aquele que eu conhecia. Pegar no cão e “fazer” a pé a compridíssima 24 de Julho, até à praia e volta, ao meio dia, com o sol a pino e a castigar com força – era canja!
(Faço aqui uma interrupção porque me assaltam escrúpulos.Lanço, neste papel, memórias que me parecem importantes – a mim. Escrever memórias é tentar imprimir a marca de eternidade a momentos, para nós inesquecíveis e inesquecidos, intensos, mágicos, às vezes, quase insuportavelmente vivos... mas que serão, para outros, provavelmente despidos de interesse. Captar a atenção destes, a sua cumplicidade, atrai‑los a esta narrativa de minúcias e convence‑los de que estes momentos foram realmente algo de especial – eis a tarefa gigantesca do memorialista. Tarefa impensável, se calhar impossível, mas que, de quando em quando – uma vez num milhão – resulta... A loucura está em convencermo‑nos de que a nossa vez é essa “uma num milhão”. É que é mesmo muito difícil dar, com palavras, a intensidade das emoções que nos assaltaram numa idade em que elas nos marcam como nunca mais voltará a acontecer. Diderot dizia que, para falar de Mozart, seria preciso mergulhar a caneta no arco‑iris. Eu não sei onde seria preciso mergulhar a caneta com que agora tento ressuscitar todos os grandes momentos iniciáticos da minha infância e adolescência. Mas tento, de qualquer modo, fazer o melhor que posso: até porque me parece que não há arco‑iris que me resolva a dificuldade...)
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