Otto René Castillo: O sonho e o martírio de um poeta
por Manoel de Andrade
"Em meados de 1969, um exilado político guatemalteco me contou, em Santiago do Chile, a incrível história de um poeta queimado vivo em seu país. Em fins de 1970, quando de minha passagem pela Nicarágua, alguns intelectuais de esquerda e militantes sandinistas também comentaram sobre o poeta-guerrilheiro Otto René Castillo, supliciado até a morte pela ditadura da Guatemala, em 1967. Mas foi com os relatos dos poetas salvadorenhos que passei a construir a imagem heroica desse grande revolucionário.
Cheguei em San Salvador em janeiro de 1971 e, pelas referências que levava, de pronto fiz contato com alguns poetas salvadorenhos. A poesia borbulhava na Capital e uma jovem geração de excelentes poetas comandava a vida intelectual do país. Conheci alguns deles, e partilhei bons momentos de literatura, política e debate ideológico com Manlio Argueta, José Roberto Cea, Roberto Armijo, o veterano Tirso Canales e, o mais jovem deles, Alfonso Quijada Urias. Todos, na época, na média dos 30 anos e quase todos, com várias premiações em diversos certames literários centro-americanos. Esses poetas, — integrantes de um grupo de brilhantes poetas, que ficou conhecido como a “Geração Comprometida”— alistaram seus versos nas trincheiras das lutas sociais e muitos deles foram perseguidos, encarcerados, torturados e exilados por empunhar a bandeira de um dos povos mais oprimidos e massacrados da América. Guardo há quarenta anos as palavras fraternas que Tirso Canales escreveu ao me presentear a coletânea poética De aqui em adelante, onde partilha suas 200 páginas com Argueta, Armijo, Cea e Quijada Urias. Foram ele e Manlio Argueta que me falaram da solidária relação ideológica e literária que os ligou a Otto René Castillo em San Salvador, onde chegou exilado, em 1954, após o golpe do coronel Carlos Castillo Armas contra o governo democrático de Jacobo Arbenz, na Guatemala.
Filho de uma família de classe média, Otto René Castillo nasceu em 1936 em Quetzaltenango, a segunda cidade do país. Sua precoce militância estudantil e revolucionária o obriga, com apenas 18 anos, a fugir da Guatemala e asilar-se em El Salvador, onde sobrevive trabalhando como vigia, pintor de parede e vendedor de livros. Apesar das dificuldades, ingressa na Universidade e entra numa fecunda fase de organização política e produção poética, despertando a atenção dos círculos de cultura salvadorenha ao ganhar, com apenas 19 anos, o Prêmio Centro-Americano de Poesia o qual lhe abre as portas da imprensa para a publicação de seus poemas. Sua poesia dessa época traz a marca de uma profunda nostalgia da pátria, cantando a dor de seu povo oprimido e a condição em que sobreviviam as comunidades indígenas, secularmente exploradas pelas oligarquias agrárias e as grandes empresas bananeiras norte-americanas. (...) Apesar da sua juventude, revela-se um intelectual influente, enfatizando a necessidade de engajamento da arte e da literatura com as circunstâncias político-sociais por que passava o cenário centro-americano da época, governado pelos títeres do imperialismo norte-americano como os Somosas, Duvaliers, Trujillos etc. Com esse espírito, desfralda a bandeira da poesia com as cores das lutas sociais, seguindo os sulcos das primeiras trincheiras poéticas abertas no Continente, por César Vallejo, Miguel Hernandez, Nicolas Guillén e Pablo Neruda.
Seus três anos de exílio em El Salvador foram assinalados por uma intensa atividade política e literária. Nesse período, por várias vezes cruzou clandestinamente as fronteiras da pátria para manter-se informado dos planos revolucionários, cujas sementes de justiça social e liberdade germinariam alguns anos depois, nos embates da longa Guerra Civil, que por 36 anos mergulharia o país nas águas sangrentas de um imenso massacre social.
(...) ao terminar seus estudos na Alemanha, regressa em 1964 a seu país, reiniciando sua apaixonada militância política e cultural ao partilhar as atividades clandestinas da luta armada com a direção do Teatro Municipal da Cidade de Guatemala. Contudo, no ano seguinte, quando se preparava para filmar, nas montanhas, as atividades guerrilheiras das Forças Armadas Rebeldes (FAR), é preso e novamente enviado para o exílio. Pela sua capacidade e coerência ideológica, as organizações revolucionárias da Guatemala o nomeiam representante do país no Comitê Organizador do Festival Mundial da Juventude a realizar-se na Argélia e, com essa missão, percorre a Alemanha, Áustria, Hungria, Chipre, Argélia e Cuba, onde se detém por alguns meses a fim de vivenciar toda a rica experiência social e política com que a Revolução Cubana instalava o socialismo no país.(...)ao chegar à Guatemala em 1966, Otto René Castillo retoma a bandeira pela dignidade do seu povo. De uma pátria onde 90% da população não tinha terra para semear sua própria sobrevivência. Uma pátria de excluídos, socialmente abandonados à própria sorte e onde 70% de seus irmãos não aprendera a ler. Ele sabia que sem a guerra ninguém iria repartir a terra e é nesse impasse na história de seu povo que incorpora-se às Forças Armadas Rebeldes (FAR) comandadas por César Montes, ocupando-se do setor de Propaganda e Educação da Frente Edgar Ibarra. Cerca de um ano depois, em março de 1967, quando parte da Frente deslocava-se pelo relevo selvagem, no leste montanhoso do país, confrontou-se com inimigos fortemente armados e, nesse combate, caiu Otto René Castillo e sua companheira, a guerrilheira Nora Páiz. O enfrentamento se deu em Sierra de las Minas, entre a coluna guerrilheira e as tropas mercenárias do governo de Julio César Méndez Montenegro. Conta-se que, nesse embate, somente teria sobrevivido Pablo Monsanto que, cerca de 40 anos depois, disputou, pelas forças de esquerda, a presidência do país."